
O quê? A sério? Oh, vai-me à loja! Se isso é na montra, o que
irá no armazém! Um néguinhos … sem gravata, ehm! Um quarto de carne da de
vintóito! Estes são para capas e nas botas bote-lhe meias solas e protectores!
Quartilho e meio de petróleo, sff. Quero um quarto de alimpas. Hoje é só um
caldinho e rape-me os queixos, é claro. Isso é do tempo do arroz de quinze. Vou
ficar aqui prá semente? Ó rapaz, despacha-te, avia a senhora, tira essa lama
entre as unhas! “Ainda está quentinho, chegou agora mesmo!” Esta foi a última
que me disseram ontem, numa loja de comércio tradicional resistente no Porto,
onde as pessoas ainda falam.
Este início nunca iria acabar, se me pusesse aqui como radar
no ar, só a escutar as frases do dia-a-dia que era possível ouvir cá pelo burgo,
pelo simples facto, que as pessoas falavam, interagiam. Em qualquer loja de comércio
havia um balcão e um interlocutor atrás, com quem comunicávamos. Hoje querem tirar-nos
o pio!
Se no tempo da outra senhora nos queriam amordaçar e
tínhamos de ter cuidado quando abríamos as goelas, hoje dizem que basta “interagimos”
com o telemóvel para nos espiarem ainda mais. Deixemos as modernices e voltemos
ao título…
O Sério já não é o que era… Da última vez que por lá
passei, fui de autocarro, a horas mortas. A velocidade fazia-me ver o tempo a “andar
para trás” vertiginosamente. Olhava pela janela e via uma sucessão de ex-casas
comerciais, a grande maioria com montra, agora fechadas. Quase todo o
pequeno comércio de rua fechou e pasme-se, em duas ou três centenas de metros de
rua há dezenas de antigos comércios encerrados. Infelizmente, estes nem para
obras foram…
O Sério era um lugar do Porto que teve privilégios régios,
quando lhe chamaram Rua da Rainha, teve premonições suicidas
quando lhe mudaram o nome para Antero de Quental e tentaram animar-lhe
a alma quando o outro cantou “o pica do sete”, porque era a linha do
eléctrico que por ali passava. 7 sem traço, com um ou dois traços, se não fosse
para a Ponte da Pedra e ficasse ali por S. Mamede ou só pelo Amial. O topónimo é
citado em antigos documentos e mapas, mas nenhum nos conta quem foi o “Sério”.
Era o lugar do Sério, e chegava. Sabemos que começava ali depois da saída da
cidade para Braga, pelo sítio do Olho Vivo, no tempo em que a Lapa ainda era
monte, e o lugar, um covil de ladrões. Será que o topónimo tem a ver como facto
de dali para cá ser tudo “gente séria”?
Todo o mundo é composto de mudança … e eu penso nas pessoas
que viviam ali face ao caminho, ali à direita quem hoje sobe, depois de passar
a Igreja da Lapa. As portas das suas casas hoje passaram a ser janelas e
ficam lá em cima, a uns três ou quatro metros do passeio, agora com um extenso
muro por baixo, porque romperam o monte para abrir a rua cá em baixo, com as
casas lá em cima. Depois tiveram de lhes fazer um escadório para esses
moradores entrarem nas suas casas pelas traseiras. Mais um sítio onde a
ambulância não vai.
Falando nas pessoas dessa zona recordemos quantas não
trabalharam na Fábrica de Salgueiros, ali pelo lugar do Sério. Era uma fábrica
de fiação, tecelagem e tinturaria onde labutavam várias centenas de operários,
que procuravam morar por ali perto. Nasciam as “ilhas” e proliferava o
comércio local. As pessoas tinham pouco tempo livre, não tinham automóvel,
tinham de comer, beber e vestir-se, tratar da vidinha e tudo tinha de estar ali
à mão. Não admira que o pequeno comércio florescesse.
Vou à memória procurar meia dúzia de exemplos desaparecidos
que não faltavam no lugar do Sério e noutros sítios idênticos na cidade. Comecemos
pela “loja”. Quando hoje usam a expressão tripeira “Vai-me à loja”,
não conhecem o sentido denotativo do termo. A loja era um estabelecimento “misto”
– de um lado taberna, geralmente com portas de vai-e-vem, tipo “saloon”
americano e do outro a venda ou mercearia, que vendia um pouco de tudo.
Na província, a loja era “estabelecimento único” e tinha de vender mesmo de
tudo.
Com a diferenciação, a loja passou a dividir-se em duas – a taberna/o
tasco e a mercearia. “A Flor do Sério” pode ter sido uma das primeiras
mercearias, pois não havia lugar ou rua do Porto, que não tivesse a sua “A
FLOR de…” de São Crispim, do Paraíso, do Palácio, do Carvalhido…
Quanto ao tasco, era o ponto de encontro de operários
depois de despegar e a perdição de muitas “almas”. Se inicialmente era só para
beber um ”négus”, houve necessidade de amparar o vinho e surgiram os petiscos.
As tabuletas anunciavam “Vinhos e Petiscos”. Algumas casas iam-se
especializando e mudando para “Casas de Pasto” – aqui os “animais” eram racionais
e muito bem tratados.
O comércio, a indústria e os serviços trouxeram alguma melhoria
de vida e alguns trabalhadores passaram a “comer fora”, passaram a frequentar
as “casas de pasto”. Deixaram de levar a lancheira de casa, à data, uma
pasta de couro ou de pergamóide. Lá dentro ia a marmita – um recipiente de
folheta e depois de alumínio, normalmente oval, três quartos do espaço ocupados
pela sopa (que em dias de calor até chegava a azedar) e por cima o espaço para
o conduto. A tampa conferia alguma estanquicidade ao conjunto. Digo alguma,
porque aos baldões na bicicleta, muitas vezes o caldo entornava-se. Não faltava
o pano, onde vinha embrulhado o molete, e que servia de toalha de mesa, em cima
das pernas e de guardanapo, nem faltava a garrafa de quartilho e meio.
Consoante o trabalho havia sempre onde aquecer a marmita – numa fogueira ao ar livre
em cima de uma chapa, num fogareiro a petróleo ou até a dona de casa onde se ia
fazer um biscato, a quem se pedia para aquecer “o de comer”. Os mais
afortunados tinham quem lhes levasse a marmita ao trabalho, não a família, mas a
trabalhadeira de uma profissão extinta “a recoveira das marmitas”. Uma
mulher que levava várias marmitas, num cesto à cabeça, à porta das fábricas.
Longe da terra e do quintalório, quem passou a viver na
cidade ficou privado da hortinha e das “novidades” que lá colhia.
Surgiram os pomares para colmatar a situação. Sempre achei mal escolhida
a palavra “Pomar” para designar estas casas que vendiam frutas e legumes e lá
não os cultivavam. Como é que eram “um pomar” se nem uma árvore de fruta
tinham?
As “drogas” cheiravam mal dentro da mercearia e outro
comércio se especializava – a drogaria. Na década de 60, em sítios de grande ocupação
fabril, o produto mais vendido na drogaria era o petróleo. Não, nem pensem
que era o ouro negro. Era um simples líquido côr-de-rosa, o carburante
necessário para a máquina a petróleo – o “fogão” mais económico, simples e
rápido da época. Novos hábitos de limpeza levaram ao consumo de produtos desta
linha que se vendiam na drogaria e que não deviam estar a “deitar cheiro”
misturados como arroz e o açúcar, que eram vendidos a granel, não havia pacotes
de plástico, como há agora para tudo.
Ainda no campo da alimentação, o lugar do Sério tinha várias
padarias e talhos, porque o peixe era vendido de porta a porta pelas peixeiras
com a canastra à cabeça.
Nos anos 70, talvez o tempo começasse a “ficar mais curto” e
houve necessidade de voltar às origens, pelo que surgiu um ramo de negócio como
a loja, para vender de tudo. Era o “Qualquer coisa –mercado”. O
marketing criou novos nomes e surgiu o “pequeno-mercado”, o “mini-mercado”,
o “super-mercado”, e nós cada vez falávamos menos… até hoje entrarmos e
andarmos dentro do “hiper-mercado”, mudos e calados e sairmos carregados
de compras, sem sequer perguntar “Quanto é?”. Já agora, pela boa educação, pelo
menos digam “MUITO OBRIGADO!”