terça-feira, 24 de junho de 2025

Perdigão perdeu a pena / Não há mal que não lhe venha

Perde a pena de voar,

Ganha a pena do tormento,

Não tem no ar nem no vento

Asas com que se sustenha

Não há mal que lhe não venha.

….



Finalmente consegui baixar a pena. Há muito que não voava e é triste andar em baixo. Talvez o mês de Camões ou aquele que vi vestido à “Trinca Fortes” falando do “céu da língua”, me tenham obrigado a voltar à pena, para as velhas imagens ficarem registadas em palavras.

Hoje não há tema e temo começar com assunto melindroso – a bruxaria, o sobrenatural, o inacreditável, o assunto temível que tanto medo me infundiu na infância. Não é tempo de exorcizar imagens passadas, apenas partilhar momentos que foram gravados a tinta da china ou a tinta azul indelével, como a água tingida que saía do canhão de água, que aparecia logo a seguir ao “carro nívea” (o volkswagen da polícia), quando nos “ajuntávamos” na Praça em dias festivos.

Comecemos pela “crendice”. Acho que este poder estava reservado aos mais pobres, aos desfavorecidos, aos que diariamente lutavam contra as agruras da vida. Não recordo ninguém “bem na vida” que tivesse o dom da crendice. Mas quem sofria coitas de amor, negócios que não prosperavam, vizinhos que os tolhiam, mau olhado, ‘andaço’, sei lá quantas desgraças eu não poderia enumerar para justificar as razões  do ”crente” recorrer a serviços de uma “mulher de virtude”, que muitas vezes até era um homem. Podia ser uma curandeira, um adivinho, um endireita, um talhador de trasorelho (ui, quando o tínhamos até as gónodas inchavam), “bruxa” é que nunca – “eu não sou bruxa!”  - mas para mim eram todos ”bruxos/as” e eu tinha-lhes medo.

O medo começava pela tradição oral, pelas histórias que me contavam, pois as palavras, para mim nessa altura, ainda eram comboinhos de letras. Mas eu tinha de me fazer à vida, a minha avó mandava e eu obedecia: “Vai ao talho e traz-me um quarto de carne de cozer da de vint’oito, e não te esqueças do troco”.  Eu lá ia, um bom quarto de hora de caminho, com três moedas de prata de vinte e cinco tostões na algibeira, sempre pela quelha depois de passar pela Igreja, sabendo que tinha de passar pela casa da bruxa. Era a A. bruxa, que não me recordo de nem sequer ver à janela, pois quando faltavam uns 100 metros eu começava a correr - cada vez que passava melhorava o meu record - e só parava dentro do talho. O marchante lá me aviava, sem contra-peso e nunca faltou a c’roa de troco. Sim, porque naquele tempo não era como agora, com estas balanças que até o vento pesam e nunca pagamos o peso que pedimos, é sempre mais. -“Cem gramas de fiambre, por favor”. - “Tem mais um bocadinho, pode ser?” – “Que remédio!

As histórias que ouvíamos também eram muito repetitivas… o repertório era curto e eu decorava a da “ponte dos sete arcos” que se abria quando eu lá passasse, se naquele dia tivesse dito uma mentira ou a dos que de noite estavam à porta do cemitério a contar “dois para ti, dois para mim, dois para ti, dois para mim e agora vamos buscar os que estão lá fora” e eu pensava que estavam a dividir os mortos e afinal eram só os rebuçados que tinham roubado.

De todo o tipo de anúncios que astrólogos, videntes e artistas destas artes espalham pela comunicação social, recordo um tal Professor Bambo.

Faltam-me os anúncios do Professor Bambo, que eu lia no Notícias, mas já era grande e não tinha medo. Agora, o dito vidente até tem conta no Instagram[AC1] 
Mas a minha memória vai mais fundo neste capítulo e até para o futebol aparecem “os mentalistas” – um “parapsicólogo” - o Professor Zandinga, com ganhos de fama no F.C. do Porto, nos anos 80. O FCP pagava-lhe e ele previa que o Benfica ia ser campeão! Foi logo para o Penafiel, pela mão do António Oliveira…
A tal memória baixa aos anos 60 e 70 e por aí as coisas piavam mais fino. Fugia das histórias do “Manel da Cêra” – ele contava que tinha de ter sempre um caderno à cabeceira da cama, porque de noite erguia-se e a sua mão escrevia - relatórios médicos do Dr. Sousa Martins, textos em línguas estranhas ou inéditos de Camilo, de Eça ou de Alexandre Herculano. Logo eu que nessa altura andava a ler ”A Dama Pé de Cabra” do Herculano, arrepiava-me todo.
Nos anos 70, era marçano encartado e já tinha tirado o curso para aviar as “receitas das bruxas”. Para simplificar o esquema vamos chamar-lhe só “defumadouros”. Como tinha o curso de paleografia, conseguia interpretar os ingredientes: “alecrim, incenso e mirra” eram a base principal, depois havia uns suplementos, para males específicos – umas folhas de arruda para afastar o mal-olhado, “uns grãos de mostarda” que estalavam ao serem queimados com as ervas e tinham o poder de afastar os maus espíritos, “um sal azedo” ou “uns sais de potassa” eram recomendados para outros fins.
A “bula” vinha sempre com a posologia, modo de fumegar a casa ou o corpo em questão com o dito defumadouro, que deveria ser feito em telha nacional e o cuidado em deitar as cinzas em determinado lugar, também consoante as maleitas que se estavam a tratar. Por exemplo, se queríamos que determinado amor ou negócio florescesse, as cinzas teriam que ser deitadas em erva fresca que nunca fosse cortada.
Para os males ”entranhados” no corpo era preciso um “purgante”. Aqui a receita era muito variada, mas sempre à base de ervas medicinais, que ainda hoje pode ir à sua ervanária favorita e abastecer-se.
Deixo só alguns exemplos que nunca fizeram mal a ninguém, mas prescritos pelo bruxo da Areosa ou pelo Penteeiro – o bruxo de Alfena, tinham um especial poder – Folhas de sene, amieiro preto, calutéa, raiz de Bryone, cuscute, feno grego, o nerprum ou a sempre noiva tinham as melhores propriedades purgativas e laxativas. Cuidado com a estanca-cavalos que pode produzir efeitos purgativos muito violentos.  
Por vezes era preciso produzir o efeito contrário, mas atenção porque usadas em excesso até podiam levar à prisão de ventre – eram as plantas adstringentes – flores de sabugueiro, murta, erva benta, bistorta, pimpinela ou salgueirinha contam-se entre as mais eficazes.
Outro grande mal da época eram as “bichas” - “Olha, o neto da minha vizinha, até deitou bichas pela boca”. A culpa parece que era da carne de porco e recordo quando os meus filhos nasceram a pediatra teve muita preocupação em receitar sempre medicamentos vermífugos contra os oxiúros. Mas plantas vermífugas também não faltavam e se quiserem evitar as drogas podem recorrer a folhas de absinto, dentes de alho, matricária, santolina ou tasneira.
Muito mais vulgar e ervas de uso geral eram a parietária, a malva, a tília, a camomila, a cidreira, a melissa, a cavalinha, o ‘pericão do Gerez (comiam sempre o ‘hi’ inicial) ou o trio composto por fragária, pés de cereja e barbas de milho, se houvesse queixas da bexiga.
Hoje, voltando às palavras deixo algumas ervas, com nomes que convém decorar antes de entrar na ervanária. Cá o bruxo recomenda-vos:
A salsaparrilha, a quelidónia, a artenúsia e a aristoláquia (plantas emenagogas), a fedegosa, a pilosela, a saxifrágia e para acabar dois calmantes, para beberem uma chávena, depois de tudo isto - a argemona e o marroio que é um bom calmante, difícil de tomar, pelo seu cheiro detestável.
Purgem-se bem e cheirem o manjerico com as mãos, que é São João.

 [AC1]



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