Passear pela Foz do Douro, virando as costas ao rio e ao
mar, olhando para dentro é um modo diferente de ver as marcas do nosso passado
por estas bandas. Hoje vou dar três pinceladas rápidas das nossas deambulações.
A primeira pinta as pessoas. Estávamos no Montebelo, junto
ao aqueduto e somos cumprimentados por uma velhinha que à primeira vista vinha
com camisa de noite e roupão até aos pés. Vista mais atentamente isso não era
verdade. Trazia um vestido de um tecido fino, ao qual deve ter cortado uma
tira, para fazer aquele puxinho cor-de-rosa, com que trazia o cabelo amarrado.
Por cima era um felpudo casaco quase tão comprido como o vestido, de um
coloridíssimo padrão que a tornava uma figura encantadora.
Ali ao lado, um morador, com uma vista deslumbrante da sua
varanda, sobre o Douro, não tirou os olhos de nós para descobrir o que
andaríamos por ali a fazer.
Fomos ver os altos muros da Quinta de Cima, que os
aristocratas do vinho do Porto por aqui deixaram. Tivemos a sorte de ver os
patrões a sair de carro e permitirem que espreitássemos a propriedade. Ah, mas
eles não arrancaram enquanto o portão não fechou completamente. Devíamos ter ar
de corsários e poderíamos invadir o castelo.
Descemos uma rua “bendita” para ir desembocar ao Largo da
Benedita. Não resistimos a espreitar a porta da Mercearia Pó de Arroz.
Há gente lá dentro e convidam-nos a entrar. É uma mercearia de bairro que
sobrevive no interior da Foz Velha. A gerência já foi passada para a filha, teenager
até há pouco, mas com vontade de seguir as pisadas da família. A mercearia não
é dessas “coisas gourmet” de agora. É mesmo a loja antiga, bem airosa
por sinal, mas onde podemos abastecer-nos de tudo, de mercearia, de drogaria,
de padaria, até de peixe, porque “o meu marido é pescador”, dizia-me a mãe.
Lamentei os muitos carros estacionados no largo. Fiquei a
saber que foram os responsáveis pela destruição do fontanário que estava
ali no meio.
“Mas já o levaram e estão a consertá-lo”. Haja esperança,
porque os fontanários de ferro fundido, com duas bacias, alguns até com
candeeiro ao centro, serviram esta gente durante muitos anos. E provavelmente o
deste largo deve ser um dos poucos exemplares que restam da Fábrica de
Fradelos.
Falando de água, valeu a pena dar um saltinho às fontes que
infelizmente estão secas. Fomos atrás da Fonte dos Frades, que saíram da
Foz, mas lá deixaram a sua fonte, com data garrafal de 1889, pelos vistos
quando foi restaurada, já muito depois do mosteiro dos beneditinos de Santo
Tirso ter sido extinto. Dizem que à fonte também lhe chamaram de Santa Beda.
Não sei porquê, mas como eram de São Bento seria mais certo a fonte ser do São
Beda, como também existe exemplar em Tibães.
Já agora, a Fonte de Cima tem duas bicas secas que
saíam da boca de duas caras que parecem mesmo frades beneditinos. Dizem que
também lhe chamam Fonte do Rio da Bica. O estudo fica para outras
ocasiões, porque temos de dar outra pincelada a uma obra erigida após a saída
dos frades.
Estamos em frente à Igreja de S. João da Foz. Deixemo-lo
lá em cima no nicho e preocupemo-nos com o seu interior, que bem necessita de
obras de conservação.
Faz pena ver aqueles altares, saídos das mãos de mestres entalhadores do século XVIII, que já foram belíssimos exemplares de talha dourada e hoje têm a madeira à vista, com tão pouca tinta e purpurina dourada. Já não falo em folha de ouro… que vão longe as riquezas do Brasil.
São riquíssimos altares barrocos com grande profusão de
imagética. A “jóia joanina” – o altar-mor, com os “santos da casa” - o São
Bento e S. João, rodeados pela melhor talha barroca da cidade, está acompanhada
por oito altares laterais, onde impressiona a profusão artística e a imagética.
A Senhora da Luz e o São Bartolomeu, que também são da terra, estão
acompanhados por mais de duas dúzias de santos e santas, devidamente
identificados.
As raízes da igreja da Foz ficam para outra ocasião, porque
é necessário revolver as pedras do Forte de S. João da Foz, que integrou
o mosteiro e a igreja dos frades beneditinos - ainda hoje se vê, dentro do
forte, a abóbada da igreja. Tudo foi mandado erguer por um Bispo de Viseu, D.
Miguel da Silva que ainda tem o seu nome bem lavrado e visível, na parede do
farol de S. Miguel-o-Anjo, ali em frente, esse concluído em 1527. Além de fortificação
militar, com algum trabalho durante as lutas liberais, a fortaleza foi também
prisão para presos políticos e até residência de uma poetisa. Florbela
Espanca aí viveu quando casada, em segunda núpcias, com um oficial da guarnição. Quando à actual Igreja de São João da Foz, a
sua construção deve-se ao empenho dos frades do Mosteiro de Santo Tirso,
que desde os finais dos seiscentos até 1735/40 a foram embelezando, pelo que
merece ser acarinhada, uma obra que tanto tempo levou a fazer.
Ainda no património religioso, demos uma espreitadela à Capela
de Nossa Senhora da Conceição. Com a porta fechada, só nos restou procurar
nos nomes listados na placa marmórea datada de 1942, o de um tal Manuel
Ferreira, o Pádua, carpinteiro. Naquela data, dizem que este, ao afastar
a imagem da Senhora, descobriu um buraco nas costas, enfiou a mão e tirou de lá
os projectos do risco da capela, que alguns dizem terem sido “riscados”
por um tal Nasoni. Infelizmente os papéis perderam-se nas obras ou num
cofre de um confrade…
Deixemos os riscos e passemos uma última pincelada pelas
letras. Vários escritores de renome viveram por estes sítios.
Desde o desaparecimento do Eugénio de Andrade das
janelas da casa que a CMP lhe arranjou, ali junto da Calçada de Serrúbia, que
nunca mais vi aquela porta aberta. Biblioteca, Fundação, Casa da Poesia,
Auditório, tantas valências a casa tem … mas quem lhe abre a porta?
De portas fechadas, continua também, mais à frente, a casa
de António Rebordão Navarro que o poeta doou à Sociedade Portuguesa de
Autores, em 2010. Vemo-la a degradar-se a cada dia que passa. Haverá alguém que
se interesse por ela?
Finalmente a casa de Raul Brandão. Quando me estava a
aproximar, ouvia música ou vozes de rádio que deitavam por fora. Uma janela do rés-do-chão
estava escancarada. Não resisti, meti lá o nariz – imaginava ir coscuvilhar um
qualquer happening cultural em sábado de manhã, em homenagem ao
escritor. Eis que vejo um ser humano, num quarto de dormir, sentado ao pé de
uma cama de casal, com roupa revolta, que me saltou aos olhos e o som roufenho
de um “transistor” em altos berros inundou-me os ouvidos.
Será um sem-abrigo que invadiu a casa ou alguma alma caridosa abriu a casa de Raul Brandão a um necessitado?
Talvez para amenizar o quadro, importe lembrar as palavras de um insígne fozeiro, Joaquim Pinto da Silva, que não nega esta ter sido a casa onde Raul Brandão nasceu, como reza a placa, mas a casa onde ele viveu e que referenciou em muitas passagens das suas obras, tenha sido a do número 254, do Passeio Alegre.
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