Uma caminhada ao longo do “corredor verde” do Leça é sempre
motivo para lembrar a nossa história, a infância e comparar com os tempos
actuais.
A passeata começou na Ponte das Varas, vá-se lá saber a
razão do topónimo, e começámos para ir estender o olhar, mais uma vez, à Ponte
da Pedra. Da literatura às viagens no eléctrico n.º 7, a designação foi
minha conhecida muito antes de ver o “monumento” com os meus olhos. O 7 ia para
Ponte da Pedra, mas eu saía sempre antes.
Hoje, os meus olhos procuravam as margens aprazíveis do rio,
onde os domingueiros do Porto e não só, iam refrescar-se, passando a tarde em
passeios de barco a remos, a dez tostões à hora. Aqui as memórias são
cinematográficas – recordo um documentário de 1930, que consultei na Cinemateca
e que podia ser AQUI visto,
mas que por qualquer motivo desapareceu. Valha-nos o YouTube, que ainda o conserva.
Hoje há fracos sinais do passado. À esquerda, na Godinho de
Faria, antes de chegar à ponte, só restam as paredes do que foi o Palacete da
Quinta da Ponte da Pedra.
Nem no ano de comemorações camilianas, os senhores do
dinheiro se dignaram deitar mão a estas paredes e às pedras que cada dia que
passa estão mais soltas e não nos deixam adivinhar o que ainda vemos nesta
imagem de 1930 - a Estalagem da Ponte da Pedra.
Está escrito que Camilo, homens de letras e do dinheiro, na época para aqui se vinham deleitar, não só com os manjares da mesa – “uma pescada cozida com todos” ou “um ensopado de enguias” mas com outros prazeres da carne, trazidos dos tabuados dos teatros do Porto – coristas, bailarinas e actrizes.
Os mais curiosos podem ler em “Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado” um pitoresco episódio, passado na Estalagem da Ponte da Pedra, numa homenagem a Mademoiselle Dabedeille, cantora do S. João. Camilo e amigos não convidados para a festa, conseguiram chegar à sala e por despeito, deram vivas à rival Madame Bellani, “feia, enfermiça, casada e por demais a mais honesta”. Ânimos alterados, apoiantes bem bebidos revoltaram-se e com copos de vinho a voar pelo ar, só não conseguiram bater em Camilo, que lhes temeu as facas, porque um “dabedeillista” o salvou, dizendo: “Alto lá, que isto é tudo borracheira!”.
Eu tenho dúvidas se a dita Estalagem ficava mesmo no Palacete, que mais tarde foi asilo de menores, lar de idosos, que depois vieram aqui para a “casa dos Pobres do Monte dos Burgos” e abrigo de outros necessitados. As descrições dos autores coevos não me permitem tiram mais conclusões. No documentário é possível ver o Restaurante - cervejaria Teixeira, em frente ao Palacete, no lado direito, à entrada da Ponte, vários carros de praça e até um eléctrico que ali terminava a sua marcha. Será que a Estalagem era no prédio deste restaurante? Aqui ficam as minhas dúvidas.
Sei que foi propriedade da Quinta da Ponte da Pedra foi de António
Augusto Correia Alves Guimarães, desde meados dos oitocentos até ao fim da 1.ª
Grande Guerra. A última herdeira doou o prédio ao Estado e cá estão as ruínas,
depois dos últimos incêndios, ficaram as pedras.
O que foi sempre muito reconstruída foi a ponte. Hoje
podemos classifica-la como medieval, embora as suas origens sejam romanas.
Talvez tenha sido a primeira ponte para travessia do Leça, na Via XVI do
Itinerário de Antonino que ligava Olisipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga),
no I ou II século d. C.
A actual travessia é uma ponte de betão dos inícios do
século XX, data em que a velha Ponte da Pedra passou a peatonal, mantendo-se
sempre ali ao lado. Pelo menos uma placa vai contando um pouco da sua história,
lembrando que fazia parte da “Estrada Velha”, a tal Via Veteris que saia do
Campo do Olival, passava pelo de Santo Ovídio, por ali abaixo até Arca d’ Água
e antes de chegar à Ponte da Pedra ainda tinha um ramal para o Mosteiro de Leça
do Balio, que é quase oito centúrias mais recente, do século X da alta Idade
Média. Deixemo-lo lá ao fundo, também entregue a outro “senhor do dinheiro” que
até contratou o nosso grande arquitecto para deixar marcas modernas no caminho
dos Hospitalários.
Ficam para outros caminhos, a Ponte de Ronfes e as pontes de Guifões, especialmente a do Carro, a mais bonita para mim, além da de Goimil, lá para a frente, já em Custóias. São todas pontes históricas, ainda hoje existentes, que merecem visita individual. Por falar em pontes do Leça, não posso deixar de dar nota das pontes que eu chamava “pontes romanas”, no meu caminho para a escola da Bela. Uma que eu mais usava, a montante, e a outra junto do moinho do Panelas, eram idênticas. Pontes à cota baixa, constituídas por compridas pedras de granito assentes em vários maciços de pedra, no meio do rio. Quantos invernos, não a atravessei, com água pelo meio das galochas, muito devagar, para não ser arrastado pela corrente.
Bem, procuremos disfrutar do passeio e da natureza, apenas.
Não passam despercebidas as obras de arte do “corredor verde” a atravessar o
Leça, nomeadamente a foz da Ribeira de Picoutos que entra no Leça a seguir a um
açude artificial, que faz agitar bem a água. Se lá ainda houvesse um moinho, de
certeza que se faria farinha. Quem da ribeira pouca farinha fez, foram os
nossos alunos na década de 80, que tantas campanhas ecológicas fizeram para
limpeza da Ribeira de Picoutos, o Leça continuou um dos rios mais poluídos do
país.
Para que se faça farinha é preciso grão e víamos um tractor
a semear milho em extensos campos lavrados à direita do Leça. Antes dizíamos
que “o primeiro milho é para os pardais”, hoje foi para as gaivotas, que por
ali abundavam com poucas pombas e meia dúzia de pegas rabudas, que iam
debicando nos regos acabados de semear pelo lavrador-tractorista.
Mais perto de nós, só a vegetação ripícola ou ripária, como
hoje se diz, mas que eu ainda chamo ribeirinha. Aqui e ali aparece uma plaquita
informativa, mas pouco, para os conhecimentos de um leigo de botânica como eu.
Quando eu era pequeno diziam-me “não percebes nada de agricultura e cria”,
o que não impedia de aproveitarem a mão de obra infantil, para o amanho do
quintal e dar de comer aos bichos, porque havia muitas bocas para sustentar.
Voltando às “ervas” que hoje vi, poucas conseguiria nomear, embora conhecesse algumas pelo seu nome vulgar, como as “línguas de vaca”. Uma pena não ter encontrado serradela para os grilos, nem leitugas para os coelhos. Beldroegas ou agriões para a sopa, não era ali o sítio, mas abundava a hortelã, na sua versão mais peluda, que em pequeno, eu confundia com erva-cidreira. Pensando nas ervas para o chá, falta-me o nome para uma infestante “irmã” da erva-príncipe. O aspecto é o mesmo, a forma esguia e triangular da folha, a textura áspera, só não tem o aroma da “princesa” que eu agora até cultivo na varanda. Para o chá, também servia o mastruço, só não usávamos as urtigas que hoje são tão beatificadas pelos herbologistas. Outra érva daninha, idêntica à príncipe, para mim, era a junça. Conheço-a desde os tempos da cultura da batata, quando entrava a família toda – um cavava a terra, outro abria o rego, outro chascava (quer dizer rapava uns cinco centímetros de terra com ervas para enterrar, previamente adubadas com estrume, por outro tirado da pilha e espalhado pelo campo), o mais pequeno punha as couves e as batatas e recomeçava o ciclo, com o cavador. Se a cavadeira apanhasse junça e cortasse os mini-tubérculos translúcidos, tínhamos a certeza que mais se alastraria no ano seguinte.
Pelo caminho ainda vi as dedaleiras, com as suas
flores roxas em forma de sininho e mesmo umas espécies invasores, em zona
identificada para serem eliminadas, chamam-lhes “bons-dias” e até são
bonitas. Bem identificado está um belo exemplar de carvalho-alvarinho,
com explicação da utilização da madeira, nos cascos para a boa pinga.
Má pinga estava logo a seguir, era tão fedorenta aquela água que víamos pingar para a “etar”, tal o cheirete que deixava no ar, que retrocedemos a sete pernas, sem vontade de continuar pelo “corredor verde”.
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