terça-feira, 2 de setembro de 2025

Os infortúnios da memória

 

Os dias vão passando e eu continuo com a mão leve, sem vontade de deixar ideias no papel. No passado fim de semana, uma conversa com um escritor e uma palestra que a outra ouvi foram o rastilho para deixar algo por aqui sobre a nossa querida memória.

Uma das razões para alguma prosa, que vou por cantos e papéis espalhando, prende-se precisamente com a vontade de deixar memórias gravadas.

O apagamento da memória é algo de inevitável, mas é doloroso quando os anos vão passando e a sentimos fugir. Com boa ou razoável memória, sempre fui invejando aqueles que sem qualquer esforço, sem exercícios ou técnicas de memorização, mostravam resultados melhores que os meus.

Hoje é muito penoso ter ouvido a seguinte justificação - «Não me lembro, porque estou cansado há 50 anos.» Nesses cinquenta anos de cansaço, muita memória foi passada a papel e os livros não se cansam. Basta abri-los e eles revelam toda a memória por este esquecida.

Na palestra, ouvi uma justificação para o comportamento actual face à partilha de antigas memórias que me deixou perplexo. Será que vale a pena, lembrar o passado sobre factos que os jovens de hoje dificilmente compreendem, porque a realidade em que vivem é totalmente diferente?

Como fui educado a valorizar o passado, eu diria que sim. Aqueles que ainda têm memórias devem partilhá-las. Porquê ler os clássicos? Já não querem as historinhas da avó? Por outro lado, os valores actuais, os interesses, as ferramentas que os jovens hoje utilizam não precisam do passado.

O grande problema é quando os “velhotes” falam do passado e estão a mostrar o futuro.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Sobre os Frades Lóios

Prometi voltar aos frades Lóios da baixa. O seu convento também estava retratado na imagem que usei do vizinho mosteiro de S. Bento de Avé Maria, e até a cerca e o seu quintal lá estavam assinalados.

Comecemos por dar um salto ao presente – o que vemos? Nem mais nem menos do que resta da imponente fachada do convento dos Lóios. Uma frente de janelas avarandadas e portas voltadas para a Praça, agora um hotel de luxo, na sua maior extensão. Se lhe dermos a volta, podemos ver as traseiras, que há poucos anos foram totalmente escavacadas. Fizeram lá uma praça interior. Antes, as traseiras e os interiores ficavam em terra e de lá se tirava “o de comer”. Agora, afundam o mais que podem, “enterram” lá automóveis e querem pôr o turista a ‘esplanar’ cá por cima.

Todas as casas, que existiam no miolo deste quarteirão compreendido entre a Praça da Liberdade, a Praça Almeida Garrett, a Rua Trindade Coelho e o Largo dos Lóios, foram demolidas. Foi tudo abaixo…

Mais uma vez, foi o nosso esclarecido Germano Silva que chamou a atenção a quem de direito, para um “chão sagrado” ali existente. Pelo menos, deu sepultura a inúmeras figuras gradas da cidade. Isto, antes de começarem as obras do parque de estacionamento subterrâneo, que construíram no miolo do que era o convento, a igreja e a cerca.

Eugénio Cunha e Freitas foi mais longe, numa monografia que escreveu sobre o convento:
«… em vez dos honrados frades de Santo Elói, estão os gordos e opulentos senhores das finanças e da indústria, perturbando na febre do negócio e do lucro, o eterno descanso de tantas cinzas veneráveis que ali jazem».

Aqui chegado, vou começar a recuar, até desvendar mais um topónimo – “o Passeio das Cardosas”. As primeiras imagens que tenho dele, vejo-as gravadas em placa branca, com letras azuis dos dois lados, em forma de paliteiro, à entrada e saída das escadas da passagem subterrânea que, nos anos 60, construíram ali no sítio da Porta dos Carros. Duas entradas na Estação de S. Bento, com uma saída para os Congregados e outra para o dito Passeio das Cardosas. Tudo foi sacrificado para as linhas do metro.


Era mais rápido atravessar por cima, como sempre fizera – da porta da estação para a porta do Café Astória, em frente. Um dia, um polícia apanhou-me do outro lado e queria que eu pagasse vinte e cinco tostões de multa. Não paguei, mas passei a ir mais vezes pelo subterrâneo. Voltando ao topónimo, acho que acontecia o que durante muitos anos a minha cabeça foi fazendo – decorava os nomes, sabia o nome das ruas e das praças todas de cor, mas a personagem era pouco significativa. Comecei a estranhar quando em Espinho, em vez de nomes davam números às ruas. Não tinham gente famosa? Ah, quem foi este? Quem foi aquele? Nessa data, pouco liguei às “Cardosas”, até ter conhecido e trabalhado com uma “Cardosa trineta”.

Em poucas palavras, recordemos a história do Palácio das ditas Cardosas. Recebeu este nome, porque quando o proprietário morreu, a mulher e as filhas, além de herdarem o imóvel, herdaram-lhe o apelido que passou a dar nome ao Palácio e até ao Passeio. O pai Cardoso deixou-lhes como herança aquele enorme edifício que ele reconstruiu em 1860, a partir do que já existia em 1833, pertencente ao antigo convento dos frades Lóios. Manuel Cardoso dos Santos foi comerciante abastado que soube abanar bem “a árvore das patacas” no Brasil e chegou a Portugal nos tempos em que não faltava imobiliário confiscado a frades e freiras. Há sempre boas alturas para negócios, especialmente num pós-guerra (neste caso a Guerra Liberal terminou com o confisco de bens monásticos). Cardoso comprou o edifício dos Lóios, em hasta pública, pela módica quantia de 80 contos de réis.

Recorde-se que os frades andavam em obras para renovação do convento.  Ainda por ali havia panos da muralha e tiveram mesmo autorização, em 1798, para a sua demolição e reconstrução de toda a frente do convento, para a velha Praça das Hortas. Tinham um bom plano para toda aquela frontaria que dava para o Pasmatório dos Lóios.  Aquele passeio foi sempre lugar de encontros e de gente pasmada – Camilo e seus contemporâneos, escritores, políticos e jornalistas por ali passavam até à Livraria Moré, na esquina, o seu ponto de encontro. Parece que até quiseram formar um clube – O Real Clube dos Encostados – pasme-se!

Se quiséssemos ir às origens, a muralha em direcção ao Campo do Olival passava ali na Fonte da Arca, faceando a Calçada da Fonte da Arca, que depois foi da Natividade e hoje é a rua dos Clérigos. Também havia ai um postigo na muralha, para o que é hoje o Largo dos Loios – era o Postigo da Fonte da Arca ou das Hortas. Só um pequeno parêntesis para outro topónimo da vizinhança – a Rua de Trás. Recebeu este nome precisamente por ficar atrás das muralhas.

Em 1832, quando os Liberais entraram na cidade, os frades deixaram as obras, abandonaram o convento, fugiram e facilitaram a vida ao Mata-Frades que confiscou a casa. O Manuel Cardoso, quando arrematou a casa, ficou com o encargo de terminar as obras, seguindo o risco previamente aprovado e fez dele morada de família. Depois tudo passou a escritórios, lojas e comércios.

A igreja e a antiga residência monástica voltadas para o Largo dos Lóios, como já estivessem em estado ruinoso, foram destruídas depois de 1833 e, no seu terreno, foram edificados prédios para habitação. Nessa altura, a antiga cerca conventual foi cortada pela Rua de D. Maria II (hoje Rua de Trindade Coelho) que foi aberta ao trânsito público no dia 10 de Março de 1838.


Eu só comecei a olhar para o Palácio nos anos 60 e recordo-me do Café Astória, na esquina, a seguir, uma entradita para a Adega da Cerca e a Farmácia Vitália no lado oposto. A casa Campião vendia a sorte grande. O Banco Pinto & Sotto Mayor, ainda não tinha sido aí inaugurado – foi-o em 1972. Como regressava a casa de noite, valia a pena andar de cabeça no ar, porque a Praça, à época, parecia a Picadilly Circus com os feéricos reclames luminosos em cima das Cardosas (na primeira foto, vê-se o reclame das Bolachas Triunfo e das máquinas de costura Oliva) e mais havia, por cima do prédio da Ateneia. Falando em luzes a correr, recordo já nos anos 70, o jornal luminoso, que passava por baixo do frontão triangular. Era um banner de luzinhas amarelas a correr, penso que da responsabilidade de O Primeiro de Janeiro. Como à data não se “fotografavam notícias” as imagens estão apenas na minha memória.

Finalmente, para voltar mesmo  às origens, nada melhor que recorrer às palavras do teólogo da minha rua, o Padre Rebelo da Costa, na sua “Descrição Topográfica…”:

«Convento de Santo Elói (ainda não lhe chamavam dos Lóios), fundado em 6 de Novembro de 1491, no sítio em que estava a Capela da Senhora da Consolação, pertencente a Violante Afonso, dona viúva, que a deu para este fim, com a horta e casas que possuía, a rogos do bispo D. João de Azevedo.» Cá temos mais uma vez o Bispo a mandar na cidade… pede os bens à viúva de Martim Bento, caldeireiro, e ela dá tudo aos frades. Estes terrenos ficavam também com traseiras para a rua dos Caldeireiros.

«Este convento é dos cónegos seculares da congregação de São João Evangelista, vulgarmente chamados dos Loios, que vestem túnica, murça e manta de sarja azul, conforme usavam os cónegos da congregação de São Jorge, em Alga de Veneza…» De uma penada, Rebelo da Costa, explica porque são os ‘padres azuis’ conhecidos como Loios.

No entanto, o Frei Manuel Pereira de Novais, tem melhor explicação, mas em castelhano:
«••• y à tenian [os fundadores] el Domicilio de la Iglesia de San Eulogio, ò Elogio en la ciudad de Lisboa, y en la lengua Portuguesa se llama este glorioso obispo e Martyr Eloy, por esta su habitacion se vinieron a llamar y tener el appelido de Eloyos, y conocidos por este nombre en este Reyno».

«A renda que recebe anualmente passa de vinte mil cruzados estabelecida em dízimos, foros, laudémios, etc.» Mais uma vez, este “paleio” de receber dinheiro eternamente por rendas ou alugueres, que tiveram sempre nomes estranhos e que ainda não os expliquei todos, porque isso vai dar direito a ‘tese de doutoramento’.

«Os seus prelados, que têm o título de Reitores (dizem), a (renda) dispendem na côngrua sustentação de trinta súbditos, cujo número com muito pouca diferença é o que habita dentro da clausura.» Esta afirmação tem muito que se lhe diga. Primeiro, a dúvida de um eclesiástico sobre o título – (dizem) era só ironia. Depois o “talvez elevado” valor das despesas… tanto dinheiro só para 30 frades?

De facto, olhando hoje para aquela frontaria e para as janelas avarandadas, aquilo dá mais do que uma janela para cada frade. E eles eram mauzinhos… gostavam de vir para a janela apoiar os Absolutistas.

Da imagem inicial, em apreço, resta o Convento dos Congregados. Mas para dele falar ainda estou à espera que me digam: “Vai mas é pedir p’ra porta dos Congregados.”





sábado, 26 de julho de 2025

Preparação para a festa



 Andavámos a calcorrear o Carvalhal de Valinhas, porque a vontade queria levar-nos às Quedas de Fervença, ali no fundo - umas cascatas no Leça, que merecem a vista, "quando a ribeira vai cheia". Ele nasce lá em cima, tudo isto é Monte Córdova, mas o Redundo não é fácil de encontrar. As pernas não ajudam e fiquemos pelas vistas...

E pelas gentes! Há sempre uma porta aberta para uma sede de água e desta vez foi mesmo ali, em frente à capela, que duas "mordomas" me ajudaram. 

-Sim, mas olhe que a a nossa festa é só em Setembro. Isto hoje é só para fazer uns tostoezinhos.

- E o que há para logo? Sim porque panelões ao lume já não faltavam, embora os cheiros ainda não fossem aqueles em que dizemos - Daqui já não saio.

- Por volta das três e meia já temos tudo:

    - rojões
    - bifanas
    - moelas
    - orelha
    - pataniscas
    - punheta de bacalhau

e amanhã há vitela assada para o almoço. Tudo acompanhado com vinho do bom...

e eu, tão mal agradecido, só quis uma garrafa d'água... 

ah, porque o resto ainda não estava pronto. Prometi voltar.

S. Thiago das Bichas


O almanaque está com um dia de atraso, mas se houver alguém que necessite do remédio, talvez ainda esteja dentro do prazo de validade.
Tenho uma certa pena de não dedicar mais umas horas da vida à descoberta da nossa etnografia. Pelo Portugal profundo ainda vão fazendo uns cortejos a evocar certas tradições. A imprensa regional vai fazendo algum eco, mas é pouco lida...
Leiam esta notícia do Diário do Minho sobre estórias que não conhecem, nem ouviram alguma vez falar:


»»Cortejo etnográfico deu a conhecer cultura popular de Cabeceiras de Basto


Publicado em 27 de setembro de 2022, às 11:10


Realização integrou programa oficial das festas concelhias em honra de São Miguel.

Dedicado ao tema ‘Lendas e Estórias’, o Cortejo Etnográfico integrado no programa da Feira e Festas S. Miguel 2022 saiu esta tarde, 25 de setembro, à rua. Milhares de pessoas assistiram ao belíssimo desfile que promoveu e divulgou a cultura popular e etnográfica de Cabeceiras de Basto. A freguesia de Abadim apresentou neste cortejo a ‘Os Moinhos de Rei’; a freguesia de Alvite e Passos os ‘Monges oram na Serra da Senhora da Orada’; o Arco de Baúlhe e Vila Nune a ‘Lenda do Crasto’; Basto a ‘Cura de D. Afonso II e atribuição do Couto a Santa Senhorinha pelo Rei D. Sancho I’; Bucos a ‘Atribuição do Galardão Galo de Prata da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal’; Cabeceiras de Basto a ‘Lenda da Dona Loba’; Cavez a ‘Lenda da Construção da Ponte de Cavez’; a Faia trouxe ao cortejo ‘S. Tiago das Bichas’; Gondiães e Vilar de Cunhas a ‘Lenda de S. Sebastião e a Festa das Papas’; a freguesia de Pedraça a ‘Partida de Dom Nuno Álvares Pereira para a Guerra’; Refojos, Outeiro e Painzela a ‘Chegada das Tropas Republicanas à sede do concelho’; Riodouro ‘Os Cemitérios da Discórdia’; e a Associação Vilela Com Vida a ‘Lenda da Cantareira’. [Notícia completa na edição impressa do Diário do Minho] 



Quanto às nossas "Bichas", acho que não é muito fácil encontrá-las, nem há por ali barbeiros que as apliquem. Vou socorrer-me de quem sabe e já publicou boa informação sobre as bichas. Leiam aqui o resumo e vão ao original ler o resto:


Em que consiste a festa das bichas? «A primeira pista é-nos facultada pelas memórias paroquiais de 1758: “Há ao pé desta igreja um ribeiro, em dia de São Tiago, que é o orago, concorre muita gente a tomarem bichas para sararem de várias enfermidades. E é tradição antiga que só naquele dia se achavam no dito ribeiro que se chama de S. Tiago” (CAPELA, 2003: 224). As pessoas da freguesia contam as histórias que os avós lhes contavam: antigamente, quando as pessoas tinham problemas no sangue ou outras doenças em que era necessário purificar o corpo, mergulhavam as pernas no estreito ribeiro que corre perto da igreja de S. Tiago. No dia do Santo, apareciam as sanguessugas que se agarravam às pernas dos banhistas e curavam varizes e coágulos, regenerando os corpos dos devotos.

Reza a lenda que as bichas aparecem apenas no dia de S. Tiago, muito embora a vida e a obra de S. Tiago nada tenham a ver com semelhante lenda. Pormenor que não obsta a que a memória da cura pelas sanguessugas se mantenha viva e festiva. Hoje, ninguém se aventura a mergulhar as pernas no ribeiro, mas a festa das bichas continua a realizar-se com dignidade todos os anos no último fim-de-semana de julho ou no primeiro de agosto, com missa, procissão, música e fogo-de-artifício no final.»

consultar Tendências do Imaginário 



sexta-feira, 25 de julho de 2025

No tempo em que frades e freiras já não mandavam na baixa

As minhas reflexões começaram com esta imagem, que colhi numa visita ao museu nacional cá do burgo. Tanta coisa ela revela, se estivermos atentos, e talvez por isso tenha sido escolhida como peça do mês e tema para uma palestra no museu intitulada – “Aspecto do Porto no século XVIII – a antiga Porta dos Carros”. Como não assisti ao debate, vou ter que me desenrascar sozinho, mas não começo pela Porta, vou pela mole à direita, porque onde encontrei a imagem na lapidária lá no museu, ainda havia restos de capitéis das colunas da crasta do mosteiro.

Comecemos então pelo Real Mosteiro de São Bento de Avé Maria do Porto. Na gravura tem direito a duas letras da legenda: “G- Portas do pátio que ‘feixa’ as portarias das Relligiozas de S. Bento” e H- Seu Mirante”.

Como comecei por dizer, que nesta altura os religiosos já não mandavam na Baixa, vale a pena “dar um pulinho” ao tempo em que o poder eclesiástico “reinou” na cidade do Porto. A mãe do nosso primeiro rei, D. Teresa, em 1120 doou o burgo portucalense e o seu couto à Sé do Porto, e o nosso Bispo D. Hugo começou logo a ditar as suas leis. No século seguinte, as ordens religiosas instalaram-se ali pelas encostas do monte do Olival. O mosteiro de São Francisco, em 1233, era uma construção inicialmente modesta, como impunha a ordem, num terreno que lhes fora cedido, nos limites do burgo. O Bispo não gostou e quis embargar a obra. Foi necessária intervenção papal para resolver uma querela de limites de terras.  Então o Bispo vingou-se concedendo terreno a outra ordem, aos seguidores do francês Domingos de Gusmão, que em 1238, construíram o seu mosteiro dentro do burgo – o mosteiro de São Domingos.

Os anos passavam, o Cabido e a Mitra dividiam as terras entre si e cobravam os seus foros. Os burgueses apoiavam. Pois viam-se protegidos e nem deixavam que a nobreza “pernoitasse” dentro de muralhas, e muito menos adquirisse qualquer propriedade.  Se as coisas não corressem de feição queixavam-se ao Papa. Em 1245, o Papa Inocêncio IV, considerou o rei D. Sancho II – rex inutilis – porque o Bispo do Porto teria ido a Roma queixar-se da sua governação.

Os anos foram passando, falando em conventos e mosteiros muitos foram aparecendo, até que o Venturoso, D. Manuel I, tenta acabar com os privilégios. O mosteiro da gravura é talvez um bom exemplo de como ele quis mostrar o seu poder.

Em 1518, D. Manuel I manda construir um mosteiro, dentro de muralhas, precisamente em terrenos das hortas do Bispo, que “as cedeu de bom grado”… «Era uma obra de excelente construção e decoração, cuja magnificência enobrecia a cidade». Razões para o epíteto “Real” - o Real Mosteiro de São Bento de Avé Maria. Só foi inaugurado em 1528,  o rei mandou encerrar casas mais pequenas, que enviaram para aqui as suas religiosas – casos de São Cristovão de Rio Tinto, Via Cova de Sandim, São Salvador de Tuias, no Marco de Canaveses e Tarouquela. Foram mais de 250 anos de funcionamento, tendo resistido a invasões, cercos e tremores de terra, sempre com as monjas muito activas.

Se mergulharmos nos canhenhos, vamos descobrir que ali ao lado, até ficava a cerca do mosteiro de outros frades – os cónegos azuis, que já tinham aí o seu mosteiro dos Lóios, desde 1491. Quantos não os acusaram de comportamentos impróprios… Mas isso de comportamentos fica para outras núpcias, assim como este mosteiro masculino, que também aparece na imagem, mas que vai ter direito a reflexão à parte.

Voltemos à Ave Maria… porque em 1783 uma desgraça caiu sobre o mosteiro – um grande incêndio destruiu completamente a igreja e parte do mosteiro. Houve mãos amigas que lhes acudiram e em 1794, inauguraram a nova igreja. Vou buscar uma imagem deste lado do convento, porque não imaginava a frente da igreja para a Rua do Loureiro de hoje.

O desenho é de 1833, e saiu da pena de um lente da Academia Politécnica do Porto – Joaquim Vitoria Vilanova, que entre muitas obras, registou 119 desenhos a tinta da china e aguada, no álbum Edifícios do Porto em 1833, representando 90 monumentos da cidade. 

Das mesmas mãos e no mesmo álbum, encontramos esta imagem agora da lateral da igreja, assinalada com a letra D na imagem da direita, ou seja, do Largo da Feira de S. Bentoo Rocio.

Todo aquele pano sul era composto pela frontaria da igreja. Na imagem da direita vêem-se as duas portarias voltadas a poente e a sul, fazendo um ângulo recto.

Temos de imaginar o claustro, ou como diziam no passado, a crasta ou a clasta, com as suas colunas e capitéis. Seis deles ainda os vi na lapidária do Museu Soares dos Reis- são pedras com mais de 500 anos.

A porta lá em cima, a famosa Porta do Carros, teve de ser mudada de sítio, aquando da construção do mosteiro. Foi aberta no extremo norte da muralha - oposta ao caminho da Ribeira, S. Domingos, Flores e S. Bento. Era uma das melhores saídas da cidade para terras do norte.

Quem do Mirante via todo esse bulício era a Sua Senhoria – o epíteto de “Senhoria” foi dado na cidade apenas ao Bispo e à Abadessa de S. Bento. Várias abadessas por lá passaram, algumas oriundas das melhores famílias fidalgas. Cada vez que nova abadessa era eleita, havia festa rija – os famosos outeiros ou abadessadas. Firmino Pereira, no seu livro O Porto d’outros Tempos, faz-nos crescer água na boca:


«Nas tres festivas noites, no vasto espaço que da Rua do Loureiro dava para o locutório e para a portaria do Mosteiro, alinhavam os trens e as cadeirinhas, aguardando os convidados.

Nas grades, abertas, apesar do frio das noites outonaes, ardiam ricas serpentinas de prata. E lá dentro, na sala de entrada e no pateo, com profusão se serviam em aparatosos taboleiros cobertos de finas e rendadas toalhas, os manjares, os pasteis, as trouxas de ovos, os ovos em fio, os rebuçados, os vinhos generosos, o chá, as loiras fatias de pão de ló, todas as guloseimas que delicadamente se fabricavam nas vastas e bem providas cozinhas do mosteiro.

As criadas andavam em uma roda viva, lepidas e amáveis, acudindo solicitamente a todos que reclamavam os dôces magníficos dos seus ricos taboleiros.»

O último outeiro deve ter sido em 1863, na reeleição de Ermelinda Doroteia.

Depois chegou o “Mata frades” – o ministro Joaquim António de Aguiar confiscou os bens e mandou fechar o convento em 1832-34. Mas a ordem de demolição previa que só seria executada após a morte da última monja. E ela lá foi resistindo até 1892.

Em 1894, começaram as demolições pelo claustro e só em 1901 derrubaram a igreja.

O nosso arquitecto Marques da Silva já tinha o risco pronto, para erguerem nova obra ali naquele terreno “bento”, mas só em 1916 foi inaugurada a Estação Central dos Caminhos de Ferro do Porto – que hoje só se conhece como a Estação de S. Bento.

Mais de 100 anos depois, ainda vale a pena andar ali no átrio com a cabeça no ar. Para admirar mais de 500 metros quadrados de painéis de azulejos da autoria de Jorge Colaço, que custaram uma fortuna na época – 22.000$000 réis.

À laia de guia turístico, deixo-vos um roteiro para ficarem com a cabeça andar à roda. Se vos doer muito o pescoço, façam como nos italianos na “duomo e no battistero” usem um espelho e procurem:

«Cenas da história nacional (Casamento de D. João I, no Porto, em 1386, Egas Moniz perante o Rei de Leão, 1142; Conquista de Ceuta, 1415 e Torneio de Arcos de Valdevez, 1140).

Temas de etnografia do Minho e do Douro (Romaria de S. Torcato, em Guimarães, Procissão de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego; uma vindima; uma feira do gado; uma azenha; uma fonte com vianesas; uma ceifa; uma assadeira de castanhas; transporte de vinho em barco rabelo, no Douro; e cumprimento de promessas); 10 figuras alegóricas; as quatro estações do ano; Agricultura, Comércio, Indústria, Belas Artes, Literatura e Música.
Admire ainda um friso policromado, junto ao tecto, representando a evolução dos transportes desde a antiguidade até aos nossos dias, terminando com a chegada do primeiro comboio a Braga.

Se conseguir ver isto tudo, levando a lista e marcando o visto, sem ser importunado por turistas de telemóvel em riste e sem acabar com um torcicolo no pescoço, dou-lhe os meus parabéns.





sexta-feira, 18 de julho de 2025

Às vezes até íamos ao café

 


Sempre gostei muito de café, sempre bebi mais “água cafeínada” do que a conta e desde muito pequeno quando os outros se alimentavam a leite com Milo e Ovomaltine. Eu gostava de café, de preferência puro, sem chicória e muito menos com cevada. Tive a sorte do Sr. António trabalhar numa torrefacção e vender um quilo de café por semana aos meus pais.

Mas hoje não quero recordar a bebida, mas sim o estabelecimento – o CAFÉ – “ir ao café” nunca foi para mim, e ainda hoje não é, saída diária obrigatória. Com tantos anos de vida, naturalmente muitas horas por lá também passei, até pelos bilhares ou em namoricos estudantis, mas o que agora estou a tirar da memória são gestos ou imagens que hoje não se vêem e não se repetem.

Lembro as mesas redondas ou quadradas, com tampos de mármore, relativamente pequenas que rapidamente se enchiam de coisas. E lá vejo as imagens hoje proibidas! Comecemos pelo açucareiro. Não havia pacotes de açúcar, pelo que em cima de cada mesa lá estava o açucareiro de alpaca ou já de inox, com colher dentro, muitas vezes com açúcar agarrado, porque o cliente anterior “distraíu-se” e mexeu o café com a colher do açucareiro e tornou a metê-la lá dentro.

Outro pormenor muito “higiénico” era o prato dos pastéis. Sempre que uma família se sentava, o empregado imediatamente colocava no centro da mesa um prato com meia dúzia ou uma dúzia de pastéis sortidos. Nalguns sítios, o prato vinha coberto com um papel de celofane, por causa das moscas, e mais tarde, como advento do plástico, apareceram as caixas com duas abas que abriam uma para cada lado. O cliente “apalpava”, escolhia, tirava o que queria, pagava o que comia e o resto ia para dentro para voltar a encher o prato, à espera dos próximos. Não pensem que o hábito desapareceu, não preciso de recuar muitos anos, porque já neste século, quando tomava café numa pastelaria famosa lá da terra, lá vinha o pratinho com meia dúzia de clarinhas de Fão, só para tentar o cliente…

Falemos de coisas mais bonitas como as máquinas que justificavam o nome da casa – a(s) máquina(s) do café. Se olhássemos para cima do balcão lá estava ela - a máquina do café, sempre a brilhar, a olhar para nós. Normalmente era um conjunto de quatro cafeteiras, uns cilindros com tampa e torneiras de manípulo – uma para o café de saco, outra para a cevada, outra para o leite e uma só com água quente. O próprio empregado de mesa “manipulava” tudo aquilo – não pedia “saia um café, um pingo, um galão ou uma meia de leite,” ele próprio tratava do assunto. Outros pedidos tinham de ser feitos – “sai uma mirita, e meia com pouca!” Para os menos entendidos, a “mirita” é um pão biju cortado em cinco fatias, torrado com manteiga. Quanto à “meia” era uma “porradinha”, porque a torrada de pão de forma tinha sempre direito a duas fatias, cada uma cortada em três palitos, dois com pouca côdea. Mas a “meia com pouca” era com pouca manteiga, é claro.

Mais tarde o empregado começou a pedir “sai um cimbálino”. No Café Progresso, no Porto, é que não havia disso. Este café sempre se orgulhou de ter o melhor café de saco da cidade. O cimbalino entrou no “falar à Porto” porque o tripeiro também sabia ler e via a marca “la Cimballi” naquela maquineta que puseram em cima do balcão, a rivalizar com a máquina do café.

Quando o tempo aquecia os hábitos mudavam. Os meninos ainda tinham de tomar o copinho de leite  - “morno, não quero quente!” e nalguns sítios até polvilhavam o leite com canela ou nos mesmo com uns pingos de groselha, e ficava mesmo uma bebida de meninas. Sim, porque os rapazes já queriam um “mazagran”. Para os menos entendidos neste cocktail, o mazagran obedecia a um ritual que lhe dava uma imagem e um sabor único. Deixo-vos a receita:
Tomem um copo de vidro alto, cortem uma rodela de limão e deitem-na no fundo com duas colheres de açúcar amarelo, mexam bem até desfazer o limão, juntem gelo moído e uma chávena de café (cevada para as crianças, uff, estragaram tudo), atestem com água fria e mexam, mexam, mexam até fazer um rebordo de espuma e ficar com o aspecto de um fino de cerveja preta Cristal, bem tirado.

Esse mundo da cerveja era dos adultos. Estava-nos vedado, entretínhamo-nos com uma laranjada Invicta, mais tarde com o Sumol de laranja ou de ananás e mais requintado uma Orangina ou uma Laranjina C. Sim, porque já não íamos nas gasosas e o tempo dos pirolitos com bolinha já tinham acabado há muito. Em sítios mais. Para uma alimentação saudável, havia iogurtes – eram uns frascos de vidro da Longa Vida, com um velhote de longas barbas gravado no vidro.

Para os adultos havia coisas estranhas, como o “chá de parreira” que as senhoras bebiam em chávenas, acompanhando rissóis, croquetes ou bolinhos de bacalhau. Os senhores debatiam-se com uns finos que os lá de baixo sempre tiveram a mania de lhes chamar imperiais. Por cá tínhamos nomes mais pomposos como príncipes, mas não faltavam as canecas e muito menos as girafas para os que iam directamente “à fonte” – a cervejaria da CUFP, junto à fábrica, perto do Palácio. Aí a cerveja já não vinha só acompanhada dos tremoços e dos amendoins. Para os endinheirados havia o camarão da costa ou uns percebes ou até uns santiaguinhos, no tempo deles e só para os conhecedores.

Estes últimos podiam figurar nas “7 Maravilhas do petisco em Café”. Assim à vol d’oiseau, vou lembrar outras seis para completar o rol: rissóis do Capa Negra às 10 da manhã, de outros tempos, bolas de Berlim do Natário, à mesma hora, um covilhete na Gómes, em Vila Real, um folhadinho da Dona Tininha, em Fão, um queijinho de meia cura com pão alentejano em qualquer café das planícies e por último um preguinho do Café Pereira. Por aqui, o bife era tão bem batido lá em baixo, que se ouviam as marteladas cá por cima e olhem que não ficava da espessura do fiambrino que o acompanhava… Dizem que faltam as francesinhas, mas isso é uma sandes, hoje de tal modo adulterada, que dela nem vale a pena falar.


terça-feira, 15 de julho de 2025

O Eusébio até ficou branco…

 


Sempre tive a mania do note-taking, mais do que do clipping e só quando preciso dou valor às vantagens de cada um. Vem o intróito a propósito de uma nota que encontrei no meio dos meus papéis e que lamento não ter sido o recorte do jornal onde a notícia apareceu. De qualquer modo, cá vai a transcrição:

«Morreu Luciano, salvou-se o Eusébio e mais seis

5 de Dezembro de 1966

Depois de uma pelada - termo para um jogo de futebol entre duas equipas de sete – vêm os banhos e as massagens. No estádio da Luz há oito jogadores dentro de água que experimentam o novo aparelho de massagens da marca Jacuzzi. Eram eles Jaime Graça, Cavém, Camolas e Malta da Silva. Do outro, Eusébio, Santana, Carmo Pais e Luciano.

Há dois aparelhos de hidromassagem na água que absorbem o ar e a água, aquecendo-os, misturando-os e expelindo-os por um dos lados. É o efeito de massagem.

Os oito jogadores, dentro da tina, falam animadamente, quando, de repente, uma descarga eléctrica mata Luciano e deixa Carmo Pais e Malta da Silva em estado de choque durante horas. Jaime Graça, antigo electricista em Setúbal, corre a desligar o quadro eléctrico e salva Eusébio e os colegas. O Eusébio até ficou branco!»

Não sei em que jornal esta notícia saiu, mas o facto foi verídico, não espalho fake news. Numa manhã de Dezembro de 1966, Luciano Jorge Fernandes, jogador do Benfica, morreu electrocutado numa banheira de massagem. Esta tragédia ainda sobrevive na Net e pode ser recordada em sites de jornais desportivos, mas as minhas notas manuscritas, provavelmente de um jornal do dia, essas desapareceram ou mergulham por aí numa hemeroteca desconhecida.


Diciendos acertados

 


Duerme, duerme, negrito
Que tu mamá está en el campo, negrito
Te va a traer codornices para ti
Te va a traer rica fruta para ti
Te va a traer carne de cerdo para ti
Te va a traer muchas cosas para ti

Ouvir

No necesito silencio
Yo no tengo en qué pensar
Tenía, peru hace tiempo
Ahura ya no pienso más

Ouvir

Trabajo quiero trabajo,
porque esto no puede ser
No quiero que nadie pase
Las penas que yo pasé

Ouvir

Excertos de Atahualpa Yupanqui (1908-1992), o homem das pampas que tive a felicidade de ainda ver no Rivoli, há 40 anos (9 de Março de 1985), onde deixou um “Saludo a José Afonso”.


segunda-feira, 14 de julho de 2025

As sentenças do dia

 

  1. Quem não tem padrinhos morre mouro.
  2. “Teus seios sei-os de cor”. O’Neill
  3. Como diria o Almirante Américo Tomás:
        Só tenho um adjectivo: gostei!!!
  4. Os velhos que paguem a crise.
  5. Ite, missa est.

Contas à moda do Porto

 

“São os habitantes desta cidade em extremo laboriosos e dotados de aptidão para o commércio e indústria, exactíssimos nas suas transações e promessas, e de uma ponctualidade e rigorismo tal em atender aos menores itens de qualquer conta ou ajuste, que por vezes assume um carácter de mesquinhez; é dessa exactidão portuense que nos veio o rifão de fazer contas à moda do Porto, isto é: contribuir cada uma sem discrepância com a competente quota-parte.”

Lamento não recordar o livro donde retirei o texto que andava por aqui em notas soltas. Para os menos conhecedores, “contas à moda do Porto”, não é ir jantar com os amigos, eu comer sardinhas e eles lagosta, chegarmos ao fim e dividirmos a conta igualmente por todos.

Não, com “contas à Porto”, cada um paga o seu, a sua própria despesa.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

O seu assistente digital – Espera galego!

 

foto de blog

Bom dia, “Para se impacientar PRIMA 1; Para se estafar PRIMA 2; Para se irritar PRIMA 3; … Para resolver o seu problema DESLIGUE E VOLTE A LIGAR”.

Se em partilha anterior falei da desumanização nas compras, hoje elevo os meus queixumes para a prestação de serviços. Já não há empresa que prescinda dos seus assistentes digitais. Na publicidade até reconhecem a necessidade de a interlocução ser feita entre pessoas, mas primeiro há que “falar com as PRIMAS todas”. Quantos minutos, até horas não perdemos para conseguirmos um humano que efectivamente nos resolva o problema?

Afinal o que o assistente me mandou fazer foi “desligar tudo e voltar a ligar”, só que foi a vigésima-quinta ordem que me deu!

Felizmente, a maioria das empresas percebeu que era criminoso fazer-nos pagar por chamadas de valor acrescentado, e também já não precisamos de ficar com o auscultador no ouvido a ouvir música enervante, graças ao altavoz, o que também não resolve nada… Espera galego!

Rezam as crónicas que a expressão “espera galego” vem dos tempos em que houve forte emigração de galegos para Portugal. Se muitos ficaram pela província, trabalhando nos campos, muitos houve que tentaram a sua sorte nas grandes cidades, nomeadamente em Lisboa e no Porto. Lá em baixo, aglomeravam-se pela Capela de Santo Amaro, cá pelo Porto, o Largo de S. Domingos, as redondezas da Estação de S. Bento e até o Teatro de S. João seriam os seus pousos favoritos. Ficaram famosos os aguadeiros, os recoveiros ou moços de frete e até os condutores de cadeirinhas que levavam de volta a casa as senhoras que tinham vindo à ópera e ao teatro. Tinham de ficar à espera que os chamassem, daí o  – “espera galego!”.

A minha última indignação foi numa multinacional conhecida, num posto de colheita de sangue, para análises clínicas. Já conheci o espaço com quase meia dúzia de funcionários ou colaboradores como hoje querem dizer. Ao balcão estavam sempre duas pessoas a fazer o atendimento. Havia duas enfermeiras a fazer as colheitas e mais alguém para outros serviços administrativos ou de limpeza. Na última visita, o pessoal ficou reduzido a duas pessoas, com a ameaça de que na próxima seja “posto de colaborador único”.

Lembro-me das nossas irritações quando os autocarros também passaram a ser de “Agente Único”, tabuleta que exibiam ufanamente na frente.  Recordo que os carros eléctricos tinham o guarda-freios que conduzia e o condutor que cobrava os bilhetes. Nas janelas lia-se em letras vermelhas coladas “Se alguma janela aberta o incomoda, peça ao condutor que a feche”. Hoje é o motorista que põe o ar condicionado no máximo.

Mas voltando ao posto da multinacional, quando entramos já é nosso reflexo condicionado procurar o “tiqueteiro” para tirarmos o “tiquê” para a nossa vez.  Já não ouvimos – “quem está a seguir, por favor?” ou “Próoooximo!”. Fui à máquina tirar o bilhete. Não me dá papel e faz-me perguntas. Tenho de “escrever uma carta” para a máquina me aviar. Pede-me para escrever quase vinte algarismos que estão algures na minha receita em números pequeninos que nem os enxergo bem, depois quer outro código, depois quer outro, se me enganar volta tudo ao princípio. Afinal o “assistente digital” não é para eu tirar a senha da minha vez – é para eu fazer o trabalho de uma colaboradora que despediram. Lá dentro, também já não é necessária uma enfermeira especializada para me perfurar as veias – vai haver uma única colaboradora que faz tudo.

E lembre-se, para o ano nem essa cá estará – vai ser atendido pelo nosso robot “Unidlas”.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O Sério já não é o que era…

 

O quê? A sério? Oh, vai-me à loja! Se isso é na montra, o que irá no armazém! Um néguinhos … sem gravata, ehm! Um quarto de carne da de vintóito! Estes são para capas e nas botas bote-lhe meias solas e protectores! Quartilho e meio de petróleo, sff. Quero um quarto de alimpas. Hoje é só um caldinho e rape-me os queixos, é claro. Isso é do tempo do arroz de quinze. Vou ficar aqui prá semente? Ó rapaz, despacha-te, avia a senhora, tira essa lama entre as unhas! “Ainda está quentinho, chegou agora mesmo!” Esta foi a última que me disseram ontem, numa loja de comércio tradicional resistente no Porto, onde as pessoas ainda falam.

Este início nunca iria acabar, se me pusesse aqui como radar no ar, só a escutar as frases do dia-a-dia que era possível ouvir cá pelo burgo, pelo simples facto, que as pessoas falavam, interagiam. Em qualquer loja de comércio havia um balcão e um interlocutor atrás, com quem comunicávamos. Hoje querem tirar-nos o pio!

Se no tempo da outra senhora nos queriam amordaçar e tínhamos de ter cuidado quando abríamos as goelas, hoje dizem que basta “interagimos” com o telemóvel para nos espiarem ainda mais. Deixemos as modernices e voltemos ao título…

O Sério já não é o que era… Da última vez que por lá passei, fui de autocarro, a horas mortas. A velocidade fazia-me ver o tempo a “andar para trás” vertiginosamente. Olhava pela janela e via uma sucessão de ex-casas comerciais, a grande maioria com montra, agora fechadas. Quase todo o pequeno comércio de rua fechou e pasme-se, em duas ou três centenas de metros de rua há dezenas de antigos comércios encerrados. Infelizmente, estes nem para obras foram…

O Sério era um lugar do Porto que teve privilégios régios, quando lhe chamaram Rua da Rainha, teve premonições suicidas quando lhe mudaram o nome para Antero de Quental e tentaram animar-lhe a alma quando o outro cantou “o pica do sete”, porque era a linha do eléctrico que por ali passava. 7 sem traço, com um ou dois traços, se não fosse para a Ponte da Pedra e ficasse ali por S. Mamede ou só pelo Amial. O topónimo é citado em antigos documentos e mapas, mas nenhum nos conta quem foi o “Sério”. Era o lugar do Sério, e chegava. Sabemos que começava ali depois da saída da cidade para Braga, pelo sítio do Olho Vivo, no tempo em que a Lapa ainda era monte, e o lugar, um covil de ladrões. Será que o topónimo tem a ver como facto de dali para cá ser tudo “gente séria”?

Todo o mundo é composto de mudança … e eu penso nas pessoas que viviam ali face ao caminho, ali à direita quem hoje sobe, depois de passar a Igreja da Lapa. As portas das suas casas hoje passaram a ser janelas e ficam lá em cima, a uns três ou quatro metros do passeio, agora com um extenso muro por baixo, porque romperam o monte para abrir a rua cá em baixo, com as casas lá em cima. Depois tiveram de lhes fazer um escadório para esses moradores entrarem nas suas casas pelas traseiras. Mais um sítio onde a ambulância não vai.

Falando nas pessoas dessa zona recordemos quantas não trabalharam na Fábrica de Salgueiros, ali pelo lugar do Sério. Era uma fábrica de fiação, tecelagem e tinturaria onde labutavam várias centenas de operários, que procuravam morar por ali perto. Nasciam as “ilhas” e proliferava o comércio local. As pessoas tinham pouco tempo livre, não tinham automóvel, tinham de comer, beber e vestir-se, tratar da vidinha e tudo tinha de estar ali à mão. Não admira que o pequeno comércio florescesse.

Vou à memória procurar meia dúzia de exemplos desaparecidos que não faltavam no lugar do Sério e noutros sítios idênticos na cidade. Comecemos pela “loja”. Quando hoje usam a expressão tripeira “Vai-me à loja”, não conhecem o sentido denotativo do termo. A loja era um estabelecimento “misto” – de um lado taberna, geralmente com portas de vai-e-vem, tipo “saloon” americano e do outro a venda ou mercearia, que vendia um pouco de tudo. Na província, a loja era “estabelecimento único” e tinha de vender mesmo de tudo.

Com a diferenciação, a loja passou a dividir-se em duas – a taberna/o tasco e a mercearia. “A Flor do Sério” pode ter sido uma das primeiras mercearias, pois não havia lugar ou rua do Porto, que não tivesse a sua “A FLOR de…” de São Crispim, do Paraíso, do Palácio, do Carvalhido…

Quanto ao tasco, era o ponto de encontro de operários depois de despegar e a perdição de muitas “almas”. Se inicialmente era só para beber um ”négus”, houve necessidade de amparar o vinho e surgiram os petiscos. As tabuletas anunciavam “Vinhos e Petiscos”. Algumas casas iam-se especializando e mudando para “Casas de Pasto” – aqui os “animais” eram racionais e muito bem tratados.

O comércio, a indústria e os serviços trouxeram alguma melhoria de vida e alguns trabalhadores passaram a “comer fora”, passaram a frequentar as “casas de pasto”. Deixaram de levar a lancheira de casa, à data, uma pasta de couro ou de pergamóide. Lá dentro ia a marmita – um recipiente de folheta e depois de alumínio, normalmente oval, três quartos do espaço ocupados pela sopa (que em dias de calor até chegava a azedar) e por cima o espaço para o conduto. A tampa conferia alguma estanquicidade ao conjunto. Digo alguma, porque aos baldões na bicicleta, muitas vezes o caldo entornava-se. Não faltava o pano, onde vinha embrulhado o molete, e que servia de toalha de mesa, em cima das pernas e de guardanapo, nem faltava a garrafa de quartilho e meio. Consoante o trabalho havia sempre onde aquecer a marmita – numa fogueira ao ar livre em cima de uma chapa, num fogareiro a petróleo ou até a dona de casa onde se ia fazer um biscato, a quem se pedia para aquecer “o de comer”. Os mais afortunados tinham quem lhes levasse a marmita ao trabalho, não a família, mas a trabalhadeira de uma profissão extinta “a recoveira das marmitas”. Uma mulher que levava várias marmitas, num cesto à cabeça, à porta das fábricas.

Longe da terra e do quintalório, quem passou a viver na cidade ficou privado da hortinha e das “novidades” que lá colhia. Surgiram os pomares para colmatar a situação. Sempre achei mal escolhida a palavra “Pomar” para designar estas casas que vendiam frutas e legumes e lá não os cultivavam. Como é que eram “um pomar” se nem uma árvore de fruta tinham?

As “drogas” cheiravam mal dentro da mercearia e outro comércio se especializava – a drogaria. Na década de 60, em sítios de grande ocupação fabril, o produto mais vendido na drogaria era o petróleo. Não, nem pensem que era o ouro negro. Era um simples líquido côr-de-rosa, o carburante necessário para a máquina a petróleo – o “fogão” mais económico, simples e rápido da época. Novos hábitos de limpeza levaram ao consumo de produtos desta linha que se vendiam na drogaria e que não deviam estar a “deitar cheiro” misturados como arroz e o açúcar, que eram vendidos a granel, não havia pacotes de plástico, como há agora para tudo.

Ainda no campo da alimentação, o lugar do Sério tinha várias padarias e talhos, porque o peixe era vendido de porta a porta pelas peixeiras com a canastra à cabeça.

Nos anos 70, talvez o tempo começasse a “ficar mais curto” e houve necessidade de voltar às origens, pelo que surgiu um ramo de negócio como a loja, para vender de tudo. Era o “Qualquer coisa –mercado”. O marketing criou novos nomes e surgiu o “pequeno-mercado”, o “mini-mercado”, o “super-mercado”, e nós cada vez falávamos menos… até hoje entrarmos e andarmos dentro do “hiper-mercado”, mudos e calados e sairmos carregados de compras, sem sequer perguntar “Quanto é?”. Já agora, pela boa educação, pelo menos digam “MUITO OBRIGADO!”