As minhas reflexões começaram com esta imagem, que colhi
numa visita ao museu nacional cá do burgo. Tanta coisa ela revela, se
estivermos atentos, e talvez por isso tenha sido escolhida como peça do mês e
tema para uma palestra no museu intitulada – “Aspecto do Porto no século
XVIII – a antiga Porta dos Carros”. Como não assisti ao debate, vou ter
que me desenrascar sozinho, mas não começo pela Porta, vou pela mole à
direita, porque onde encontrei a imagem na lapidária lá no museu, ainda
havia restos de capitéis das colunas da crasta do mosteiro.
Comecemos então pelo Real Mosteiro de São Bento de Avé
Maria do Porto. Na gravura tem direito a duas letras da legenda: “G-
Portas do pátio que ‘feixa’ as portarias das Relligiozas de S. Bento” e H- Seu
Mirante”.
Como comecei por dizer, que nesta altura os religiosos já
não mandavam na Baixa, vale a pena “dar um pulinho” ao tempo em que o poder
eclesiástico “reinou” na cidade do Porto. A mãe do nosso primeiro rei, D.
Teresa, em 1120 doou o burgo portucalense e o seu couto à Sé do Porto, e o
nosso Bispo D. Hugo começou logo a ditar as suas leis. No século seguinte, as
ordens religiosas instalaram-se ali pelas encostas do monte do Olival. O mosteiro
de São Francisco, em 1233, era uma construção inicialmente modesta, como
impunha a ordem, num terreno que lhes fora cedido, nos limites do burgo. O
Bispo não gostou e quis embargar a obra. Foi necessária intervenção papal para
resolver uma querela de limites de terras.
Então o Bispo vingou-se concedendo terreno a outra ordem, aos seguidores
do francês Domingos de Gusmão, que em 1238, construíram o seu mosteiro dentro
do burgo – o mosteiro de São Domingos.
Os anos passavam, o Cabido e a Mitra dividiam as terras
entre si e cobravam os seus foros. Os burgueses apoiavam. Pois viam-se
protegidos e nem deixavam que a nobreza “pernoitasse” dentro de muralhas,
e muito menos adquirisse qualquer propriedade.
Se as coisas não corressem de feição queixavam-se ao Papa. Em
1245, o Papa Inocêncio IV, considerou o rei D. Sancho II – rex inutilis
– porque o Bispo do Porto teria ido a Roma queixar-se da sua governação.
Os anos foram passando, falando em conventos e mosteiros
muitos foram aparecendo, até que o Venturoso, D. Manuel I, tenta acabar com
os privilégios. O mosteiro da gravura é talvez um bom exemplo de como ele
quis mostrar o seu poder.
Em 1518, D. Manuel I manda construir um mosteiro, dentro de
muralhas, precisamente em terrenos das hortas do Bispo, que “as cedeu de bom
grado”… «Era uma obra de excelente construção e decoração, cuja
magnificência enobrecia a cidade». Razões para o epíteto “Real” - o Real
Mosteiro de São Bento de Avé Maria. Só foi inaugurado em 1528, o rei mandou encerrar casas mais pequenas, que
enviaram para aqui as suas religiosas – casos de São Cristovão de Rio Tinto,
Via Cova de Sandim, São Salvador de Tuias, no Marco de Canaveses e Tarouquela.
Foram mais de 250 anos de funcionamento, tendo resistido a invasões, cercos e
tremores de terra, sempre com as monjas muito activas.
Se mergulharmos nos canhenhos, vamos descobrir que ali ao
lado, até ficava a cerca do mosteiro de outros frades – os cónegos azuis, que
já tinham aí o seu mosteiro dos Lóios, desde 1491. Quantos não os
acusaram de comportamentos impróprios… Mas isso de comportamentos fica para
outras núpcias, assim como este mosteiro masculino, que também aparece na
imagem, mas que vai ter direito a reflexão à parte.
Voltemos à Ave Maria… porque em 1783 uma desgraça caiu sobre
o mosteiro – um grande incêndio destruiu completamente a igreja e parte do
mosteiro. Houve mãos amigas que lhes acudiram e em 1794, inauguraram a nova
igreja. Vou buscar uma imagem deste lado do convento, porque não imaginava a
frente da igreja para a Rua do Loureiro de hoje.
O desenho é de 1833, e saiu da pena de um lente
da Academia Politécnica do Porto – Joaquim Vitoria Vilanova, que entre
muitas obras, registou 119 desenhos a tinta da china e aguada, no álbum Edifícios
do Porto em 1833, representando 90 monumentos da cidade.
Das mesmas mãos e no mesmo álbum, encontramos esta imagem
agora da lateral da igreja, assinalada com a letra D na imagem da direita, ou
seja, do Largo da Feira de S. Bento – o Rocio.
Todo aquele pano sul era composto pela frontaria da igreja.
Na imagem da direita vêem-se as duas portarias voltadas a poente e a sul,
fazendo um ângulo recto.
Temos de imaginar o claustro, ou como diziam no
passado, a crasta ou a clasta, com as suas colunas e capitéis. Seis
deles ainda os vi na lapidária do Museu Soares dos Reis- são pedras com
mais de 500 anos.
A porta lá em cima, a famosa Porta do Carros, teve de
ser mudada de sítio, aquando da construção do mosteiro. Foi aberta no extremo norte
da muralha - oposta ao caminho da Ribeira, S. Domingos, Flores e S. Bento. Era
uma das melhores saídas da cidade para terras do norte.
Quem do Mirante via todo esse bulício era a Sua
Senhoria – o epíteto de “Senhoria” foi dado na cidade apenas ao Bispo e à Abadessa
de S. Bento. Várias abadessas por lá passaram, algumas oriundas das
melhores famílias fidalgas. Cada vez que nova abadessa era eleita, havia festa
rija – os famosos outeiros ou abadessadas. Firmino Pereira, no seu
livro O Porto d’outros Tempos, faz-nos crescer água na boca:
«Nas tres festivas noites, no vasto espaço que da Rua do
Loureiro dava para o locutório e para a portaria do Mosteiro, alinhavam os
trens e as cadeirinhas, aguardando os convidados.
Nas grades, abertas, apesar do frio das noites outonaes,
ardiam ricas serpentinas de prata. E lá dentro, na sala de entrada e no pateo,
com profusão se serviam em aparatosos taboleiros cobertos de finas e rendadas
toalhas, os manjares, os pasteis, as trouxas de ovos, os ovos em fio, os
rebuçados, os vinhos generosos, o chá, as loiras fatias de pão de ló, todas as
guloseimas que delicadamente se fabricavam nas vastas e bem providas cozinhas
do mosteiro.
As criadas andavam em uma roda viva, lepidas e amáveis,
acudindo solicitamente a todos que reclamavam os dôces magníficos dos seus
ricos taboleiros.»
O último outeiro deve ter sido em 1863, na reeleição de
Ermelinda Doroteia.
Depois chegou o “Mata frades” – o ministro Joaquim António
de Aguiar confiscou os bens e mandou fechar o convento em 1832-34. Mas a ordem
de demolição previa que só seria executada após a morte da última monja. E ela lá
foi resistindo até 1892.
Em 1894, começaram as demolições pelo claustro e só em 1901
derrubaram a igreja.
O nosso arquitecto Marques da Silva já tinha o risco pronto,
para erguerem nova obra ali naquele terreno “bento”, mas só em 1916 foi
inaugurada a Estação Central dos Caminhos de Ferro do Porto – que hoje
só se conhece como a Estação de S. Bento.
Mais de 100 anos depois, ainda vale a pena andar ali no
átrio com a cabeça no ar. Para admirar mais de 500 metros quadrados de painéis
de azulejos da autoria de Jorge Colaço, que custaram uma fortuna na época – 22.000$000
réis.
À laia de guia turístico, deixo-vos um roteiro para ficarem
com a cabeça andar à roda. Se vos doer muito o pescoço, façam como nos
italianos na “duomo e no battistero” usem um
espelho e procurem:
«Cenas da história nacional (Casamento de D. João I,
no Porto, em 1386, Egas Moniz perante o Rei de Leão, 1142; Conquista de Ceuta,
1415 e Torneio de Arcos de Valdevez, 1140).
Temas de etnografia do Minho e do Douro (Romaria de
S. Torcato, em Guimarães, Procissão de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego;
uma vindima; uma feira do gado; uma azenha; uma fonte com vianesas; uma ceifa; uma
assadeira de castanhas; transporte de vinho em barco rabelo, no Douro; e
cumprimento de promessas); 10 figuras alegóricas; as quatro estações do ano;
Agricultura, Comércio, Indústria, Belas Artes, Literatura e Música.
Admire ainda um friso policromado, junto ao tecto, representando a
evolução dos transportes desde a antiguidade até aos nossos dias, terminando
com a chegada do primeiro comboio a Braga.
Se conseguir ver isto tudo, levando a lista e marcando o visto, sem ser importunado por turistas de telemóvel em riste e sem acabar com um torcicolo no pescoço, dou-lhe os meus parabéns.
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