Desde pequeno que gostava de “ver ao longe”, no
sentido literal do termo, porque pensar no futuro, não era para tenras idades e
até a pergunta “o que queres ser quando fores grande” era respondida ao
sabor da ocasião, sem ambições de vida futura.
Quando digo “ver ao longe” era mesmo olhar para o horizonte,
que nesse tempo conseguia ver-se. Hoje, “l´horizon, cette ligne où le
ciel touche l’onde”, só mesmo na praia é que se vê.
O sol antigamente era para todos, iluminava as casas da
minha rua de um lado e doutro, umas horas para uns, umas horas para outros.
Hoje, vamos à janela e lá vemos o vizinho da frente, ou o dali do lado ou
aquele mamarracho ali mais à frente. Antes subia a qualquer picoto e conseguia
ver o horizonte.
Há dias, estava num desses sítios de onde antes via o mundo
inteiro e a panorâmica ainda era desafogada, mas a desolação também foi grande.
Recordo imagens de lá ao longe, do que hoje chamam as “Serras do Porto”, desde
o Rio Douro a todo o concelho de Gondomar, Valongo e por aí acima, que nos
oferecia uma mancha verde – “era tudo monte”, como dizíamos – hoje nessas
serras é quase tudo casas! Nesses locais, gosto de não perder o norte,
adivinhar o nome das terras, identificar as torres das igrejas, as chaminés das
fábricas desaparecidas ou até os novos mastodontes, que mesmo distantes não nos
deixam “ver ao longe”.
Voltando ao Rio Douro, vou agora até à Foz, relembrar os
pontos que os marinheiros procuravam para o Porto “ver ao longe”.
Como sou do tempo da piscina e da avenida do Fluvial, tenho de recorrer à imaginação ou às imagens de outros tempos para ver o vale do Ouro, por onde corria a minha vizinha ribeira da Granja, antes de se enfiar no rio. Como era vale, havia e há monte de um lado e de outro, mas como hoje estão cheios de casas ou arvoredo, não imaginamos o antigo cenário. Talvez umas fotos antigas ajudem. Cá vão – as setas assinalam a Capela do Senhor e da Senhora da Ajuda na margem direita e a Capela de Santa Catarina na margem esquerda da ribeira.
Na primeira fotografia, estavam a abrir a avenida do Fluvial
e vemos por trás da capela toda aquela mancha branca, que hoje é um parque onde
as árvores cresceram e engoliram a capela e a vista para o/do mar. Na segunda,
vemos lá em cima a Capela de Santa Catarina. Eram ambas os pontos de referência
naturais, mesmo antes dos faróis, para os navegantes que a ambas pediam
protecção.
Vamos agora à história, para saber qual das capelas teve a
primazia de primeiro servir os marinheiros que abordavam à barra do Douro. Reza
a dita, que no dia 8 de Outubro de 1395, D. João I assinou uma carta de doação.
Aí se dizia, que na maior parte dos portos de mar costumava haver uma igreja em
honra a Santa Catarina e no Porto não havia, daí o Rei permitir aos marinheiros,
fazer a dita igreja “sem outro embargo”, precisamente no local do monte onde
hoje a vemos, que o rei definia assim “em um outeiro está um nosso
pardieiro, o qual está ermo e descoberto há grande tempo” podem usar ”toda
a pedra e terreno ali existente”. Curiosa a designação “pardieiro”,
segundo o “Elucidário” do Fr. Rosa Viterbo, não teria o sentido
pejorativo que hoje muitas vezes damos ao termo, era simplesmente o mesmo que
“paredeiro”- uma casa derribada e posta já em ruína, deserta e desabitada.
Isto pode levar-nos a supor a existência de qualquer edificação anterior à
capela, que deveria ter sido construída pelos finais do século XIV ou inícios
do seguinte. No século XIX, a capela sofreu melhorias e a Nossa Senhora dos
Anjos aliou-se à Santa Catarina, pois intercedeu num milagre da barca Comércio
e Indústria, conforme lá reza uma placa votiva de 1848.
Falando em milagres, temos de dar o salto para a capela da
outra margem – a Capela do Senhor e da Senhora da Ajuda, também
protectores dos navegantes e dos carpinteiros navais. Lembremo-nos que ali no
sopé dos montes ficavam os estaleiros do Ouro, onde foram construídas as
embarcações para a expedição a Ceuta e para outras conquistas em África. Esta
capela só deve ter sido construída nos finais do dezasseis, inícios do
dezassete, embora as referências documentais sejam até mais tardias, Frei Agostinho
de Santa Maria refere-se a ela como a “Ermidinha da Ajuda”. Joel Cleto,
num número de “O Tripeiro”, conta-nos a lenda que envolve a construção desta
capela.
Catarina Fernandes, de Miragaia, teve visões de Nossa
Senhora, que lhe pedia para ir procurar ali no monte uma imagem sua, que
deveria estar junto de uma fonte e uma pomba iria ajudá-la. Foi tarefa difícil,
numa época em que o monte tinha muita vegetação, mas lá encontraram a fonte, a
pomba e a imagem no meio das silvas. Era o dia 18 de Dezembro, dia da
Expectação e decidiram chamar-lhe Senhora do Ó (estava grávida ou de
esperanças). Com ajuda financeira de amigos aí construíram uma capela para
guardar a imagem. O maravilhoso viria a seguir – a imagem desaparecia da capela
e voltava para o monte, ficando a olhar para o mar. Estava à espera de outro
milagre. Certo dia, passou em frente à barra uma esquadra de nove embarcações
vindas de Inglaterra. Como na história do “Bom Barqueiro”, a esquadra por
ali passou, mas o último deixou – ficou encalhado e não havia meio de o
libertarem. Só quando descobriram que, lá dentro, vinha uma imagem de Cristo e
a levaram lá para cima para a capela da Ajuda, conseguiram desencalhar o barco.
Então Nossa Senhora juntou-se ao seu filho e a capela passou a designar-se “do
Senhor e da Senhora da Ajuda”.
Ainda há pouco por lá andei e subi ao miradouro de Santa
Catarina, pela Calçada do João do Carmo, pela Travessa e Rua do Senhor
da Boa Morte, espreitando sempre as águas lá em baixo. Tinha esperança de
ver o que o Rui Veloso cantava, mesmo ao contrário, “da Foz até à Ribeira”, mas
os meus olhos já não vêem ao longe, ainda que sempre me dissessem que para ver
ao longe nunca iria precisar de óculos. Mas com tanta modernice imobiliária,
nem com óculos consigo “ver ao longe”.