A Cruz das Regateiras
Setting - Lugar da Patusca junto às Barrocas, o
largo da Cruz das Regateiras e o início da Rua da Cruz, ali perto do Hospital
dos Alienados e mais abaixo, o lugar de Curraes.
Mas que riqueza
toponímica. Isto dá pano para mangas, mas hoje vou escolher só um – o Largo
da Cruz das Regateiras. Doutro modo, teríamos de fazer primeiro uma
patuscada, ali por baixo daquelas carvalheiras, na Patusca, calcorrear o monte
das Lamas, ali onde depois construíram o hospício e a água escorria para as
regueiras ou então ir até ao outro monte – o dos Currais, onde ergueram outro
hospital, esse para as doenças contagiosas, com o patrocínio de um benfeitor, Rodrigues
Semide.
Aquele monte das
Lamas também deixou de o ser para passar a quinta do Paço e depois a quinta da
Cruz das Regateiras, quando em 1868, por lá se deu início à construção do
Hospital do Conde de Ferreira. Águas e terra por ali nunca faltaram - eram 120.000 m2. Por ali sempre passou um caminho de almocreves para entrar na
cidade, vindos de terras mais longínquas ou próximas, que era foi tendo nomes
como a Estrada Real n.º 32, a Estrada de Guimarães à Aguardente, ou mesmo à
Baixa, até à Porta dos Carros. O topónimo mais vulgar era mesma estrada da Cruz
das Regateiras. Era trajecto especialmente
para aqueles e aquelas que vinham dar de comer à cidade, com os seus carregos
ou à cabeça ou nos carros de burros ou de bois.
Ali chegados, era
preciso pagar “o IVA”. Desde tempos imemoriáveis, reis e governantes quiseram
tirar dinheiro a quem produzia. Muitas formas e nomes houve para o fazer e sítios
para o receber. O Real de Água deve ter sido o último da realeza, mas os
republicanos criaram outros. Criaram-se as barreiras na Circunvalação, mas aqui
no Largo as posturas camarárias são anteriores a 1896, data de conclusão da
Circunvalação.
Aqui estavam os
fiscais junto à cruz para cobrar os impostos sobre os víveres e as mercadorias
que as vendedeiras traziam nos seus carregos. Germano Silva até refere uma espécie
de mesa de pedra em frente à cruz, que servia de balcão de cobrança. Cá vem a
dolorosa – pagar – quem pagava? As regateiras, que tinham ali a sua Cruz
à espera e que muitas vezes diziam as suas imprecações, rogavam as suas pragas
aos ditos cobradores, pelo que o termo passou também a designar uma mulher que
fala alto e de pouco recato, para não ir mais longe. Mas deixemo-nos de sexismos,
porque as vendas também eram feitas por mercadores e regatões. Mas agora, fiquemos
por aqui.
Tenho dúvidas se
foram estas vendedeiras que vinham lá de Ermesinde, da Areosa ou de terras da
Maia que deram nome ao lugar. A história é longa, porque gostaria de falar da Capela,
da Confraria do Santíssimo Sacramento e Senhor Jesus de Paranhos, destruída em
1916, para alinharem a rua, hoje de Costa Cabral, uma das mais longas e mais
direitas da cidade. A Confraria recebeu 1750$00 de indemnização por lhe
demolirem a Capela ali existente, conhecida apenas como do Senhor da Cruz e ainda
ficaram com as pedras e as imagens, nomeadamente a da Nossa Senhora das Dores,
essa sim de grande devoção, no último Domingo de Julho.
Ali, mais ou menos em frente à entrada do
Conde de Ferreira, esteve o tal cruzeiro - a cruz de pedra, com a data bem
cinzelada – 1729. Mudaram-na em 1916. Fui hoje visitar essa cruz. Já há tempos que
tencionava lá ir e desta vez fica o registo fotográfico da cruz das Regateiras
que não saíu de Paranhos, mudando-se para um local mais condigno com a sua
original função – nas traseiras da igreja da paróquia. Quanto ao largo da Cruz
das Regateiras, a foto é de agora… e as sentinas eram do outro lado.
Germano refere ainda as regateiras que trabalhavam como intermediárias e as posturas camarárias que tabelavam as aves de capoeira:
“as galinhas melhores, a quatro vinténs;
as frangas boas com crista a três vinténs; frangos bons a vintém e os mais
pequenos a quinze reis e os ovos a dous reis cada hum; perdizes e perdigões a
três vinténs e perdigotos a trinta reis”.
Recordo a minha
madrinha, a quem também podiam chamar regateira, porque vendia no mercado do
Anjo e depois no Bom Sucesso, mas que para mim já lhe chegava o emblema de
galinheira. Também ela passava pela Cruz das Regateiras, mas ia de eléctrico,
precisamente no carro atrelado, porque as abuízas com a criação não podiam ir
junto dos passageiros e as regateiras tinham de levar os cestos no carro de trás
que poucos bancos tinha – só espaço para a bagagem.
Ali no largo, também houve uma fonte (hoje ainda lá está um fontanário de ferro anexo ao candeeiro) para os vendedores e caminhantes se dessedentarem e sentinas, mictórios ou urinóis para os homens, como soía dizer-se, lamento não o ter fotografado, antes de o terem destruído e só ter encontrado um primo.
Quanto às
regateiras sabiam fazê-lo, também de pé, mas de outro modo. O guarda-freios do carro eléctrico (o que
conduzia) e o condutor (o que cobrava os bilhetes) também aí costumavam
aliviar-se.
Para fechar,
volto ao Germano Silva que nos ensina, que o largo também se chamou Largo de 25
de Março, evocando combates liberais, por ali travados, onde participou o
malogrado Coronel Pacheco, que morreu noutro combate, ali mais à frente na
Areosa.
Abro aqui mais
um parêntesis para o termo condutor. Nos vidros do eléctrico havia uma
frase com letras vermelhas coladas que dizia “SE ALGUMA JANELA ABERTA O INCOMODA,
PEÇA AO CONDUTOR QUE A FECHE”, Ora, não está a ver o guarda-freios a vir fechar
uma janela, pois não? Nalguns casos, a segunda parte da frase era simplesmente:
FECHE-A.
Quanto ao resto, são cenas dos próximos capítulos.
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