domingo, 29 de junho de 2025

Os olhos já não vêem ao longe

 

Desde pequeno que gostava de “ver ao longe”, no sentido literal do termo, porque pensar no futuro, não era para tenras idades e até a pergunta “o que queres ser quando fores grande” era respondida ao sabor da ocasião, sem ambições de vida futura.

Quando digo “ver ao longe” era mesmo olhar para o horizonte, que nesse tempo conseguia ver-se. Hoje, “l´horizon, cette ligne où le ciel touche l’onde”, só mesmo na praia é que se vê.

O sol antigamente era para todos, iluminava as casas da minha rua de um lado e doutro, umas horas para uns, umas horas para outros. Hoje, vamos à janela e lá vemos o vizinho da frente, ou o dali do lado ou aquele mamarracho ali mais à frente. Antes subia a qualquer picoto e conseguia ver o horizonte.

Há dias, estava num desses sítios de onde antes via o mundo inteiro e a panorâmica ainda era desafogada, mas a desolação também foi grande. Recordo imagens de lá ao longe, do que hoje chamam as “Serras do Porto”, desde o Rio Douro a todo o concelho de Gondomar, Valongo e por aí acima, que nos oferecia uma mancha verde – “era tudo monte”, como dizíamos – hoje nessas serras é quase tudo casas! Nesses locais, gosto de não perder o norte, adivinhar o nome das terras, identificar as torres das igrejas, as chaminés das fábricas desaparecidas ou até os novos mastodontes, que mesmo distantes não nos deixam “ver ao longe”.

Voltando ao Rio Douro, vou agora até à Foz, relembrar os pontos que os marinheiros procuravam para o Porto “ver ao longe”.

Como sou do tempo da piscina e da avenida do Fluvial, tenho de recorrer à imaginação ou às imagens de outros tempos para ver o vale do Ouro, por onde corria a minha vizinha ribeira da Granja, antes de se enfiar no rio. Como era vale, havia e há monte de um lado e de outro, mas como hoje estão cheios de casas ou arvoredo, não imaginamos o antigo cenário. Talvez umas fotos antigas ajudem. Cá vão – as setas assinalam a Capela do Senhor e da Senhora da Ajuda na margem direita e a Capela de Santa Catarina na margem esquerda da ribeira.

Na primeira fotografia, estavam a abrir a avenida do Fluvial e vemos por trás da capela toda aquela mancha branca, que hoje é um parque onde as árvores cresceram e engoliram a capela e a vista para o/do mar. Na segunda, vemos lá em cima a Capela de Santa Catarina. Eram ambas os pontos de referência naturais, mesmo antes dos faróis, para os navegantes que a ambas pediam protecção.

Vamos agora à história, para saber qual das capelas teve a primazia de primeiro servir os marinheiros que abordavam à barra do Douro. Reza a dita, que no dia 8 de Outubro de 1395, D. João I assinou uma carta de doação. Aí se dizia, que na maior parte dos portos de mar costumava haver uma igreja em honra a Santa Catarina e no Porto não havia, daí o Rei permitir aos marinheiros, fazer a dita igreja “sem outro embargo”, precisamente no local do monte onde hoje a vemos, que o rei definia assim “em um outeiro está um nosso pardieiro, o qual está ermo e descoberto há grande tempo” podem usar ”toda a pedra e terreno ali existente”. Curiosa a designação “pardieiro”, segundo o “Elucidário” do Fr. Rosa Viterbo, não teria o sentido pejorativo que hoje muitas vezes damos ao termo, era simplesmente o mesmo que “paredeiro”- uma casa derribada e posta já em ruína, deserta e desabitada. Isto pode levar-nos a supor a existência de qualquer edificação anterior à capela, que deveria ter sido construída pelos finais do século XIV ou inícios do seguinte. No século XIX, a capela sofreu melhorias e a Nossa Senhora dos Anjos aliou-se à Santa Catarina, pois intercedeu num milagre da barca Comércio e Indústria, conforme lá reza uma placa votiva de 1848.

Falando em milagres, temos de dar o salto para a capela da outra margem – a Capela do Senhor e da Senhora da Ajuda, também protectores dos navegantes e dos carpinteiros navais. Lembremo-nos que ali no sopé dos montes ficavam os estaleiros do Ouro, onde foram construídas as embarcações para a expedição a Ceuta e para outras conquistas em África. Esta capela só deve ter sido construída nos finais do dezasseis, inícios do dezassete, embora as referências documentais sejam até mais tardias, Frei Agostinho de Santa Maria refere-se a ela como a “Ermidinha da Ajuda”. Joel Cleto, num número de “O Tripeiro”, conta-nos a lenda que envolve a construção desta capela.

Catarina Fernandes, de Miragaia, teve visões de Nossa Senhora, que lhe pedia para ir procurar ali no monte uma imagem sua, que deveria estar junto de uma fonte e uma pomba iria ajudá-la. Foi tarefa difícil, numa época em que o monte tinha muita vegetação, mas lá encontraram a fonte, a pomba e a imagem no meio das silvas. Era o dia 18 de Dezembro, dia da Expectação e decidiram chamar-lhe Senhora do Ó (estava grávida ou de esperanças). Com ajuda financeira de amigos aí construíram uma capela para guardar a imagem. O maravilhoso viria a seguir – a imagem desaparecia da capela e voltava para o monte, ficando a olhar para o mar. Estava à espera de outro milagre. Certo dia, passou em frente à barra uma esquadra de nove embarcações vindas de Inglaterra. Como na história do “Bom Barqueiro”, a esquadra por ali passou, mas o último deixou – ficou encalhado e não havia meio de o libertarem. Só quando descobriram que, lá dentro, vinha uma imagem de Cristo e a levaram lá para cima para a capela da Ajuda, conseguiram desencalhar o barco. Então Nossa Senhora juntou-se ao seu filho e a capela passou a designar-se “do Senhor e da Senhora da Ajuda”.

Ainda há pouco por lá andei e subi ao miradouro de Santa Catarina, pela Calçada do João do Carmo, pela Travessa e Rua do Senhor da Boa Morte, espreitando sempre as águas lá em baixo. Tinha esperança de ver o que o Rui Veloso cantava, mesmo ao contrário, “da Foz até à Ribeira”, mas os meus olhos já não vêem ao longe, ainda que sempre me dissessem que para ver ao longe nunca iria precisar de óculos. Mas com tanta modernice imobiliária, nem com óculos consigo “ver ao longe”.


 

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Conquista de Abril – a luz para todos

 


Outro “bom-bom” do “no meu tempo é que era bom” foi a chegada da luz eléctrica. Nas cidades já dela gozavam desde os tempos régios, mas quando se saía para o interior, o cobre era caro para estender os cabos aos pontos mais afastados do povoado. Hoje só damos o devido valor à electricidade quando acontece o “apagão”.

In illo tempore, os apagões eram frequentes e não dávamos tanto valor à falta de luz. Na verdade, na maioria das casas, a energia eléctrica era só para a iluminação. “Olha, faltou a luz!”. Não era a energia eléctrica que faltava, essa fazia falta lá nas fábricas ou sei lá…

Nas casas, começou a ser precisa para a rádio, depois em cidades onde o preço da energia tinha custos controlados, como no Porto cidade, entraram os primeiros electrodomésticos – o fogão eléctrico e o cilindro para aquecer a água.

Lá volto eu ao “ainda sou do tempo em que …” vivíamos à luz da candeia e do candeeiro a petróleo.

A candeia não servia para ler, mas a minha avó mantinha a candeia acesa durante muitas horas. Uma luz mais forte do que uma vela, no meio da escuridão, enchia a cozinha. Lembro-me que também servia para economizar fósforos. Para acender o fogão, pegava em meia folha de papel de jornal, fazia um charuto enrolado, acendia-o na candeia e metia-o na fornalha do fogão, onde já estavam uns pauzinhos que não davam para os brinquedos, mas iam servir para os pedaços maiores pegarem.

Para eu estudar, ler ou fazer os deveres, como a luz da cozinha era muito alta, precisava de mais luz na mesa. Para isso tinha um candeeiro, não era eléctrico, mas sim um candeeiro a petróleo.  Era de vidro, com um reservatório para o combustível. A cabeça de metal – “o rezisto”, com uma rodinha que permitia subir mais ou menos a torcida, que era uma fita mais larga, um centímetro e meio, para dar mais ou menos luz, consoante o tamanho que estivesse fora do registo. Para não nos queimarmos, isso estava coberto com uma campânula de vidro, - a chaminé, que funcionava como difusor da luz. De vez em quando, fazia asneira, entornava o candeeiro em cima da mesa de mármore e lá ia a chaminé.

Já agora para aquecer os pés, a escalfeta da altura era a braseira, uma bacia de esmalte com brasas retiradas do fogão, que se punha debaixo da mesa, que até tinha um buraco adaptado para a bacia. Outro sistema de aquecimento era a botija de barro vidrado que se enchia de água a ferver e se levava para a cama, ou se punha numa giga debaixo da mesa para aquecer os pés. Às vezes também havia acidentes, quando lhe saltava a rolha e então se fosse na cama...  é que o folhelho não secava facilmente!

Portanto à época não havia electrodomésticos, não era preciso a electricidade. Por exemplo, vivíamos sem frigorífico. A leiteira trazia-nos de manhã o leite, fervíamo-lo e ia para o mosqueiro uma parte do armário, com porta de rede de mosqueiro, precisamente para não entrar mosca nem mosquito, ou então para uma outra caixa de rede pendurada no tecto, para ter as coisas ao fresco.

A televisão não fazia falta, porque por cá, ainda era um luxo reservado só para alguns.

O telefone funcionava sempre, mesmo que faltasse a luz, porque a voz andava em fios separados, não era como agora em que a fibra óptica leva tudo. Falta a luz, falta tudo.

Nesse tempo o prefixo “tele” que significa “ à distância” pronunciava-se “tele” se o equipamento ou serviço já não fosse novidade ou “téle” se fosse recente.  Por isso dizíamos “telefone” e “télevisão”, “telegrama” e “téléx, “téléfax” ou “télécópia” ou “télepatia”. Não se admirem por ainda haver “téle-comandos” na vossa casa”. Até há pouco tempo, era preciso levantar o rabo para mudar de canal.

Para preparar a comida, a energia também não fazia falta, pois o fogão era a lenha, ou usavam a máquina de petróleo, ou mais tarde o fogão a gaz – “Gazcidla – Uma chama viva onde quer que viva!” - era o slogan da época.

Hoje falta a energia e o mundo pára. Basta recordar o último apagão que deixou portugueses e espanhóis de cabeça perdida. E nem chegou a meio-dia sem energia… As pessoas não sabiam o que fazer, não porque lhes tivesse feito falta a luz da lâmpada que não acendeu ao gesto automático de carregar no interruptor…

Todas as máquinas que hoje fazem girar o mundo começaram a parar. Foram valendo geradores e baterias que iam mantendo os relógios a funcionar, senão até o tempo parava.
Muito comércio deixou de vender, porque o scanner não sabia ler o preço do produto, a máquina registadora não abria a gaveta, o cartão de plástico de nada servia, e nalguns casos até a porta não abria, para nos deixar entrar. Quantos não ficaram com o carro fechado na garagem, quantos não tiveram de subir e descer as escadas, porque os elevadores não funcionavam…

Nestas alturas reconhecemos que a electricidade foi a maior invenção da humanidade. Hoje já há a “electricidade portátil”, inventada há muitos anos quando também tive a primeira lanterna o um transístor japonês – o meu primeiro rádio a pilhas. Hoje a pilha passou a bateria (à inglesa) e não gadget que dela não precise. Usam a tal “electricidade portátil”, mas não se esquecem precisam sempre da outra para a carregar.

Falando em gadgets, recordo uma canção francesa, onde o autor enumera os bens necessários para seduzir uma pretendida “dona de casa”.
Nesse tempo, o progresso custava a chegar cá. Lá fora as coisas chegavam mais depressa.

Basta ouvir essa canção do Boris Vian, que cantou “La Complainte du Progrès”, na década de 50, quando eu tinha dois anos.

Atentem bem nestas “modernices” e pensem quanto tempo foi preciso para as vermos cá. Hoje, são muitas as que já precisam de bateria. Cá vai a lista:

“un frigidaire, un scooter, un atomixer, du Dunlopillo, une cuisinière, un fou en verre, des pelles à gâteaux, une tourniquette pour faire la vinaigrette, un bel aérateur, des draps qui chauffent, un pistolet à gauffres, un èvier en fer, la poêle à mazout, le cire-godasses, le repasse-limaces, un tambouret à glacê, un chasse filou, un ratatine-ordures, un coupe friture, un efface poussière, un chauffe-savates, un canon à patates , un éventre-tomates, un écorche-poulet….”

 

E na “prochaine fois” hei-de traduzir isto tudo.

Viva a electricidade!

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Conquista de Abril – as Águas

 



   

Os saudosistas do “no meu tempo é que era bom” que têm a sorte de estar vivos podem gozar o seu “bom tempo” hoje. Vou começar pelo “bom” da água – era um bem da natureza, mas nunca foi ubíquo nem universal. Nascentes, minas, fontes, rios, mares e até oásis só estavam à porta dos afortunados. A civilização teve de a ir buscar e levar até à casa de cada um.

Antes do 25 de Abril, a rede pública de abastecimento de água não existia. A sorte protegia os afortunados que tinham uma mina de água perto de casa, que tinham feito um furo ou construído um poço no seu terreno. Mesmo esses viveram melhores ou piores dias consoante as evoluções tecnológicas e o dinheiro para delas usufruir.

Recordo que na casa onde nasci havia um poço de água. Na cozinha já era possível aquele gesto automático de abrir uma torneira e dela jorrar a água. Mas como chegava do poço à torneira? Tinha de ser guardada primeiro num depósito, à data de fibrocimento, material que continha amianto, produto que garantia boas capacidades de isolamento contra frio e calor. Hoje, proibiram-no por descobrirem que era cancerígeno - “no meu tempo é que era bom”.

Era preciso elevar a água do poço até ao depósito – trabalho que até uma criança como eu já sabia fazer – “Vai dar à bomba!” E lá ia eu, tirar a água, dando voltas e mais voltas à bomba de volante. Talvez tenha sido aí que aprendi a contar até mil. Mil voltas não enchiam um depósito de 500 litros. Quantas mil voltas não era preciso dar…

A bomba de volante era um arco de ferro, com quatro raios e um volante – um ferro em forma de Z, com que fazíamos girar o arco. Esta era a parte visível. Até servia de brinquedo. Depois de várias voltas, debruçava-me com a barriga no ferro e o meu corpito subia e descia. Tudo isto sem a avó ver, é claro, porque o risco de cair e rachar a cabeça, no chão de pedra, ou ficar com as pernas entaladas nos ferros da bomba era bem real.

A parte não visível da bomba estava reservada para os grandes. Um deles era o Paulino funileiro, que também fazia de picheleiro e descia ao fundo do poço para limpar a pinha. Era uma bola oval de latão, toda aos furinhos, que estava atarraxada no fundo do tubo de pesca que aspirava a água. O Paulino desentupia os buraquinhos e a água voltava a subir com facilidade. Ele tinha o prazer de deixar a pinha a brilhar de tal modo que parecia feita de ouro.

Outro dos grandes podia ter sido eu, que tive a sorte de fazer mais do que a 4.ª classe e estudar física. Ensinaram-me o funcionamento do êmbolo, que embora não o visse dentro da máquina a vapor do James Watt no século XVIII, vi e reparei êmbolos na nossa bomba, nas bombas para encher as câmaras de ar das bicicletas e até vi êmbolos a sugar Terramicina, na seringa que a enfermeira fervia em caixa de metal, para dar a injecção à minha avó. Deixemos a física em paz.

Ou talvez não, porque outra melhoria não tardou a chegar – a força motriz do motor eléctrico. O meu pai tinha chegado da Venezuela, trazia alguns patacos e era preciso dar algum conforto à casa. Mandou pôr um motor eléctrico na bomba – um motor Rabor e deixámos de dar à bomba para que a água chegasse ao depósito. Nessa altura até se enchia o tanque de lavar a roupa que ficava ali junto ao poço. Havia mais roupa para lavar e já não chegavam as bacias que a minha avó usava. O “desperdício” de água era maior. Quando se abria o tanque a água escorria para o quintal e já era demasiada para regar as novidades. Foi preciso aumentar a fossa sumideira para ir acumulando a água “desperdiçada”.

Reparemos que até agora só falei em dois pontos de saída de água – na cozinha e no tanque. Comer e andar com a roupa lavada era o mínimo, mas e as “águas sujas”. Sim, porque bebíamos a água e comíamos, mas sempre se deitou fora “o resto”…

Voltemos às conquistas de Abril – o quarto de banho e o saneamento básico.

Na minha infância, só se chamavam “as retretes”. Cheiravam mal e por isso não estavam dentro de casa. No meu avô, a retrete era um casoto lá muito no fundo do quintal. Na casa da minha avó materna tínhamos duas, também fora de casa. Uma para nós, os patrões, outra para os operários da fábrica. A nossa tinha sanita, um lavatório e um caixote de madeira, tipo paliteiro, com uns 70 cm de altura, onde deitávamos os rectângulos de papel de jornal, que estavam espetados num prego, depois de limpar o “ofeguines”. A retrete dos operários era só um banco de madeira, a toda a largura da parede, com um buraco no meio. O chão também era de madeira e as tábuas não eram pregadas. Estavam soltas, porque de vez em quando era preciso levantá-las e, com o ”côco d’água choca”, tirar algum “conteúdo” e ir deitá-lo na fossa do quintal.

Não havia quarto de banho, porque não havia banho. Isso tomava-se no Rio Leça onde se aprendia a nadar e a tomar banho. Em casa, havia o lavatório – uma peça constituída por um arcanho de ferro que sustentava uma bacia de esmalte, com um furo no meio, com tampa, onde lavávamos a cara e as mãos. A água caía, por um caninho, para um balde que ficava por baixo, para aparar essa água. Não despejávamos para a rua, nem dizíamos “Vai água”, ia simplesmente para o passeio do quintal. Para lavar as partes pudibundas e o resto do corpo havia uma bacia de zinco, com fundo de madeira, e nos dias mais frios tínhamos direito a água aquecida na caldeira do fogão a lenha. Talvez levasse uns três litros, por isso o banho não podia ser muito grande.

Os tempos mudaram e a residência também. Fomos para casa do meu avô. As condições de água e saneamento até eram piores. Aí o meu pai começou a fazer as “obras básicas”…

Também lá havia um poço, mas não tinha bomba de volante, nem motor Rabor para tirar a água. Tinha uma picota por cima do poço. Lá vem a física outra vez. O sistema era parecido – um tubo de pesca, um cilindro com êmbolo dentro, só que o modo de acionamento era a alavanca – um pau de madeira que se puxava para cima e para baixo. Para encher um baldito de água chegava, mas se fosse preciso encher o tanque eram horas a dar ao braço.


Também já me dói o braço de escrever à mão…
Até ao próximo, “no meu tempo é que era bom”.

P.S. Ainda me restam algumas forças para deixar duas linhas sobre a resistência à mudança.

Quando se ambicionava pela universalidade do abastecimento de água e do saneamento básico, havia muitos portugueses “resistentes”. Até tinham água de poço de graça, às vezes inquinada, e as águas “menos limpas” com as águas da chuva, lá corriam pela valeta abaixo.

Para ter água canalizada era preciso pagá-la e o saneamento exigia obras e grandes taxas. O dinheiro não abundava e resistia-se ao saneamento básico que teve de ser OBRIGATÓRIO!

Muito mais de meio século passou desde estes tempos, mas hoje dia 25 de Junho de 2025, foi notícia de telejornal:

“518 mortes em 2023, em Portugal, por ingestão de água imprópria ou por falta de higiene. Maiores de 85 anos entre as vítimas mais afectadas”.

E esses continuavam: no meu tempo é que era bom”.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Perdigão perdeu a pena / Não há mal que não lhe venha

Perde a pena de voar,

Ganha a pena do tormento,

Não tem no ar nem no vento

Asas com que se sustenha

Não há mal que lhe não venha.

….



Finalmente consegui baixar a pena. Há muito que não voava e é triste andar em baixo. Talvez o mês de Camões ou aquele que vi vestido à “Trinca Fortes” falando do “céu da língua”, me tenham obrigado a voltar à pena, para as velhas imagens ficarem registadas em palavras.

Hoje não há tema e temo começar com assunto melindroso – a bruxaria, o sobrenatural, o inacreditável, o assunto temível que tanto medo me infundiu na infância. Não é tempo de exorcizar imagens passadas, apenas partilhar momentos que foram gravados a tinta da china ou a tinta azul indelével, como a água tingida que saía do canhão de água, que aparecia logo a seguir ao “carro nívea” (o volkswagen da polícia), quando nos “ajuntávamos” na Praça em dias festivos.

Comecemos pela “crendice”. Acho que este poder estava reservado aos mais pobres, aos desfavorecidos, aos que diariamente lutavam contra as agruras da vida. Não recordo ninguém “bem na vida” que tivesse o dom da crendice. Mas quem sofria coitas de amor, negócios que não prosperavam, vizinhos que os tolhiam, mau olhado, ‘andaço’, sei lá quantas desgraças eu não poderia enumerar para justificar as razões  do ”crente” recorrer a serviços de uma “mulher de virtude”, que muitas vezes até era um homem. Podia ser uma curandeira, um adivinho, um endireita, um talhador de trasorelho (ui, quando o tínhamos até as gónodas inchavam), “bruxa” é que nunca – “eu não sou bruxa!”  - mas para mim eram todos ”bruxos/as” e eu tinha-lhes medo.

O medo começava pela tradição oral, pelas histórias que me contavam, pois as palavras, para mim nessa altura, ainda eram comboinhos de letras. Mas eu tinha de me fazer à vida, a minha avó mandava e eu obedecia: “Vai ao talho e traz-me um quarto de carne de cozer da de vint’oito, e não te esqueças do troco”.  Eu lá ia, um bom quarto de hora de caminho, com três moedas de prata de vinte e cinco tostões na algibeira, sempre pela quelha depois de passar pela Igreja, sabendo que tinha de passar pela casa da bruxa. Era a A. bruxa, que não me recordo de nem sequer ver à janela, pois quando faltavam uns 100 metros eu começava a correr - cada vez que passava melhorava o meu record - e só parava dentro do talho. O marchante lá me aviava, sem contra-peso e nunca faltou a c’roa de troco. Sim, porque naquele tempo não era como agora, com estas balanças que até o vento pesam e nunca pagamos o peso que pedimos, é sempre mais. -“Cem gramas de fiambre, por favor”. - “Tem mais um bocadinho, pode ser?” – “Que remédio!

As histórias que ouvíamos também eram muito repetitivas… o repertório era curto e eu decorava a da “ponte dos sete arcos” que se abria quando eu lá passasse, se naquele dia tivesse dito uma mentira ou a dos que de noite estavam à porta do cemitério a contar “dois para ti, dois para mim, dois para ti, dois para mim e agora vamos buscar os que estão lá fora” e eu pensava que estavam a dividir os mortos e afinal eram só os rebuçados que tinham roubado.

De todo o tipo de anúncios que astrólogos, videntes e artistas destas artes espalham pela comunicação social, recordo um tal Professor Bambo.

Faltam-me os anúncios do Professor Bambo, que eu lia no Notícias, mas já era grande e não tinha medo. Agora, o dito vidente até tem conta no Instagram[AC1] 
Mas a minha memória vai mais fundo neste capítulo e até para o futebol aparecem “os mentalistas” – um “parapsicólogo” - o Professor Zandinga, com ganhos de fama no F.C. do Porto, nos anos 80. O FCP pagava-lhe e ele previa que o Benfica ia ser campeão! Foi logo para o Penafiel, pela mão do António Oliveira…
A tal memória baixa aos anos 60 e 70 e por aí as coisas piavam mais fino. Fugia das histórias do “Manel da Cêra” – ele contava que tinha de ter sempre um caderno à cabeceira da cama, porque de noite erguia-se e a sua mão escrevia - relatórios médicos do Dr. Sousa Martins, textos em línguas estranhas ou inéditos de Camilo, de Eça ou de Alexandre Herculano. Logo eu que nessa altura andava a ler ”A Dama Pé de Cabra” do Herculano, arrepiava-me todo.
Nos anos 70, era marçano encartado e já tinha tirado o curso para aviar as “receitas das bruxas”. Para simplificar o esquema vamos chamar-lhe só “defumadouros”. Como tinha o curso de paleografia, conseguia interpretar os ingredientes: “alecrim, incenso e mirra” eram a base principal, depois havia uns suplementos, para males específicos – umas folhas de arruda para afastar o mal-olhado, “uns grãos de mostarda” que estalavam ao serem queimados com as ervas e tinham o poder de afastar os maus espíritos, “um sal azedo” ou “uns sais de potassa” eram recomendados para outros fins.
A “bula” vinha sempre com a posologia, modo de fumegar a casa ou o corpo em questão com o dito defumadouro, que deveria ser feito em telha nacional e o cuidado em deitar as cinzas em determinado lugar, também consoante as maleitas que se estavam a tratar. Por exemplo, se queríamos que determinado amor ou negócio florescesse, as cinzas teriam que ser deitadas em erva fresca que nunca fosse cortada.
Para os males ”entranhados” no corpo era preciso um “purgante”. Aqui a receita era muito variada, mas sempre à base de ervas medicinais, que ainda hoje pode ir à sua ervanária favorita e abastecer-se.
Deixo só alguns exemplos que nunca fizeram mal a ninguém, mas prescritos pelo bruxo da Areosa ou pelo Penteeiro – o bruxo de Alfena, tinham um especial poder – Folhas de sene, amieiro preto, calutéa, raiz de Bryone, cuscute, feno grego, o nerprum ou a sempre noiva tinham as melhores propriedades purgativas e laxativas. Cuidado com a estanca-cavalos que pode produzir efeitos purgativos muito violentos.  
Por vezes era preciso produzir o efeito contrário, mas atenção porque usadas em excesso até podiam levar à prisão de ventre – eram as plantas adstringentes – flores de sabugueiro, murta, erva benta, bistorta, pimpinela ou salgueirinha contam-se entre as mais eficazes.
Outro grande mal da época eram as “bichas” - “Olha, o neto da minha vizinha, até deitou bichas pela boca”. A culpa parece que era da carne de porco e recordo quando os meus filhos nasceram a pediatra teve muita preocupação em receitar sempre medicamentos vermífugos contra os oxiúros. Mas plantas vermífugas também não faltavam e se quiserem evitar as drogas podem recorrer a folhas de absinto, dentes de alho, matricária, santolina ou tasneira.
Muito mais vulgar e ervas de uso geral eram a parietária, a malva, a tília, a camomila, a cidreira, a melissa, a cavalinha, o ‘pericão do Gerez (comiam sempre o ‘hi’ inicial) ou o trio composto por fragária, pés de cereja e barbas de milho, se houvesse queixas da bexiga.
Hoje, voltando às palavras deixo algumas ervas, com nomes que convém decorar antes de entrar na ervanária. Cá o bruxo recomenda-vos:
A salsaparrilha, a quelidónia, a artenúsia e a aristoláquia (plantas emenagogas), a fedegosa, a pilosela, a saxifrágia e para acabar dois calmantes, para beberem uma chávena, depois de tudo isto - a argemona e o marroio que é um bom calmante, difícil de tomar, pelo seu cheiro detestável.
Purgem-se bem e cheirem o manjerico com as mãos, que é São João.

 [AC1]



segunda-feira, 2 de junho de 2025

A Fábrica da Sola na Quinta do Tronco

Se quisermos recuar no tempo, podemos voltar à época em que o lugar se grafava “Tronquo” e a Quinta era prazo do Cabido da Sé do Porto. Horácio Marçal avança com a hipótese de a quinta ter algum tronco ou cepo mais ou menos famoso que viesse a dar nome também ao lugar.

O foro anual era de seiscentos réis em dinheiro, dois alqueires de trigo, vinte e nove de pão meado, cinco galinhas; e de lutuosa seiscentos réis em dinheiro e duas galinhas; com o laudémio de 4-1 que, pela faculdade que os enfiteutas tinham para subemprazar, fizeram três emprazamentos de terras que ficavam fora da referida quinta, mas que a ela pertenciam, com possuidores registados em 1777”. 

Deste texto, muitos factos tenho ainda a esclarecer – “foro, lutuosa, laudémio e enfiteutas”. Mais tarde, vou abrir um capítulo só para aclaração destes conceitos. Mas hoje fiquemos pela quinta, começando pelo facto de os limites da quinta do Tronco se espraiarem pelos vizinhos. Um fidalgo da Casa Real, Francisco Maria de Andrade Corvo de Camões e Neto, com nome assim extenso, foi aqui dono das casas principais sobradas e telhadas, da capela, casas térreas para servidão de caseiros, estrebarias, palheiros, aidos, enxidos (quintais), cortinha, pomar, jardim com lago, devesas, bouças e inúmeros campos, entre eles os denominados do Agueto e da Revolta.

Já antes de 1954, a quinta estava dividida por vários proprietários - Manuel Silva Lopes Júnior, com terrenos ainda designados por Quinta do Tronco; outra fracção onde ficava a Quinta do Dias e várias outras convertidas em belos prédios de habitação tanto na Rua do Amial como na Rua Nova do Tronco. Finalmente uma fracção importante foi adquirida pela “Nova Empreza Industrial de Cortumes”, nem mais nem menos do que a fábrica onde toda a vida trabalhou o meu avô paterno e onde o meu pai também começou a trabalhar. 

Em 1949, a fábrica já distribuía dividendos, conforme publicação do Diário de Governo de 26 de Abril de 1949  -  “Vinte escudos por acção, sem os impostos a pagar ao estado”. Não sei se o meu avó tinha acções da fábrica, mas sei que por lá fez as suas economias. Geria a chamada Caixa dos Vinte Amigos e estava financeiramente à vontade para emprestar dinheiro aos outros trabalhadores. Recordo o meu pai contar que cobrava “juros à cabeça”. Ou sejam, pediam-lhe 10 escudos e só levavam 9. Juros a 10%. Eu não sabia é que a empresa tinha sede em Lisboa. Pensava que era uma fabriquetazita só aqui do Amial.


Para mim era a Fábrica de Curtumes do Amial, que tinha como rival outra na Circunvalação - a do Monteiro Ribas, mas para os meus conterrâneos, era a fábrica da sola. Naturalmente que tenho memória das estórias e não de vivências, porque quando o meu avô e o meu pai lá trabalharam, eu ainda não era nascido. Mas a imaginação é mais sedutora e estou a “vê-los” a pedalar na sua bicicleta desde Ermesinde, juntamente com grupos de operários, (só da minha família soube de vários elementos que lá trabalharam) até chegar à Areosa e entrar na Circunvalação, onde não pagavam portagem, porque não tinham nada para vender, mas só a podiam atravessar em determinados cruzamentos, porque o fosso existente entre as faixas tinha vários metros de profundidade. Chegados ao cruzamento do Amial, estavam perto do trabalho e ainda faltava muito para as oito da manhã. Uma boa hora de caminho, se o tempo não estivesse muito mau, obrigava a levantar de noite…

A fábrica já deixou de laborar há muitos anos, mas sempre que eu lá passava gostava de saber como era aquilo por dentro. Com o advento da internet e da divulgação de tudo e mais alguma coisa, deparei-me um dia com o espólio de um “caça fantasmas”.

Há sempre alguém capaz de entrar nestas instalações abandonadas e deixar-nos algumas fotos que nos podem fazer sonhar sobre os recantos por andou o meu avô e o meu pai.

Podem ver aqui imagens algumas bem assustadoras.

O que diriam estes livros? Quem escolhia as amostras?  E a contaminação disto tudo?

 

Há anos, num espaço adjacente, tudo pertencente ainda à fábrica, começou a erguer-se “uma cidade para alojamento universitário” – um projecto inicial de 100 milhões de euros, de britânicos e árabes. Sete anos passados, há um bloco “com as janelas abertas” e muito ferro enferrujado –
tudo parado desde 2019, pasme-se!



Quem deveria ‘afinar’ “estes artistas do betão” era a nossa Amália Rodrigues, que teve a infelicidade de ver o seu nome imortalizado nesta artéria.

Com este cenário, hoje,  nem apetece dizer mais nada.