domingo, 29 de junho de 2025

Os olhos já não vêem ao longe

 

Desde pequeno que gostava de “ver ao longe”, no sentido literal do termo, porque pensar no futuro, não era para tenras idades e até a pergunta “o que queres ser quando fores grande” era respondida ao sabor da ocasião, sem ambições de vida futura.

Quando digo “ver ao longe” era mesmo olhar para o horizonte, que nesse tempo conseguia ver-se. Hoje, “l´horizon, cette ligne où le ciel touche l’onde”, só mesmo na praia é que se vê.

O sol antigamente era para todos, iluminava as casas da minha rua de um lado e doutro, umas horas para uns, umas horas para outros. Hoje, vamos à janela e lá vemos o vizinho da frente, ou o dali do lado ou aquele mamarracho ali mais à frente. Antes subia a qualquer picoto e conseguia ver o horizonte.

Há dias, estava num desses sítios de onde antes via o mundo inteiro e a panorâmica ainda era desafogada, mas a desolação também foi grande. Recordo imagens de lá ao longe, do que hoje chamam as “Serras do Porto”, desde o Rio Douro a todo o concelho de Gondomar, Valongo e por aí acima, que nos oferecia uma mancha verde – “era tudo monte”, como dizíamos – hoje nessas serras é quase tudo casas! Nesses locais, gosto de não perder o norte, adivinhar o nome das terras, identificar as torres das igrejas, as chaminés das fábricas desaparecidas ou até os novos mastodontes, que mesmo distantes não nos deixam “ver ao longe”.

Voltando ao Rio Douro, vou agora até à Foz, relembrar os pontos que os marinheiros procuravam para o Porto “ver ao longe”.

Como sou do tempo da piscina e da avenida do Fluvial, tenho de recorrer à imaginação ou às imagens de outros tempos para ver o vale do Ouro, por onde corria a minha vizinha ribeira da Granja, antes de se enfiar no rio. Como era vale, havia e há monte de um lado e de outro, mas como hoje estão cheios de casas ou arvoredo, não imaginamos o antigo cenário. Talvez umas fotos antigas ajudem. Cá vão – as setas assinalam a Capela do Senhor e da Senhora da Ajuda na margem direita e a Capela de Santa Catarina na margem esquerda da ribeira.

Na primeira fotografia, estavam a abrir a avenida do Fluvial e vemos por trás da capela toda aquela mancha branca, que hoje é um parque onde as árvores cresceram e engoliram a capela e a vista para o/do mar. Na segunda, vemos lá em cima a Capela de Santa Catarina. Eram ambas os pontos de referência naturais, mesmo antes dos faróis, para os navegantes que a ambas pediam protecção.

Vamos agora à história, para saber qual das capelas teve a primazia de primeiro servir os marinheiros que abordavam à barra do Douro. Reza a dita, que no dia 8 de Outubro de 1395, D. João I assinou uma carta de doação. Aí se dizia, que na maior parte dos portos de mar costumava haver uma igreja em honra a Santa Catarina e no Porto não havia, daí o Rei permitir aos marinheiros, fazer a dita igreja “sem outro embargo”, precisamente no local do monte onde hoje a vemos, que o rei definia assim “em um outeiro está um nosso pardieiro, o qual está ermo e descoberto há grande tempo” podem usar ”toda a pedra e terreno ali existente”. Curiosa a designação “pardieiro”, segundo o “Elucidário” do Fr. Rosa Viterbo, não teria o sentido pejorativo que hoje muitas vezes damos ao termo, era simplesmente o mesmo que “paredeiro”- uma casa derribada e posta já em ruína, deserta e desabitada. Isto pode levar-nos a supor a existência de qualquer edificação anterior à capela, que deveria ter sido construída pelos finais do século XIV ou inícios do seguinte. No século XIX, a capela sofreu melhorias e a Nossa Senhora dos Anjos aliou-se à Santa Catarina, pois intercedeu num milagre da barca Comércio e Indústria, conforme lá reza uma placa votiva de 1848.

Falando em milagres, temos de dar o salto para a capela da outra margem – a Capela do Senhor e da Senhora da Ajuda, também protectores dos navegantes e dos carpinteiros navais. Lembremo-nos que ali no sopé dos montes ficavam os estaleiros do Ouro, onde foram construídas as embarcações para a expedição a Ceuta e para outras conquistas em África. Esta capela só deve ter sido construída nos finais do dezasseis, inícios do dezassete, embora as referências documentais sejam até mais tardias, Frei Agostinho de Santa Maria refere-se a ela como a “Ermidinha da Ajuda”. Joel Cleto, num número de “O Tripeiro”, conta-nos a lenda que envolve a construção desta capela.

Catarina Fernandes, de Miragaia, teve visões de Nossa Senhora, que lhe pedia para ir procurar ali no monte uma imagem sua, que deveria estar junto de uma fonte e uma pomba iria ajudá-la. Foi tarefa difícil, numa época em que o monte tinha muita vegetação, mas lá encontraram a fonte, a pomba e a imagem no meio das silvas. Era o dia 18 de Dezembro, dia da Expectação e decidiram chamar-lhe Senhora do Ó (estava grávida ou de esperanças). Com ajuda financeira de amigos aí construíram uma capela para guardar a imagem. O maravilhoso viria a seguir – a imagem desaparecia da capela e voltava para o monte, ficando a olhar para o mar. Estava à espera de outro milagre. Certo dia, passou em frente à barra uma esquadra de nove embarcações vindas de Inglaterra. Como na história do “Bom Barqueiro”, a esquadra por ali passou, mas o último deixou – ficou encalhado e não havia meio de o libertarem. Só quando descobriram que, lá dentro, vinha uma imagem de Cristo e a levaram lá para cima para a capela da Ajuda, conseguiram desencalhar o barco. Então Nossa Senhora juntou-se ao seu filho e a capela passou a designar-se “do Senhor e da Senhora da Ajuda”.

Ainda há pouco por lá andei e subi ao miradouro de Santa Catarina, pela Calçada do João do Carmo, pela Travessa e Rua do Senhor da Boa Morte, espreitando sempre as águas lá em baixo. Tinha esperança de ver o que o Rui Veloso cantava, mesmo ao contrário, “da Foz até à Ribeira”, mas os meus olhos já não vêem ao longe, ainda que sempre me dissessem que para ver ao longe nunca iria precisar de óculos. Mas com tanta modernice imobiliária, nem com óculos consigo “ver ao longe”.


 

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