Os Algibebes da Rua do Loureiro
Em 1928, recordavam-se n’ O Tripeiro, histórias de algibebes
da Rua do Loureiro, à data com mais de trinta anos. Por essa altura, os bons
algibebes, já tinham mudado, chamavam-se então “Alfaiates” e às suas portas,
cheias de casacos e sobretudos talhados à moda, já não figuravam as “calças de
boca de sino” nem as “jalecas de alamares espaventosos”.
Repare-se bem, isto foi publicado em 1928 – desdenhavam-se
“as calças de boca de sino” que foram grande moda nos anos 70, apenas
com uma pequena alteração na preposição “calças à boca de sino”. Quanto
às jalecas hoje ficaram para os Chefs, mas os alamares continuam. Quem não
cobiçava um casaco de fazenda preto ou cinzento, com uns debruados a vermelho e
uns vistosos alamares, nos anos 70, a encaixarem em casas de fita de couro?
Ai as modas que vão e vêm. Sempre disse a minha avó – “Guarda
as minhas coisas que a tua neta há-de vesti-las como grande moda.” Os bons conselhos antigos não se esquecem.
“Tudo isto é teu, para tua serventia”, cantava o Rui Veloso
e a minha avó dizia “Guarda o que não presta, terás o que precisas.” E quanto
ao agasalho, o conselho era:
- Mas hoje está sol! "Deixa lá, o que te abriga do frio, abriga-te do calor.”
Voltando às facécias dos algibebes de 1928, repico algumas
frases do jornal, que será uma pena perderem-se:
«A sua
maneira comercial não se alterou. Sentados à porta, passando a ferro ou
desfazendo alinhavos, eles lá continuam, de olhar atento, à espera do freguês
aldeão, que sempre aparece à cata de pechinchas, marralhador e exigente.
Quando
ele surge, desconfiado, mirando tudo com lentos vagares cautelosos, para que
não o explorem, com o seu ar de quem sabe muito bem o quanto pela cidade se
abusa da simpleza ingénua dos bons provincianos, a caça inicia-se, desesperada,
terrível.
Começa
por uma frase delicada, aliciadora, pronunciada com voz melífula:
- Se vai
comprar, faz o favor…
Mas o
freguês não se deixa tentar. Sem mesmo penetrar no estabelecimento, olha de
fora os exemplares dependurados à porta… então o algibebe vai-lhe no encalço,
toma-lhe o braço, busca seduzi-lo com o melhor da sua retórica:
- Olhe
que não encontra mais barato. Tenho de tudo…
E segue
um deslumbramento de vantagens, baratezas únicas, perfeições máximas, etc.
O freguês
começa a deixar-se levar, seduzido, meio convencido já. A sua resistência
amortiça, hesita: - Não, não. Eu, a bem dizer, não venho comprar nada…
- Ora
essa! Mas venha ver. Não paga nada por isso… Vitória! O freguês acede. Vencido,
entra.
Desdobram-se
as peças em diagonal, exibem-se os casacos, patenteiam-se os varinos, as capas
à espanhola, remexem-se de alto a baixos lotes pejados, por entre uma torrente
de palavras que deixa o pobre desorientado.
- Creia
que não encontra melhor. Veja est’ andaina, ora faça favor. Parece mesmo feito
para si… O bom camponês, sempre desconfiado, de olhar atento, observando os
forros, experimentando a segurança dos botões, palpando o tecido, acaba por
despir o casaco, sem deixar de se mostrar desinteressado, só para ver como lhe
fica.
Por fim,
entra-se na discussão do preço – luta tremenda em que freguês e vendedor medem
rudemente as suas forças, resistentes e invencíveis.
- Há
preços para todas as bolsas. Por pouco dinheiro tem uma andaina completa.
Mas o
comprador gosta de justar e o algibebe, que o sabe, pede, de entrada, uma
exorbitância, - o dobro. Marralham, discutem, um nota defeitos, outro observa
perfeições.
- Não dou
nem mais um tostão…
-Não, não
pode ser. Olhe por ser para si, fica-lhe por duas libras.
O freguês
não que, volta a afirmar que não veio para comprar e sai. Vai à porta de baixo.
A scena
repete-se e assim sucessivamente com os mesmos incidentes, os mesmos
pormenores. Por fim, realiza-se o contracto. Nunca é no primeiro, mas também
não é no último. O comprador retira-se satisfeito, convencido de que
pechinchou, e o vendedor conta os lucros, que tanto trabalho lhe custaram.
Depois na
rua, o infeliz, que vai todo ufano exibindo já a sua compra, a pensar no belo
dia triunfal que o espera lá na terra, quando se apresenta no adro da igreja,
após a missa domingueira com o seu lindo fato novo, é assediado cruelmente pela
sanha ressentida dos preteridos raivosos. Despedem-lhe ironias, atiram-lhe
chufas e um outro mais agarotado chama-o a rir!
- Pst, ó
freguez! Ele olha intrigado.
- Veja
que deixou cair os botões… e fica a ri-se da ironia, enquanto o outro se afasta,
encolhendo os ombros, bem sabendo que estão sólidos os botões do seu fato novo,
com que vai deslumbrar as raparigas da sua aldeia, em certa desejada tarde de romaria.
O jornalista S.C» Seja ele quem for/foi, abençoado seja.
Li numa “Gazeta de Espinho” que os anos amarelecerem, uma
notícia sobre ruas do Porto e a do Loureiro também era notícia, pelos mesmos
algibebes.
Nessa época os algibebes já eram diferentes. “…perseguem menos o transeunte, que
já pode transitar sem o cerco feroz, engalfinhante, invencível do algibebe
sôfrego de freguês. Também o primitivo regateio deliu-se. Dantes os grossos
capotes à prova de mau tempo, os casibeques de alamares tilintantes e as
pavorosas calças afuniladas constituíam objectos de mostruário e merca. Hoje a
obra diverge apenas no apuro do acabamento e na baeta vermelha do fôrro, dos
modelos da alfaiataria mais avançada do burgo”.
Germano Silva volta a lembrar os algibebes ainda este Setembro
de 2024:
«A Baixa
portuense já não é o que foi. A intensa vida comercial dos tempos passados está
a desaparecer.
Na Rua do
Loureiro já não há algibebes (vendedores de roupa feita) nem ourives de prata, que beneficiavam
da vizinhança dos mosteiros das monjas de S. Bento e dos conventos dos Loios e
dos Congregados, que eram os grandes “consumidores” de cálices, patenas,
diademas e outras alfaias religiosas.»
Quem se deu ao trabalho de contar as lojas, parece que
inventariou seis na Rua Chã e dezoito casas de algibebes na Rua do Loureiro.
A loja, ontem e hoje, prolonga-se
para a rua (Rua Escura (?) e Rua das Flores)
Podia dizer que a imagem da esquerda seria a Rua do Loureiro
à época, com as “fazendas” expostas cá fora. Mas parece que a imagem é muito
mais recente. E a da direita até é desta semana. São os novos albigebes da nossa urbe.
Está escrito e copiado aí pela rede, que rapazes trabalhavam a soldo dos algibebes da Rua do Loureiro, para “chamar o freguês” – ficavam à porta dos estabelecimentos e quando o cidadão se aproximava, empurravam-no para o interior.
Um incauto, não chamou a polícia, mas mandou carta ao “Jornal da Manhã” queixando-se "...É que é realmente inqualificável o proceder de toda aquela alfaiatada, decerto incapaz de matar uma aranha mas terrível quando assalta o transeunte, cercando-o como uma turba de galfarros endemoninhados, empurrando-o, puxando-lhe pelo casaco, uns de cada lado, até o rasgarem... » e obteve resposta de um mestre alfaiate, desafiando-o a indicar os prevaricadores, "se são todos ou alguns, e se não o fizer será tido como caluniador, pois não se deve lançar a carapuça em todas as cabeças..."
Hoje, experimente entrar em qualquer algibebe moderno de um shopping center e venha-me dizer que é que lhe liga. Quem lhe diz: “Tem aqui um andaina que lhe fica a matar!”
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