quarta-feira, 25 de junho de 2025

Conquista de Abril – as Águas

 



   

Os saudosistas do “no meu tempo é que era bom” que têm a sorte de estar vivos podem gozar o seu “bom tempo” hoje. Vou começar pelo “bom” da água – era um bem da natureza, mas nunca foi ubíquo nem universal. Nascentes, minas, fontes, rios, mares e até oásis só estavam à porta dos afortunados. A civilização teve de a ir buscar e levar até à casa de cada um.

Antes do 25 de Abril, a rede pública de abastecimento de água não existia. A sorte protegia os afortunados que tinham uma mina de água perto de casa, que tinham feito um furo ou construído um poço no seu terreno. Mesmo esses viveram melhores ou piores dias consoante as evoluções tecnológicas e o dinheiro para delas usufruir.

Recordo que na casa onde nasci havia um poço de água. Na cozinha já era possível aquele gesto automático de abrir uma torneira e dela jorrar a água. Mas como chegava do poço à torneira? Tinha de ser guardada primeiro num depósito, à data de fibrocimento, material que continha amianto, produto que garantia boas capacidades de isolamento contra frio e calor. Hoje, proibiram-no por descobrirem que era cancerígeno - “no meu tempo é que era bom”.

Era preciso elevar a água do poço até ao depósito – trabalho que até uma criança como eu já sabia fazer – “Vai dar à bomba!” E lá ia eu, tirar a água, dando voltas e mais voltas à bomba de volante. Talvez tenha sido aí que aprendi a contar até mil. Mil voltas não enchiam um depósito de 500 litros. Quantas mil voltas não era preciso dar…

A bomba de volante era um arco de ferro, com quatro raios e um volante – um ferro em forma de Z, com que fazíamos girar o arco. Esta era a parte visível. Até servia de brinquedo. Depois de várias voltas, debruçava-me com a barriga no ferro e o meu corpito subia e descia. Tudo isto sem a avó ver, é claro, porque o risco de cair e rachar a cabeça, no chão de pedra, ou ficar com as pernas entaladas nos ferros da bomba era bem real.

A parte não visível da bomba estava reservada para os grandes. Um deles era o Paulino funileiro, que também fazia de picheleiro e descia ao fundo do poço para limpar a pinha. Era uma bola oval de latão, toda aos furinhos, que estava atarraxada no fundo do tubo de pesca que aspirava a água. O Paulino desentupia os buraquinhos e a água voltava a subir com facilidade. Ele tinha o prazer de deixar a pinha a brilhar de tal modo que parecia feita de ouro.

Outro dos grandes podia ter sido eu, que tive a sorte de fazer mais do que a 4.ª classe e estudar física. Ensinaram-me o funcionamento do êmbolo, que embora não o visse dentro da máquina a vapor do James Watt no século XVIII, vi e reparei êmbolos na nossa bomba, nas bombas para encher as câmaras de ar das bicicletas e até vi êmbolos a sugar Terramicina, na seringa que a enfermeira fervia em caixa de metal, para dar a injecção à minha avó. Deixemos a física em paz.

Ou talvez não, porque outra melhoria não tardou a chegar – a força motriz do motor eléctrico. O meu pai tinha chegado da Venezuela, trazia alguns patacos e era preciso dar algum conforto à casa. Mandou pôr um motor eléctrico na bomba – um motor Rabor e deixámos de dar à bomba para que a água chegasse ao depósito. Nessa altura até se enchia o tanque de lavar a roupa que ficava ali junto ao poço. Havia mais roupa para lavar e já não chegavam as bacias que a minha avó usava. O “desperdício” de água era maior. Quando se abria o tanque a água escorria para o quintal e já era demasiada para regar as novidades. Foi preciso aumentar a fossa sumideira para ir acumulando a água “desperdiçada”.

Reparemos que até agora só falei em dois pontos de saída de água – na cozinha e no tanque. Comer e andar com a roupa lavada era o mínimo, mas e as “águas sujas”. Sim, porque bebíamos a água e comíamos, mas sempre se deitou fora “o resto”…

Voltemos às conquistas de Abril – o quarto de banho e o saneamento básico.

Na minha infância, só se chamavam “as retretes”. Cheiravam mal e por isso não estavam dentro de casa. No meu avô, a retrete era um casoto lá muito no fundo do quintal. Na casa da minha avó materna tínhamos duas, também fora de casa. Uma para nós, os patrões, outra para os operários da fábrica. A nossa tinha sanita, um lavatório e um caixote de madeira, tipo paliteiro, com uns 70 cm de altura, onde deitávamos os rectângulos de papel de jornal, que estavam espetados num prego, depois de limpar o “ofeguines”. A retrete dos operários era só um banco de madeira, a toda a largura da parede, com um buraco no meio. O chão também era de madeira e as tábuas não eram pregadas. Estavam soltas, porque de vez em quando era preciso levantá-las e, com o ”côco d’água choca”, tirar algum “conteúdo” e ir deitá-lo na fossa do quintal.

Não havia quarto de banho, porque não havia banho. Isso tomava-se no Rio Leça onde se aprendia a nadar e a tomar banho. Em casa, havia o lavatório – uma peça constituída por um arcanho de ferro que sustentava uma bacia de esmalte, com um furo no meio, com tampa, onde lavávamos a cara e as mãos. A água caía, por um caninho, para um balde que ficava por baixo, para aparar essa água. Não despejávamos para a rua, nem dizíamos “Vai água”, ia simplesmente para o passeio do quintal. Para lavar as partes pudibundas e o resto do corpo havia uma bacia de zinco, com fundo de madeira, e nos dias mais frios tínhamos direito a água aquecida na caldeira do fogão a lenha. Talvez levasse uns três litros, por isso o banho não podia ser muito grande.

Os tempos mudaram e a residência também. Fomos para casa do meu avô. As condições de água e saneamento até eram piores. Aí o meu pai começou a fazer as “obras básicas”…

Também lá havia um poço, mas não tinha bomba de volante, nem motor Rabor para tirar a água. Tinha uma picota por cima do poço. Lá vem a física outra vez. O sistema era parecido – um tubo de pesca, um cilindro com êmbolo dentro, só que o modo de acionamento era a alavanca – um pau de madeira que se puxava para cima e para baixo. Para encher um baldito de água chegava, mas se fosse preciso encher o tanque eram horas a dar ao braço.


Também já me dói o braço de escrever à mão…
Até ao próximo, “no meu tempo é que era bom”.

P.S. Ainda me restam algumas forças para deixar duas linhas sobre a resistência à mudança.

Quando se ambicionava pela universalidade do abastecimento de água e do saneamento básico, havia muitos portugueses “resistentes”. Até tinham água de poço de graça, às vezes inquinada, e as águas “menos limpas” com as águas da chuva, lá corriam pela valeta abaixo.

Para ter água canalizada era preciso pagá-la e o saneamento exigia obras e grandes taxas. O dinheiro não abundava e resistia-se ao saneamento básico que teve de ser OBRIGATÓRIO!

Muito mais de meio século passou desde estes tempos, mas hoje dia 25 de Junho de 2025, foi notícia de telejornal:

“518 mortes em 2023, em Portugal, por ingestão de água imprópria ou por falta de higiene. Maiores de 85 anos entre as vítimas mais afectadas”.

E esses continuavam: no meu tempo é que era bom”.

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