Os saudosistas do “no meu tempo é que era bom”
que têm a sorte de estar vivos podem gozar o seu “bom tempo” hoje. Vou começar
pelo “bom” da água – era um bem da natureza, mas nunca foi ubíquo nem universal.
Nascentes, minas, fontes, rios, mares e até oásis só estavam à porta dos
afortunados. A civilização teve de a ir buscar e levar até à casa de cada um.
Antes do 25 de Abril, a rede pública de abastecimento de água
não existia. A sorte protegia os afortunados que tinham uma mina de água perto
de casa, que tinham feito um furo ou construído um poço no seu terreno. Mesmo
esses viveram melhores ou piores dias consoante as evoluções tecnológicas e o dinheiro
para delas usufruir.
Recordo que na casa onde nasci havia um poço de água. Na cozinha
já era possível aquele gesto automático de abrir uma torneira e dela jorrar a
água. Mas como chegava do poço à torneira? Tinha de ser guardada primeiro num
depósito, à data de fibrocimento, material que continha amianto, produto que
garantia boas capacidades de isolamento contra frio e calor. Hoje, proibiram-no
por descobrirem que era cancerígeno - “no meu tempo é que era bom”.
Era preciso elevar a água do poço até ao depósito – trabalho
que até uma criança como eu já sabia fazer – “Vai dar à bomba!” E
lá ia eu, tirar a água, dando voltas e mais voltas à bomba de volante. Talvez
tenha sido aí que aprendi a contar até mil. Mil voltas não enchiam um depósito
de 500 litros. Quantas mil voltas não era preciso dar…
A bomba de volante era um arco de ferro, com quatro
raios e um volante – um ferro em forma de Z, com que fazíamos girar o arco.
Esta era a parte visível. Até servia de brinquedo. Depois de várias voltas,
debruçava-me com a barriga no ferro e o meu corpito subia e descia. Tudo isto
sem a avó ver, é claro, porque o risco de cair e rachar a cabeça, no chão de pedra,
ou ficar com as pernas entaladas nos ferros da bomba era bem real.
A parte não visível da bomba estava reservada para os
grandes. Um deles era o Paulino funileiro, que também fazia de picheleiro e
descia ao fundo do poço para limpar a pinha. Era uma bola oval de
latão, toda aos furinhos, que estava atarraxada no fundo do tubo de pesca que
aspirava a água. O Paulino desentupia os buraquinhos e a água voltava a subir
com facilidade. Ele tinha o prazer de deixar a pinha a brilhar de tal
modo que parecia feita de ouro.
Outro dos grandes podia ter sido eu, que tive a sorte de fazer
mais do que a 4.ª classe e estudar física. Ensinaram-me o funcionamento do
êmbolo, que embora não o visse dentro da máquina a vapor do James Watt no
século XVIII, vi e reparei êmbolos na nossa bomba, nas bombas para encher as
câmaras de ar das bicicletas e até vi êmbolos a sugar Terramicina, na seringa que
a enfermeira fervia em caixa de metal, para dar a injecção à minha avó.
Deixemos a física em paz.
Ou talvez não, porque outra melhoria não tardou a chegar – a
força motriz do motor eléctrico. O meu pai tinha chegado da Venezuela, trazia
alguns patacos e era preciso dar algum conforto à casa. Mandou pôr um motor
eléctrico na bomba – um motor Rabor e deixámos de dar à bomba para que a
água chegasse ao depósito. Nessa altura até se enchia o tanque de lavar a roupa
que ficava ali junto ao poço. Havia mais roupa para lavar e já não chegavam as
bacias que a minha avó usava. O “desperdício” de água era maior. Quando se
abria o tanque a água escorria para o quintal e já era demasiada para regar as
novidades. Foi preciso aumentar a fossa sumideira para ir acumulando a
água “desperdiçada”.
Reparemos que até agora só falei em dois pontos de saída de
água – na cozinha e no tanque. Comer e andar com a roupa lavada era o mínimo,
mas e as “águas sujas”. Sim, porque bebíamos a água e comíamos, mas sempre se
deitou fora “o resto”…
Voltemos às conquistas de Abril – o quarto de banho e o
saneamento básico.
Na minha infância, só se chamavam “as retretes”.
Cheiravam mal e por isso não estavam dentro de casa. No meu avô, a retrete era
um casoto lá muito no fundo do quintal. Na casa da minha avó materna tínhamos
duas, também fora de casa. Uma para nós, os patrões, outra para os operários da
fábrica. A nossa tinha sanita, um lavatório e um caixote de madeira, tipo
paliteiro, com uns 70 cm de altura, onde deitávamos os rectângulos de papel de
jornal, que estavam espetados num prego, depois de limpar o “ofeguines”. A retrete
dos operários era só um banco de madeira, a toda a largura da parede, com um buraco
no meio. O chão também era de madeira e as tábuas não eram pregadas. Estavam
soltas, porque de vez em quando era preciso levantá-las e, com o ”côco d’água
choca”, tirar algum “conteúdo” e ir deitá-lo na fossa do quintal.
Não havia quarto de banho, porque não havia banho.
Isso tomava-se no Rio Leça onde se aprendia a nadar e a tomar banho. Em casa,
havia o lavatório – uma peça constituída por um arcanho de ferro que
sustentava uma bacia de esmalte, com um furo no meio, com tampa, onde lavávamos
a cara e as mãos. A água caía, por um caninho, para um balde que ficava por
baixo, para aparar essa água. Não despejávamos para a rua, nem dizíamos “Vai
água”, ia simplesmente para o passeio do quintal. Para lavar as partes
pudibundas e o resto do corpo havia uma bacia de zinco, com fundo de madeira, e
nos dias mais frios tínhamos direito a água aquecida na caldeira do fogão a lenha.
Talvez levasse uns três litros, por isso o banho não podia ser muito grande.
Os tempos mudaram e a residência também. Fomos para casa do
meu avô. As condições de água e saneamento até eram piores. Aí o meu pai
começou a fazer as “obras básicas”…
Também lá havia um poço, mas não tinha bomba de volante, nem
motor Rabor para tirar a água. Tinha uma picota por cima do poço. Lá vem
a física outra vez. O sistema era parecido – um tubo de pesca, um cilindro com êmbolo
dentro, só que o modo de acionamento era a alavanca – um pau de madeira
que se puxava para cima e para baixo. Para encher um baldito de água chegava, mas
se fosse preciso encher o tanque eram horas a dar ao braço.
Também já me dói o braço de escrever à mão…
Até ao próximo, “no meu tempo é que era bom”.
P.S. Ainda me restam algumas forças para deixar duas linhas sobre
a resistência à mudança.
Quando se ambicionava pela universalidade do abastecimento de
água e do saneamento básico, havia muitos portugueses “resistentes”. Até tinham
água de poço de graça, às vezes inquinada, e as águas “menos limpas” com as
águas da chuva, lá corriam pela valeta abaixo.
Para ter água canalizada era preciso pagá-la e o saneamento
exigia obras e grandes taxas. O dinheiro não abundava e resistia-se ao saneamento
básico que teve de ser OBRIGATÓRIO!
Muito mais de meio século passou desde estes tempos, mas
hoje dia 25 de Junho de 2025, foi notícia de telejornal:
“518 mortes em 2023, em Portugal, por ingestão de água
imprópria ou por falta de higiene. Maiores de 85 anos entre as vítimas mais afectadas”.
E esses continuavam: “no meu tempo é que era bom”.
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