quarta-feira, 30 de outubro de 2024

A Cruz das Regateiras

Setting - Lugar da Patusca junto às Barrocas, o largo da Cruz das Regateiras e o início da Rua da Cruz, ali perto do Hospital dos Alienados e mais abaixo, o lugar de Curraes.

Mas que riqueza toponímica. Isto dá pano para mangas, mas hoje vou escolher só um – o Largo da Cruz das Regateiras. Doutro modo, teríamos de fazer primeiro uma patuscada, ali por baixo daquelas carvalheiras, na Patusca, calcorrear o monte das Lamas, ali onde depois construíram o hospício e a água escorria para as regueiras ou então ir até ao outro monte – o dos Currais, onde ergueram outro hospital, esse para as doenças contagiosas, com o patrocínio de um benfeitor, Rodrigues Semide.

Aquele monte das Lamas também deixou de o ser para passar a quinta do Paço e depois a quinta da Cruz das Regateiras, quando em 1868, por lá se deu início à construção do Hospital do Conde de Ferreira. Águas e terra por ali nunca faltaram - eram 120.000 m2. Por ali sempre passou um caminho de almocreves para entrar na cidade, vindos de terras mais longínquas ou próximas, que era foi tendo nomes como a Estrada Real n.º 32, a Estrada de Guimarães à Aguardente, ou mesmo à Baixa, até à Porta dos Carros. O topónimo mais vulgar era mesma estrada da Cruz das Regateiras.  Era trajecto especialmente para aqueles e aquelas que vinham dar de comer à cidade, com os seus carregos ou à cabeça ou nos carros de burros ou de bois.

Ali chegados, era preciso pagar “o IVA”. Desde tempos imemoriáveis, reis e governantes quiseram tirar dinheiro a quem produzia. Muitas formas e nomes houve para o fazer e sítios para o receber. O Real de Água deve ter sido o último da realeza, mas os republicanos criaram outros. Criaram-se as barreiras na Circunvalação, mas aqui no Largo as posturas camarárias são anteriores a 1896, data de conclusão da Circunvalação. 

Aqui estavam os fiscais junto à cruz para cobrar os impostos sobre os víveres e as mercadorias que as vendedeiras traziam nos seus carregos. Germano Silva até refere uma espécie de mesa de pedra em frente à cruz, que servia de balcão de cobrança. Cá vem a dolorosa – pagar – quem pagava? As regateiras, que tinham ali a sua Cruz à espera e que muitas vezes diziam as suas imprecações, rogavam as suas pragas aos ditos cobradores, pelo que o termo passou também a designar uma mulher que fala alto e de pouco recato, para não ir mais longe. Mas deixemo-nos de sexismos, porque as vendas também eram feitas por mercadores e regatões. Mas agora, fiquemos por aqui.

Tenho dúvidas se foram estas vendedeiras que vinham lá de Ermesinde, da Areosa ou de terras da Maia que deram nome ao lugar. A história é longa, porque gostaria de falar da Capela, da Confraria do Santíssimo Sacramento e Senhor Jesus de Paranhos, destruída em 1916, para alinharem a rua, hoje de Costa Cabral, uma das mais longas e mais direitas da cidade. A Confraria recebeu 1750$00 de indemnização por lhe demolirem a Capela ali existente, conhecida apenas como do Senhor da Cruz e ainda ficaram com as pedras e as imagens, nomeadamente a da Nossa Senhora das Dores, essa sim de grande devoção, no último Domingo de Julho.

 Ali, mais ou menos em frente à entrada do Conde de Ferreira, esteve o tal cruzeiro - a cruz de pedra, com a data bem cinzelada – 1729. Mudaram-na em 1916.  Fui hoje visitar essa cruz. Já há tempos que tencionava lá ir e desta vez fica o registo fotográfico da cruz das Regateiras que não saíu de Paranhos, mudando-se para um local mais condigno com a sua original função – nas traseiras da igreja da paróquia. Quanto ao largo da Cruz das Regateiras, a foto é de agora… e as sentinas eram do outro lado.

   


  Para aqueles que queiram saber mais, devem consultar o Germano Silva que ainda há pouco escreveu não só sobre este lugar, como também sobre as regateiras.

Germano refere ainda as regateiras que trabalhavam como intermediárias e as posturas camarárias que tabelavam as aves de capoeira:

 “as galinhas melhores, a quatro vinténs; as frangas boas com crista a três vinténs; frangos bons a vintém e os mais pequenos a quinze reis e os ovos a dous reis cada hum; perdizes e perdigões a três vinténs e perdigotos a trinta reis”.

Recordo a minha madrinha, a quem também podiam chamar regateira, porque vendia no mercado do Anjo e depois no Bom Sucesso, mas que para mim já lhe chegava o emblema de galinheira. Também ela passava pela Cruz das Regateiras, mas ia de eléctrico, precisamente no carro atrelado, porque as abuízas com a criação não podiam ir junto dos passageiros e as regateiras tinham de levar os cestos no carro de trás que poucos bancos tinha – só espaço para a bagagem.

Ali no largo, também houve uma fonte (hoje ainda lá está um fontanário de ferro anexo ao candeeiro) para os vendedores e caminhantes se dessedentarem e sentinas, mictórios ou urinóis para os homens, como soía dizer-se, lamento não o ter fotografado, antes de o terem destruído e só ter encontrado um primo.

Quanto às regateiras sabiam fazê-lo, também de pé, mas de outro modo.  O guarda-freios do carro eléctrico (o que conduzia) e o condutor (o que cobrava os bilhetes) também aí costumavam aliviar-se.

Para fechar, volto ao Germano Silva que nos ensina, que o largo também se chamou Largo de 25 de Março, evocando combates liberais, por ali travados, onde participou o malogrado Coronel Pacheco, que morreu noutro combate, ali mais à frente na Areosa.

Abro aqui mais um parêntesis para o termo condutor. Nos vidros do eléctrico havia uma frase com letras vermelhas coladas que dizia “SE ALGUMA JANELA ABERTA O INCOMODA, PEÇA AO CONDUTOR QUE A FECHE”, Ora, não está a ver o guarda-freios a vir fechar uma janela, pois não? Nalguns casos, a segunda parte da frase era simplesmente: FECHE-A.

Quanto ao resto, são cenas dos próximos capítulos.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Porque não havia meninas bonitas quando eu queria

Tive de chegar a esta idade para descobrir a razão de as meninas bonitas da minha criação terem ido todas para freira.

Na minha procura de antigas quintas, porque as de hoje ou são vinícolas ou para casamentos, deparei-me com a quinta do Cruzeiro, em Ermesinde. Deveria ter sido enorme, porque as minhas memórias toponímicas daquele lugar são marcadas por uma forte cruz de pedra e um café mais velho que eu, com uma papelaria anexa, que partilhavam o topónimo ”Cruzeiro”.

Não sabia do primeiro nome de baptismo dessa quinta – pois para mim foi sempre do Bom Pastor - que ainda como “do Cruzeiro” foi comprada pela Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, em 1954 e que provavelmente a re-baptizou. Ficava ali para cima quase a meio quilómetro do Cruzeiro onde eu ia. Começaram a construir lá uma igreja e só em 1966 ficou pronta. Eu até lá ia, dizíamos que era a igreja das freiras, mas as irmãzinhas ficavam recatadas lá no convento anexo.

Agora sim, descobri a razão do desaparecimento das “proto-nubentes”.

Aqui por Paranhos, também havia um Bom Pastor, que hoje é quartel central da PSP, porque os militares do Quartel de Transmissões saíram de lá com o advento da Internet. Ora nas primeiras instalações, estiveram lá as tais freirinhas, que, pasme-se, foram as responsáveis pelo desaparecimento das “gajas boas de Ermesinde”, conforme RAP dizia.

Vamos a factos. Em 1899, morria a “Santa de Paranhos”, a irmã Maria, secular alemã, condessa de Droste Vischering, que fundou o convento e foi a sua Madre Superior, ali na Rua do Vale Formoso. Acontece que em 1936, o seu corpo estava incorrupto e passaram-no para uma urna de vidro em 1944. O Papa João Paulo VI beatificou-a em 1975. As moçoilas sentiam o chamamento e o seu número aumentou de tal modo que tiveram de construir um novo convento em Ermesinde, expondo na igreja a urna-relicário da irmã Maria. na dita quinta do Bom Pastor, enclausurando aí todas as meninas bonitas do meu tempo.

domingo, 27 de outubro de 2024

 

Escribidices aos bocados da minha
Monografia de Paranhos

Hoje sai listas de montes sobre os quais já escrevi alguma coisa


Monte Belo                                            Monte de Marganchos ou Monte da Bella

Monte Carvo                                         Monte de Paranhos

Monte Corvo                                         Monte de S. Paulo

Monte da Caramila                                Monte do Agueto (1779)

Monte da Regateira (1732)                  Monte do Cobello /Covelo

Monte da Sêcca                                   Monte do Fural

Monte da Valle (1673)                          Monte do Padrão Velho (1758)

Monte das Antas                                  Monte dos Bulgos /Burgos

Monte das Medalhas (1832)                Monte dos Espinheiros (1679)

Monte das Regueiras                          Monte Louro

Monte de Além                                    Monte Maninho (1743)

Monte de Cativos / Cativo                   Monte Pedral / Perral

Monte de Cortes (1766)                      Monte Rico

Monte de Currais                                Monte Santo /Monsanto

Monte de Lamas                                 Monte Ventoso

sábado, 26 de outubro de 2024

 O pequeno nada de hoje

Um ovo explodiu na minha sala de jantar - pum! 

Que me assustaste, porra!

 

Os Algibebes da Rua do Loureiro

Em 1928, recordavam-se n’ O Tripeiro, histórias de algibebes da Rua do Loureiro, à data com mais de trinta anos. Por essa altura, os bons algibebes, já tinham mudado, chamavam-se então “Alfaiates” e às suas portas, cheias de casacos e sobretudos talhados à moda, já não figuravam as “calças de boca de sino” nem as “jalecas de alamares espaventosos”.

Repare-se bem, isto foi publicado em 1928 – desdenhavam-se “as calças de boca de sino” que foram grande moda nos anos 70, apenas com uma pequena alteração na preposição “calças à boca de sino”. Quanto às jalecas hoje ficaram para os Chefs, mas os alamares continuam. Quem não cobiçava um casaco de fazenda preto ou cinzento, com uns debruados a vermelho e uns vistosos alamares, nos anos 70, a encaixarem em casas de fita de couro?

Ai as modas que vão e vêm. Sempre disse a minha avó – “Guarda as minhas coisas que a tua neta há-de vesti-las como grande moda.” Os bons conselhos antigos não se esquecem. 

“Tudo isto é teu, para tua serventia”, cantava o Rui Veloso e a minha avó dizia “Guarda o que não presta, terás o que precisas.” E quanto ao agasalho, o conselho era: “Isto serve sempre."

- Mas hoje está sol! "Deixa lá, o que te abriga do frio, abriga-te do calor.” 

Voltando às facécias dos algibebes de 1928, repico algumas frases do jornal, que será uma pena perderem-se:

«A sua maneira comercial não se alterou. Sentados à porta, passando a ferro ou desfazendo alinhavos, eles lá continuam, de olhar atento, à espera do freguês aldeão, que sempre aparece à cata de pechinchas, marralhador e exigente.

Quando ele surge, desconfiado, mirando tudo com lentos vagares cautelosos, para que não o explorem, com o seu ar de quem sabe muito bem o quanto pela cidade se abusa da simpleza ingénua dos bons provincianos, a caça inicia-se, desesperada, terrível.

Começa por uma frase delicada, aliciadora, pronunciada com voz melífula:

- Se vai comprar, faz o favor…

Mas o freguês não se deixa tentar. Sem mesmo penetrar no estabelecimento, olha de fora os exemplares dependurados à porta… então o algibebe vai-lhe no encalço, toma-lhe o braço, busca seduzi-lo com o melhor da sua retórica:

- Olhe que não encontra mais barato. Tenho de tudo…

E segue um deslumbramento de vantagens, baratezas únicas, perfeições máximas, etc.

O freguês começa a deixar-se levar, seduzido, meio convencido já. A sua resistência amortiça, hesita: - Não, não. Eu, a bem dizer, não venho comprar nada…

- Ora essa! Mas venha ver. Não paga nada por isso… Vitória! O freguês acede. Vencido, entra.

Desdobram-se as peças em diagonal, exibem-se os casacos, patenteiam-se os varinos, as capas à espanhola, remexem-se de alto a baixos lotes pejados, por entre uma torrente de palavras que deixa o pobre desorientado.

- Creia que não encontra melhor. Veja est’ andaina, ora faça favor. Parece mesmo feito para si… O bom camponês, sempre desconfiado, de olhar atento, observando os forros, experimentando a segurança dos botões, palpando o tecido, acaba por despir o casaco, sem deixar de se mostrar desinteressado, só para ver como lhe fica.

Por fim, entra-se na discussão do preço – luta tremenda em que freguês e vendedor medem rudemente as suas forças, resistentes e invencíveis.

- Há preços para todas as bolsas. Por pouco dinheiro tem uma andaina completa.

Mas o comprador gosta de justar e o algibebe, que o sabe, pede, de entrada, uma exorbitância, - o dobro. Marralham, discutem, um nota defeitos, outro observa perfeições.

- Não dou nem mais um tostão…

-Não, não pode ser. Olhe por ser para si, fica-lhe por duas libras.

O freguês não que, volta a afirmar que não veio para comprar e sai. Vai à porta de baixo.

A scena repete-se e assim sucessivamente com os mesmos incidentes, os mesmos pormenores. Por fim, realiza-se o contracto. Nunca é no primeiro, mas também não é no último. O comprador retira-se satisfeito, convencido de que pechinchou, e o vendedor conta os lucros, que tanto trabalho lhe custaram.

Depois na rua, o infeliz, que vai todo ufano exibindo já a sua compra, a pensar no belo dia triunfal que o espera lá na terra, quando se apresenta no adro da igreja, após a missa domingueira com o seu lindo fato novo, é assediado cruelmente pela sanha ressentida dos preteridos raivosos. Despedem-lhe ironias, atiram-lhe chufas e um outro mais agarotado chama-o a rir!

- Pst, ó freguez! Ele olha intrigado.

- Veja que deixou cair os botões… e fica a ri-se da ironia, enquanto o outro se afasta, encolhendo os ombros, bem sabendo que estão sólidos os botões do seu fato novo, com que vai deslumbrar as raparigas da sua aldeia, em certa desejada tarde de romaria.

O jornalista S.C» Seja ele quem for/foi, abençoado seja.

Li numa “Gazeta de Espinho” que os anos amarelecerem, uma notícia sobre ruas do Porto e a do Loureiro também era notícia, pelos mesmos algibebes.

Nessa época os algibebes já eram diferentes. “…perseguem menos o transeunte, que já pode transitar sem o cerco feroz, engalfinhante, invencível do algibebe sôfrego de freguês. Também o primitivo regateio deliu-se. Dantes os grossos capotes à prova de mau tempo, os casibeques de alamares tilintantes e as pavorosas calças afuniladas constituíam objectos de mostruário e merca. Hoje a obra diverge apenas no apuro do acabamento e na baeta vermelha do fôrro, dos modelos da alfaiataria mais avançada do burgo”.

Germano Silva volta a lembrar os algibebes ainda este Setembro de 2024:

«A Baixa portuense já não é o que foi. A intensa vida comercial dos tempos passados está a desaparecer.
Na Rua do Loureiro já não há algibebes (vendedores de roupa feita) nem ourives de prata, que beneficiavam da vizinhança dos mosteiros das monjas de S. Bento e dos conventos dos Loios e dos Congregados, que eram os grandes “consumidores” de cálices, patenas, diademas e outras alfaias religiosas.»

Quem se deu ao trabalho de contar as lojas, parece que inventariou seis na Rua Chã e dezoito casas de algibebes na Rua do Loureiro.

A loja, ontem e hoje,  prolonga-se para a rua (Rua Escura (?) e Rua das Flores)

Podia dizer que a imagem da esquerda seria a Rua do Loureiro à época, com as “fazendas” expostas cá fora. Mas parece que a imagem é muito mais recente. E a da direita até é desta semana. São os novos albigebes da nossa urbe.

Está escrito e copiado aí pela rede, que rapazes trabalhavam a soldo dos algibebes da Rua do Loureiro, para “chamar o freguês” – ficavam à porta dos estabelecimentos e quando o cidadão se aproximava, empurravam-no para o interior. 

Um incauto, não chamou a polícia, mas mandou carta ao “Jornal da Manhã” queixando-se "...É que é realmente inqualificável o proceder de toda aquela alfaiatada, decerto incapaz de matar uma aranha mas terrível quando assalta o transeunte, cercando-o como uma turba de galfarros endemoninhados, empurrando-o, puxando-lhe pelo casaco, uns de cada lado, até o rasgarem... » e obteve resposta de um mestre alfaiate, desafiando-o a indicar os prevaricadores, "se são todos ou alguns, e se não o fizer será tido como caluniador, pois não se deve lançar a carapuça em todas as cabeças..."

Hoje, experimente entrar em qualquer algibebe moderno de um shopping center e venha-me dizer que é que lhe liga. Quem lhe diz: “Tem aqui um andaina que lhe fica a matar!”

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

 

Um serão “sem televisão” em 1899

Era a última sexta-feira do mês e eu sabia o que me esperava depois do jantar – tinha de ir acompanhar a minha Tia-Torta “andar às vozes”.

Morávamos ali na Rua da Sovela, que nunca teve placa com esse nome, mas todos a conheciam assim. Na placa dizia Rua de Santo Ovídio, porque para cima ia para o Campo, onde também havia uma quinta com esse nome. Mas naquela noite fomos para baixo, para o Largo dos Ferradores. Estava deserto, as cavalgaduras estavam ferradas e havia sossego.

Ainda não tinha posto o pé fora de casa e a minha tia avisou:

- Já sabes, bico calado. Sabes muito bem onde vamos e que deves ir com os dentes cerrados.

Passados os Ferradores, chegámos à Praça do Pão, onde já não havia ninguém a vender àquela hora da noite. Se fosse de dia, podia ter a sorte de lamber os beiços com alguma arrufada, ou levar para casa uma regueifa de Valongo, que diziam que comida nesta altura com nozes “sabe a casado”. Cá por mim, ia mesmo com manteiga. Mas àquela hora, nada…

Havia que descer ali pelos Ferros Velhos, ali sim ainda andava gente. Mas vi poucas barracas com a porta aberta. Estava quase tudo fechado. Quando ali passava gostava de ver aquelas mesas cheias de utilidades para a casa – aquilo eram tachos, panelas, maquinetas, ferramentas, pás e picas um mundo de coisas enferrujadas e outras a luzir, que eu nem sabia para o que serviam, mas que me encantavam.

A minha tia tinha-me dito que uns senhores ricos queriam fazer ali uma gaiola dourada. Ali na Galeria de Paris, como há noutras cidades da Europa. Queriam fazer uma cobertura de ferro e vidro a meio dos prédios, mas a Câmara não deixou, porque dizia que os vizinhos de cima depois deixavam cair pedras de carvão, latas e garrafas e partiam os vidros.

Chegámos aos Clérigos e aí até senhoras víamos. Andavam por ali a fazer compras, pois não gostavam de as fazer de dia. Eu até queria apreciar aquelas montras, mas não… ia de mão dada com a minha Tia que não me largava e ainda por cima me puxava, não me deixava parar.

Nem uma palavra dizia e acho que às vozes daquelas senhoras também pouco ligava. O que mais me custava era ir assim como se levasse na boca uma forte mordaça. Eu era uma criança e estava naquela idade em que se está sempre a falar.

Se tínhamos descido, agora era a subir, ali pela rua do Loureiro. Onde havia sempre um ou outro padre, já cheio de sono, a bocejar e a falar como dono do estabelecimento. Eu ouvia-os falar em ”estolas e casulas” e não percebia nada.

A minha Tia agora já ia mais atenta ao que ouvia. Chegámos lá acima ao largo, para entrar na Rua Chã e começava o negrume. Ali as terras do bispo eram frias, ventosas e assustadoras. Eu começava a entristecer e a compenetrar-me do sentimento religioso que tinha inspirado a nossa romagem. À medida que nos aproximávamos das paredes negras da Sé, a solidão, a minha tristeza, misto de enfado e de terror aumentavam, a ponto de me fazer tremer às vezes.

Era agora por aquelas ruelas para baixo da Sé que a minha Tia-Torta mais se firmava nos ruídos daqueles com que nos cruzávamos. As vozes certas que ela procurava estavam por ali. Como ela dizia, até os bochechos ouvia, pois tinha ouvidos de tísica.

Ela precisava de saber o que iria acontecer com os negócios ou aqueles assuntos da família, sobre o dia de amanhã, que a mim nada diziam, pois só o dia de hoje me interessava, e naquele dia nem esse.

A nossa romagem estava a chegar a aproximar-se do fim e o meu medo ia ficando cada vez maior.

Já conseguia distinguir ali ao fundo a Capela da Senhora das Verdades, mas que até podia ser a de Nossa Senhora da Conceição, que há mais e também estava no altar ao lado, mas a das Verdades é só uma. Já via as portas – a principal e as outras duas – uma de cada lado. Estavam fechadas, mas a porta principal tinha dois ralos por onde se podia ver a Senhora. Muitas vezes também por ali espreitei e vislumbrei a Senhora iluminada por uma luz que pendia diante do altar-mor.

Naquele dia, eu também ia com maus pressentimentos. Ajoelhámo-nos no degrau da porta, com as mãos postas e eu com o boné debaixo do braço. Não sei se rezava ou o que rezava, enquanto a minha querida Tia orava fervorosamente com os lábios colados a um dos ralos, como se estivesse a falar com Nossa Senhora para dentro da ermida.

Tudo o que eu queria era ver-me dali para fora, o mais depressa possível, poder quebrar o silêncio, desforrar-me de tão longa e forçada mudez.

Mas nem no regresso falei, pois, a minha Tia vinha a remoer na cabeça as vozes agradáveis ou desagradáveis que tinha ouvido. Será que antegostava a felicidade que lhe tinha sido anunciada ou vergava já ao peso de alguma profecia de desgraça, de algum aviso aziago, acreditando por igual uma e outra coisa?

Não sei oque ela ouviu, sei que fomos às vozes e no dia seguinte, o meu irmão mais velho foi às sortes e safou-se.

 

Inspirado em artigo de Alberto Pimentel

em O Tripeiro, Série 3, Ano 1, nº 1 (1926), p. 5-6