sexta-feira, 18 de julho de 2025

Às vezes até íamos ao café

 


Sempre gostei muito de café, sempre bebi mais “água cafeínada” do que a conta e desde muito pequeno quando os outros se alimentavam a leite com Milo e Ovomaltine. Eu gostava de café, de preferência puro, sem chicória e muito menos com cevada. Tive a sorte do Sr. António trabalhar numa torrefacção e vender um quilo de café por semana aos meus pais.

Mas hoje não quero recordar a bebida, mas sim o estabelecimento – o CAFÉ – “ir ao café” nunca foi para mim, e ainda hoje não é, saída diária obrigatória. Com tantos anos de vida, naturalmente muitas horas por lá também passei, até pelos bilhares ou em namoricos estudantis, mas o que agora estou a tirar da memória são gestos ou imagens que hoje não se vêem e não se repetem.

Lembro as mesas redondas ou quadradas, com tampos de mármore, relativamente pequenas que rapidamente se enchiam de coisas. E lá vejo as imagens hoje proibidas! Comecemos pelo açucareiro. Não havia pacotes de açúcar, pelo que em cima de cada mesa lá estava o açucareiro de alpaca ou já de inox, com colher dentro, muitas vezes com açúcar agarrado, porque o cliente anterior “distraíu-se” e mexeu o café com a colher do açucareiro e tornou a metê-la lá dentro.

Outro pormenor muito “higiénico” era o prato dos pastéis. Sempre que uma família se sentava, o empregado imediatamente colocava no centro da mesa um prato com meia dúzia ou uma dúzia de pastéis sortidos. Nalguns sítios, o prato vinha coberto com um papel de celofane, por causa das moscas, e mais tarde, como advento do plástico, apareceram as caixas com duas abas que abriam uma para cada lado. O cliente “apalpava”, escolhia, tirava o que queria, pagava o que comia e o resto ia para dentro para voltar a encher o prato, à espera dos próximos. Não pensem que o hábito desapareceu, não preciso de recuar muitos anos, porque já neste século, quando tomava café numa pastelaria famosa lá da terra, lá vinha o pratinho com meia dúzia de clarinhas de Fão, só para tentar o cliente…

Falemos de coisas mais bonitas como as máquinas que justificavam o nome da casa – a(s) máquina(s) do café. Se olhássemos para cima do balcão lá estava ela - a máquina do café, sempre a brilhar, a olhar para nós. Normalmente era um conjunto de quatro cafeteiras, uns cilindros com tampa e torneiras de manípulo – uma para o café de saco, outra para a cevada, outra para o leite e uma só com água quente. O próprio empregado de mesa “manipulava” tudo aquilo – não pedia “saia um café, um pingo, um galão ou uma meia de leite,” ele próprio tratava do assunto. Outros pedidos tinham de ser feitos – “sai uma mirita, e meia com pouca!” Para os menos entendidos, a “mirita” é um pão biju cortado em cinco fatias, torrado com manteiga. Quanto à “meia” era uma “porradinha”, porque a torrada de pão de forma tinha sempre direito a duas fatias, cada uma cortada em três palitos, dois com pouca côdea. Mas a “meia com pouca” era com pouca manteiga, é claro.

Mais tarde o empregado começou a pedir “sai um cimbálino”. No Café Progresso, no Porto, é que não havia disso. Este café sempre se orgulhou de ter o melhor café de saco da cidade. O cimbalino entrou no “falar à Porto” porque o tripeiro também sabia ler e via a marca “la Cimballi” naquela maquineta que puseram em cima do balcão, a rivalizar com a máquina do café.

Quando o tempo aquecia os hábitos mudavam. Os meninos ainda tinham de tomar o copinho de leite  - “morno, não quero quente!” e nalguns sítios até polvilhavam o leite com canela ou nos mesmo com uns pingos de groselha, e ficava mesmo uma bebida de meninas. Sim, porque os rapazes já queriam um “mazagran”. Para os menos entendidos neste cocktail, o mazagran obedecia a um ritual que lhe dava uma imagem e um sabor único. Deixo-vos a receita:
Tomem um copo de vidro alto, cortem uma rodela de limão e deitem-na no fundo com duas colheres de açúcar amarelo, mexam bem até desfazer o limão, juntem gelo moído e uma chávena de café (cevada para as crianças, uff, estragaram tudo), atestem com água fria e mexam, mexam, mexam até fazer um rebordo de espuma e ficar com o aspecto de um fino de cerveja preta Cristal, bem tirado.

Esse mundo da cerveja era dos adultos. Estava-nos vedado, entretínhamo-nos com uma laranjada Invicta, mais tarde com o Sumol de laranja ou de ananás e mais requintado uma Orangina ou uma Laranjina C. Sim, porque já não íamos nas gasosas e o tempo dos pirolitos com bolinha já tinham acabado há muito. Em sítios mais. Para uma alimentação saudável, havia iogurtes – eram uns frascos de vidro da Longa Vida, com um velhote de longas barbas gravado no vidro.

Para os adultos havia coisas estranhas, como o “chá de parreira” que as senhoras bebiam em chávenas, acompanhando rissóis, croquetes ou bolinhos de bacalhau. Os senhores debatiam-se com uns finos que os lá de baixo sempre tiveram a mania de lhes chamar imperiais. Por cá tínhamos nomes mais pomposos como príncipes, mas não faltavam as canecas e muito menos as girafas para os que iam directamente “à fonte” – a cervejaria da CUFP, junto à fábrica, perto do Palácio. Aí a cerveja já não vinha só acompanhada dos tremoços e dos amendoins. Para os endinheirados havia o camarão da costa ou uns percebes ou até uns santiaguinhos, no tempo deles e só para os conhecedores.

Estes últimos podiam figurar nas “7 Maravilhas do petisco em Café”. Assim à vol d’oiseau, vou lembrar outras seis para completar o rol: rissóis do Capa Negra às 10 da manhã, de outros tempos, bolas de Berlim do Natário, à mesma hora, um covilhete na Gómes, em Vila Real, um folhadinho da Dona Tininha, em Fão, um queijinho de meia cura com pão alentejano em qualquer café das planícies e por último um preguinho do Café Pereira. Por aqui, o bife era tão bem batido lá em baixo, que se ouviam as marteladas cá por cima e olhem que não ficava da espessura do fiambrino que o acompanhava… Dizem que faltam as francesinhas, mas isso é uma sandes, hoje de tal modo adulterada, que dela nem vale a pena falar.


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