terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Do Ribeirinho era um salto à Falperra

 


Hoje pego em dois topónimos (Ribeirinho e Falperra) que assinalaram locais dos meus habituais trajectos e dos quais não há qualquer marca actual que os faça recordar. 

Comecemos pelo Ribeirinho, que como o nome faz crer seria uma correntezazita de água, que dizem que vinha lá das quintas de Salgueiros, atravessava as Águas Férreas e escorria para Cedofeita. Nesta rua, mais abaixo, já falei de facto similar que terminava na Fonte de Cedofeita mandada fazer por um dos irmãos Braga. Aqui, também a água acabou em fonte. Viesse ela donde viesse. São vários os sítios online, onde ela é descrita, localizada e identificada. Chamam-lhe Fonte do Ribeirinho ou dos Ablativos. Custa-me ler estes “copy-paste’s” onde os copistas pouco acrescentam e limitam-se à lei do menor esforço, escrevem, tantas vezes sem saberem o que lá está escrito, porque muitas vezes talvez nem o tenham lido “Copy & Pronto”, diria eu, “pronto a outros comerem”.

Como gosto de preparar o que como, e já agora de preferência “slow food”, para demorar mais tempo, aquela coisa dos “Ablativos” ficou-me cá dentro a remoer. O meu professor de latim também nos moía a cabeça com os “genitivos, dativos e ablativos”, mas achava que isso não tinha nada a ver com fontes. Onde estariam ou o que seriam os ablativos da fonte? Parece que alguém os contou – são 24! Imaginei elementos decorativos, que a minha fraca educação artística não descortinara ainda. Mas procuremos….

Os nossos amigos que escreviam em O Tripeiro, gostavam de nos fazer luz sobre estas dúvidas. Num artigo de 1927, Henrique Cezar elucida-nos sobre esta Fonte dos Ablativos - (O Tripeiro. - Porto. - Série 3, Ano 2, nº 28 (1927), p. 60-61).

Vou passar já aos “ablativos”:

REFECTIS, ALIIS , ALIIS A FUNDAMENTIS.
EXCITATIS. PLATEIS LAPIDEIS AD FLUMINIS RIPAS. ACCERIBUS
AQUAEDUCTIBUS. FONTIBUS. QUEIS OBBIS. TANTILLUM
LABANS. ET INCOMODA COMMODISSIMA. AC PULCHERRIMA.
REDDITA. FUIT QUAE. AD. HOC USQUE. TEMPORIS.
IMPURA. TERRA. QUE. DESPERDITA. SCATURIBAT. AQUA.
HIC. NOUM. OPERE. COLLECTA SOBURBANO AC. SITIENTI
POPULO. LIMPIDISSIMA. PROFLUIT.  REGNANTE. MARIA. PRIMA
PIA. AUGUSTA. FELICI.CURANTE JUSEPHO. ROBERTO. VIDAI
A GAMA. REGIAE. MAGESTATIS. A CONSILIIS. PORTUCALANSI
CANCELARIO. JUSTITIAE PRAESIDIS. VIGEM.
GERENTE. A. D. CID ID  CCLXXXX.

Como latim macarrónico não é o meu forte, recorro também à "tradução" do mesmo:

Com aprasimento de muitos, e desagrado de outros, foram reunidas as aguas que corram sujas e desaproveitadas, pelas lages da rua, e pelas margens do ribeiro, formando charcos immundos, e difficultando a passagem dos transeuntes. Assim, as aguas, conduzidas para esta fonte, tornaram o sitio, até então, incommodo e sujo, em bello o commodissimo; e as aguas, agora limpidíssimas, desalteram os suburbanos sequiosos.
Foi feita esta obra no reinado da piedosa, feliz e augusta rainha, D. Maria I, por diligencias de Jose Roberto Vidal da Gama, dos conselhos de sua real magestada, chanceller portuense, servindo de presidente do Tribunal de Justiça; no anno do 1790.

Já agora, o escrito na pedra ficou imortalizado, pelo menos, até aos nossos dias:


Bem vamos por partes. Afinal os ablativos estão na inscrição latina da pedra da fonte.

Para os menos entendidos nestas questões latinórias, as palavras latinas variam em género, número e caso. “Caso” refere-se à função sintáctica que a palavra desempenha na frase. Recordo o Nominativo (sujeito), o Genitivo (compl determ. de posse), o Acusativo (compl directo), o Dativo e o tal Ablativo para outro tipo de complementos. Chega de aula de latim. Vamos ao texto. De facto, aquilo não é texto nenhum. Começa com os tais ablativos desgarrados, sem constituírem qualquer frase. Se achávamos graça às placas de mármore do Café Piolho, em latim macarrónico que os doutores mandam lá afixar, quando acabavam o curso, aqui poderia ter sido um desses doutores “inspirado” a mandar gravar isto? Terá sido o tal presidente de Justiça, identificado na inscrição, “Jusephus Roberto Vidal Gama” o inspirador? Não sei, nem descobri.

Depreendem-se as razões da construção da fonte, pelas tais palavras avulsas, percebemos que “a água andaria pelas pedras da rua e pelas margens do rio”. Sim o “ribeiro” sobe à categoria de rio… e passara de “incomoda a pulcherrima”, quem? Sempre gostei do absoluto simples deste adjectivo, aqui foi-se o ablativo…  

Dizem haver várias “traduções”, mas eu encontro sempre a mesma, com frases que me custa a entender, como «as águas… desalteram os suburbanos sequiosos». Porque repetem todos o incompreensível?

Bem, eu não desisto e um dia irei descobrir mais, sobre as razões deste latinório. Fiquemos pelas coisas simples – a fonte foi feita no reinado de D. Maria Pia, no ano de 1790.

É pena que sítios como o Arquivo Municipal do Porto induzam em erro os seus leitores. No texto referente a uma fotografia da Foto Guedes (1885-1932), faz uma boa descrição da fonte que passo a citar:

«Fonte em granito constituída por uma única bica que lança água para uma pia semi-circular disposta quase ao nível do chão. Por cima da inscrição, destaca-se um medalhão em baixo-relevo, com as armas do Porto usadas até 1832. Esta fonte situava-se no antigo lugar com o mesmo nome, na atual Rua de Cedofeita e em frente à Rua da Torrinha. É também conhecida por Fonte dos Ablativos por conter no seu corpo uma extensa inscrição latina com numerosos ablativos. Foi transferida para o Jardim do Barão de Nova Sintra em 1933

(Na foto vê-se que as pedras estão numeradas, para a boa reconstituição da fonte)

Segue-se “a inscrição” – a mesma tradução a terminar com “os suburbanos sequiosos”, não a “latina”. No entanto, há um período no texto que nos deixa a pensar sobre quem escreve isto e a que fontes recorre. Refiro-me ao texto sobre a localização da fonte. Diz que se situava no antigo lugar com o mesmo nome, sem o ter sequer identificado; depois diz ser em frente à Rua da Torrinha. Pois, isso era a outra… A fonte dos Bragas é que estava em frente à Torrinha, na rua de Cedofeita.

A conversa vai longa, mas voltemos ao lugar – o Ribeirinho. A tal correntezazita de água para uns e até rio para outros, deu lugar ao topónimo atribuído ao final da rua de Cedofeita, depois de cruzar a Rua da Boavista em direção à Falperra.

Hoje temos de actualizar os topónimos – rua do Barão de Forrester, para o Ribeirinho e lugar da Ramada Alta, para Falperra.  E como ainda há muito a contar sobre estes sítios, fica a prosa para a próxima.

Sem comentários:

Enviar um comentário