Um serão
“sem televisão” em 1899
Era a última sexta-feira do mês e eu sabia o que me esperava
depois do jantar – tinha de ir acompanhar a minha Tia-Torta “andar às vozes”.
Morávamos ali na Rua da Sovela, que nunca teve placa com
esse nome, mas todos a conheciam assim. Na placa dizia Rua de Santo Ovídio,
porque para cima ia para o Campo, onde também havia uma quinta com esse nome.
Mas naquela noite fomos para baixo, para o Largo dos Ferradores. Estava
deserto, as cavalgaduras estavam ferradas e havia sossego.
Ainda não tinha posto o pé fora de casa e a minha tia
avisou:
- Já sabes, bico calado. Sabes muito bem onde vamos e que
deves ir com os dentes cerrados.
Passados os Ferradores, chegámos à Praça do Pão, onde já não
havia ninguém a vender àquela hora da noite. Se fosse de dia, podia ter a sorte
de lamber os beiços com alguma arrufada, ou levar para casa uma regueifa de
Valongo, que diziam que comida nesta altura com nozes “sabe a casado”. Cá por
mim, ia mesmo com manteiga. Mas àquela hora, nada…
Havia que descer ali pelos Ferros Velhos, ali sim ainda
andava gente. Mas vi poucas barracas com a porta aberta. Estava quase tudo
fechado. Quando ali passava gostava de ver aquelas mesas cheias de utilidades
para a casa – aquilo eram tachos, panelas, maquinetas, ferramentas, pás e picas
um mundo de coisas enferrujadas e outras a luzir, que eu nem sabia para o que
serviam, mas que me encantavam.
A minha tia tinha-me dito que uns senhores ricos queriam
fazer ali uma gaiola dourada. Ali na Galeria de Paris, como há noutras cidades
da Europa. Queriam fazer uma cobertura de ferro e vidro a meio dos prédios, mas
a Câmara não deixou, porque dizia que os vizinhos de cima depois deixavam cair
pedras de carvão, latas e garrafas e partiam os vidros.
Chegámos aos Clérigos e aí até senhoras víamos. Andavam por
ali a fazer compras, pois não gostavam de as fazer de dia. Eu até queria
apreciar aquelas montras, mas não… ia de mão dada com a minha Tia que não me
largava e ainda por cima me puxava, não me deixava parar.
Nem uma palavra dizia e acho que às vozes daquelas senhoras
também pouco ligava. O que mais me custava era ir assim como se levasse na boca
uma forte mordaça. Eu era uma criança e estava naquela idade em que se está
sempre a falar.
Se tínhamos descido, agora era a subir, ali pela rua do
Loureiro. Onde havia sempre um ou outro padre, já cheio de sono, a bocejar e a
falar como dono do estabelecimento. Eu ouvia-os falar em ”estolas e casulas” e não
percebia nada.
A minha Tia agora já ia mais atenta ao que ouvia. Chegámos
lá acima ao largo, para entrar na Rua Chã e começava o negrume. Ali as terras
do bispo eram frias, ventosas e assustadoras. Eu começava a entristecer e a
compenetrar-me do sentimento religioso que tinha inspirado a nossa romagem. À
medida que nos aproximávamos das paredes negras da Sé, a solidão, a minha
tristeza, misto de enfado e de terror aumentavam, a ponto de me fazer tremer às
vezes.
Era agora por aquelas ruelas para baixo da Sé que a minha
Tia-Torta mais se firmava nos ruídos daqueles com que nos cruzávamos. As vozes
certas que ela procurava estavam por ali. Como ela dizia, até os bochechos
ouvia, pois tinha ouvidos de tísica.
Ela precisava de saber o que iria acontecer com os negócios
ou aqueles assuntos da família, sobre o dia de amanhã, que a mim nada diziam, pois
só o dia de hoje me interessava, e naquele dia nem esse.
A nossa romagem estava a chegar a aproximar-se do fim e o
meu medo ia ficando cada vez maior.
Já conseguia distinguir ali ao fundo a Capela da Senhora das
Verdades, mas que até podia ser a de Nossa Senhora da Conceição, que há mais e
também estava no altar ao lado, mas a das Verdades é só uma. Já via as portas –
a principal e as outras duas – uma de cada lado. Estavam fechadas, mas a porta
principal tinha dois ralos por onde se podia ver a Senhora. Muitas vezes também
por ali espreitei e vislumbrei a Senhora iluminada por uma luz que pendia
diante do altar-mor.
Naquele dia, eu também ia com maus pressentimentos.
Ajoelhámo-nos no degrau da porta, com as mãos postas e eu com o boné debaixo do
braço. Não sei se rezava ou o que rezava, enquanto a minha querida Tia orava
fervorosamente com os lábios colados a um dos ralos, como se estivesse a falar
com Nossa Senhora para dentro da ermida.
Tudo o que eu queria era ver-me dali para fora, o mais
depressa possível, poder quebrar o silêncio, desforrar-me de tão longa e
forçada mudez.
Mas nem no regresso falei, pois, a minha Tia vinha a remoer
na cabeça as vozes agradáveis ou desagradáveis que tinha ouvido. Será que
antegostava a felicidade que lhe tinha sido anunciada ou vergava já ao peso de
alguma profecia de desgraça, de algum aviso aziago, acreditando por igual uma e
outra coisa?
Não sei oque ela ouviu, sei que fomos às vozes e no dia
seguinte, o meu irmão mais velho foi às sortes e safou-se.
Inspirado em artigo de Alberto
Pimentel
em O Tripeiro, Série 3, Ano 1, nº 1
(1926), p. 5-6
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