Prometi voltar aos frades Lóios da baixa. O seu convento também estava retratado na imagem que usei do vizinho mosteiro de S. Bento de Avé Maria, e até a cerca e o seu quintal lá estavam assinalados.
Comecemos por dar um salto ao presente – o que vemos? Nem
mais nem menos do que resta da imponente fachada do convento dos Lóios.
Uma frente de janelas avarandadas e portas voltadas para a Praça, agora um
hotel de luxo, na sua maior extensão. Se lhe dermos a volta, podemos ver as
traseiras, que há poucos anos foram totalmente escavacadas. Fizeram lá uma
praça interior. Antes, as traseiras e os interiores ficavam em terra e de lá se
tirava “o de comer”. Agora, afundam o mais que podem, “enterram” lá automóveis
e querem pôr o turista a ‘esplanar’ cá por cima.
Todas as casas, que existiam no miolo deste quarteirão
compreendido entre a Praça da Liberdade, a Praça Almeida Garrett, a Rua
Trindade Coelho e o Largo dos Lóios, foram demolidas. Foi tudo abaixo…
Mais uma vez, foi o nosso esclarecido Germano Silva que chamou a
atenção a quem de direito, para um “chão sagrado” ali existente. Pelo
menos, deu sepultura a inúmeras figuras gradas da cidade. Isto, antes de
começarem as obras do parque de estacionamento subterrâneo, que construíram no
miolo do que era o convento, a igreja e a cerca.
Eugénio Cunha e Freitas foi mais longe, numa monografia que
escreveu sobre o convento:
«… em vez dos honrados frades
de Santo Elói, estão os gordos e opulentos senhores das finanças e da
indústria, perturbando na febre do negócio e do lucro, o eterno descanso de
tantas cinzas veneráveis que ali jazem».
Aqui chegado, vou começar a recuar, até desvendar mais um
topónimo – “o Passeio das Cardosas”. As primeiras imagens que tenho dele,
vejo-as gravadas em placa branca, com letras azuis dos dois lados, em forma de paliteiro,
à entrada e saída das escadas da passagem subterrânea que, nos anos 60,
construíram ali no sítio da Porta dos Carros. Duas entradas na Estação de S.
Bento, com uma saída para os Congregados e outra para o dito Passeio das
Cardosas. Tudo foi sacrificado para as linhas do metro.
Era mais rápido atravessar por cima, como sempre fizera – da
porta da estação para a porta do Café Astória, em frente. Um dia, um polícia
apanhou-me do outro lado e queria que eu pagasse vinte e cinco tostões de
multa. Não paguei, mas passei a ir mais vezes pelo subterrâneo. Voltando ao
topónimo, acho que acontecia o que durante muitos anos a minha cabeça foi fazendo
– decorava os nomes, sabia o nome das ruas e das praças todas de cor, mas a
personagem era pouco significativa. Comecei a estranhar quando em Espinho, em
vez de nomes davam números às ruas. Não tinham gente famosa? Ah, quem foi este?
Quem foi aquele? Nessa data, pouco liguei às “Cardosas”, até ter conhecido e
trabalhado com uma “Cardosa trineta”.
Em poucas palavras, recordemos a história do Palácio das
ditas Cardosas. Recebeu este nome, porque quando o proprietário morreu, a
mulher e as filhas, além de herdarem o imóvel, herdaram-lhe o apelido que
passou a dar nome ao Palácio e até ao Passeio. O pai Cardoso deixou-lhes
como herança aquele enorme edifício que ele reconstruiu em 1860, a partir do
que já existia em 1833, pertencente ao antigo convento dos frades Lóios. Manuel
Cardoso dos Santos foi comerciante abastado que soube abanar bem “a
árvore das patacas” no Brasil e chegou a Portugal nos tempos em que não
faltava imobiliário confiscado a frades e freiras. Há sempre boas alturas para
negócios, especialmente num pós-guerra (neste caso a Guerra Liberal terminou
com o confisco de bens monásticos). Cardoso comprou o edifício dos Lóios,
em hasta pública, pela módica quantia de 80 contos de réis.
Recorde-se que os frades andavam em obras para renovação do convento. Ainda por ali havia panos da muralha e tiveram mesmo autorização, em 1798, para a sua demolição e reconstrução de toda a frente do convento, para a velha Praça das Hortas. Tinham um bom plano para toda aquela frontaria que dava para o Pasmatório dos Lóios. Aquele passeio foi sempre lugar de encontros e de gente pasmada – Camilo e seus contemporâneos, escritores, políticos e jornalistas por ali passavam até à Livraria Moré, na esquina, o seu ponto de encontro. Parece que até quiseram formar um clube – O Real Clube dos Encostados – pasme-se!
Se quiséssemos ir às origens, a muralha em direcção
ao Campo do Olival passava ali na Fonte da Arca, faceando a Calçada da Fonte da
Arca, que depois foi da Natividade e hoje é a rua dos Clérigos. Também havia ai
um postigo na muralha, para o que é hoje o Largo dos Loios – era o Postigo
da Fonte da Arca ou das Hortas. Só um pequeno parêntesis para outro
topónimo da vizinhança – a Rua de Trás. Recebeu este nome precisamente
por ficar atrás das muralhas.
Em 1832, quando os Liberais entraram na cidade, os frades deixaram
as obras, abandonaram o convento, fugiram e facilitaram a vida ao Mata-Frades
que confiscou a casa. O Manuel Cardoso, quando arrematou a casa, ficou com o
encargo de terminar as obras, seguindo o risco previamente aprovado e fez dele
morada de família. Depois tudo passou a escritórios, lojas e comércios.
A igreja e a antiga residência monástica voltadas para o
Largo dos Lóios, como já estivessem em estado ruinoso, foram destruídas depois
de 1833 e, no seu terreno, foram edificados prédios para habitação. Nessa
altura, a antiga cerca conventual foi cortada pela Rua de D. Maria II (hoje Rua
de Trindade Coelho) que foi aberta ao trânsito público no dia 10 de Março de
1838.
Eu só comecei a olhar para o Palácio nos anos 60 e
recordo-me do Café Astória, na esquina, a seguir, uma entradita para a Adega da
Cerca e a Farmácia Vitália no lado oposto. A casa Campião vendia a sorte
grande. O Banco Pinto & Sotto Mayor, ainda não tinha sido aí
inaugurado – foi-o em 1972. Como regressava a casa de noite, valia a pena andar
de cabeça no ar, porque a Praça, à época, parecia a Picadilly Circus com
os feéricos reclames luminosos em cima das Cardosas (na primeira foto,
vê-se o reclame das Bolachas Triunfo e das máquinas de costura Oliva) e mais
havia, por cima do prédio da Ateneia. Falando em luzes a correr, recordo já nos
anos 70, o jornal luminoso, que passava por baixo do frontão triangular.
Era um banner de luzinhas amarelas a correr, penso que da
responsabilidade de O Primeiro de Janeiro. Como à data não se “fotografavam
notícias” as imagens estão apenas na minha memória.
Finalmente, para voltar mesmo às origens, nada melhor que recorrer às
palavras do teólogo da minha rua, o Padre Rebelo da Costa, na sua “Descrição
Topográfica…”:
«Convento
de Santo Elói (ainda não lhe chamavam dos Lóios), fundado em 6 de Novembro de
1491, no sítio em que estava a Capela da Senhora da Consolação, pertencente a
Violante Afonso, dona viúva, que a deu para este fim, com a horta e casas que
possuía, a rogos do bispo D. João de Azevedo.» Cá temos mais uma vez
o Bispo a mandar na cidade… pede os bens à viúva de Martim Bento, caldeireiro, e
ela dá tudo aos frades. Estes terrenos ficavam também com traseiras para a rua
dos Caldeireiros.
«Este
convento é dos cónegos seculares da congregação de São João Evangelista,
vulgarmente chamados dos Loios, que vestem túnica, murça e manta de sarja azul,
conforme usavam os cónegos da congregação de São Jorge, em Alga de Veneza…» De uma penada, Rebelo da
Costa, explica porque são os ‘padres azuis’ conhecidos como Loios.
No entanto, o Frei Manuel Pereira de Novais, tem melhor
explicação, mas em castelhano:
«••• y à tenian [os
fundadores] el Domicilio de la Iglesia de San Eulogio, ò Elogio en la ciudad de
Lisboa, y en la lengua Portuguesa se llama este glorioso obispo e Martyr Eloy,
por esta su habitacion se vinieron a llamar y tener el appelido de Eloyos, y
conocidos por este nombre en este Reyno».
«A renda
que recebe anualmente passa de vinte mil cruzados estabelecida em dízimos,
foros, laudémios, etc.» Mais uma vez, este “paleio” de receber
dinheiro eternamente por rendas ou alugueres, que tiveram sempre nomes
estranhos e que ainda não os expliquei todos, porque isso vai dar direito a ‘tese
de doutoramento’.
«Os seus
prelados, que têm o título de Reitores (dizem), a (renda) dispendem na côngrua sustentação de
trinta súbditos, cujo número com muito pouca diferença é o que habita dentro da
clausura.» Esta afirmação tem muito que se lhe diga. Primeiro, a
dúvida de um eclesiástico sobre o título – (dizem) era só ironia. Depois o “talvez
elevado” valor das despesas… tanto dinheiro só para 30 frades?
De facto, olhando hoje para aquela frontaria e para as janelas
avarandadas, aquilo dá mais do que uma janela para cada frade. E eles eram
mauzinhos… gostavam de vir para a janela apoiar os Absolutistas.
Da imagem inicial, em apreço, resta o Convento dos
Congregados. Mas para dele falar ainda estou à espera que me digam: “Vai mas é pedir p’ra porta dos
Congregados.”