Casa do barão de Forrester
Vou retomar o caminho já iniciado pelo sítio do Ribeirinho,
precisamente pela Rua de Cedofeita, no troço depois da rua da Boavista, que
mudou de nome e passou a homenagear o Barão de Forrester. Tal facto deve ter
ocorrido por volta de 1879, quando a CMP procedeu ao alinhamento da rua.
Recorde-se que, em 1861, J. James Forrester havia perecido num naufrágio no
Cachão da Valeira, no rio Douro, onde salvaram a D.ª Antónia Ferreirinha e
muitos outros que seguiam no barco. Pormenor curioso sobre a rua – alteraram o topónimo,
mas os números de polícia mantiveram-se. Assim, em vez de começar por, 2, 4, 6…
a rua Barão de Forrester começa por 700, 702, 704 … conheço poucos exemplos
iguais.
Lamento não aceder a um mapa dos oitocentos, onde esta rua
ainda seria rua da Cruz, que assinalava a localização de uma fonte, que
presumo ser a dos Ablativos.
Seria ainda de falar da Tutoria Central da Infância,
situada aqui a meio da rua, mais tarde Colégio de Santo António, pelo
menos por causa das ameaças que nos faziam – «Se te portas mal, mando-te
para a “titoria”», que embora não soubéssemos o que era, infundia-nos medo.
A casa do Barão era no cimo da rua, já quase no largo. Foi
casa importante, pelo menos pelas figuras das letras e da cultura que por lá
passaram, para além dos negociantes, especialmente do vinho. Também lá viveu outro comerciante, Freitas
Fortuna, grande amigo de Camilo, que até quis que ele fosse sepultado no seu
jazigo na Lapa. Curioso que, Camilo era grande inimigo do Barão que, no
entanto, a todos acolhia. Demoliram a casa e trocaram-na por um prediozito de
apartamentos.
Nos finais do dezanove e inícios do século vinte, a rua
ganha fama por outros motivos – era ponto de passagem de romeiros que faziam “romaria
intermédia” pela Falperra, ou melhor, pela Ramada Alta. Há notícias de
jornais que relatam as cadeiras estrategicamente colocadas ao longo do
Ribeirinho, para ver passar os romeiros para o Senhor de Matosinhos, que iam
nos carroções, puxados a bois ou a mulas, nos burricos, nas charretes e muitos
a pé.
Desde 1732, data em que se começou a fazer a Festa ao Senhor de Bouças, na segunda oitava do Espírito Santo, (traduzindo, cinquenta e dois dias depois da Páscoa, uma festa móvel como a do Pentecostes). A devoção inicialmente era dos pescadores e dos lavradores de Matosinhos, mas estendeu-se aos concelhos vizinhos, quando se faziam procissões pelo Porto, com o andor do Santo, como agradecimento por ter serenado os ares de tempestade, as chuvas torrenciais ou o abrandamento do dizimar de mortes pelas epidemias nos finais do dezassete.
A festa durava três dias. Começava no domingo e terminava na
terça-feira, dia em que, segundo a tradição, apareceu a imagem do Bom Jesus,
sem um braço, na praia do Espinheiro. Cinquenta anos depois, um pedaço de
madeira que tinha sido apanhado na praia, com outra lenha, levado para casa não
ardia no fogão – era o braço que faltava.
Para estes romeiros, onze dias antes (quarenta depois da
Páscoa), outra festa os esperava – a Senhora da Hora, com a milagrosa água das
suas sete bicas. Para ambas as romarias, as gentes da cidade passavam pelo
Ribeirinho.
Vindos pela rua da Estrada (Cedofeita), paravam na Ramada
Alta, já vamos ver porquê, seguindo pela rua da Falperra (depois Nove de Julho)
até ao Carvalhido, onde havia nova paragem. Aqui uns iam por Ramalde do Meio,
atravessavam o Viso e chegavam às Sete Bicas, enquanto os que rumavam ao templo
do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos tinham de ir lá abaixo a Lordelo e
Serralves, para lá chegarem pela Rua da Vilarinha. Lembremos que à
data ainda não tinha sido aberta a Estrada da Circunvalação, que hoje é o
caminho mais rápido.
Voltando atrás, qual a razão das cadeiras no passeio do
Ribeirinho e a festa pelo meio, na Ramada Alta?
O povo sempre gostou de festas e antes da devoção estava a obrigação de
fazer bem aos estômagos para aguentar a viagem. Quanto às cadeiras, muitas até
eram de aluguer, havia quem pagasse para ver passar a “procissão” – os magotes
de gente que ia ou vinha da festa, com os romeiros animados, cantando e
dançando ao som das concertinas. Narra uma notícia de um jornal dos finais dos
oitocentos que certo ano, com o mau tempo que se avizinhava, nem valeu a pena
pôr as cadeiras cá fora.
Com tantos santos e caixas de esmola, a Capela era lugar para
pagamento de promessas e daí que nestas datas de outras romarias, muito povo
parasse por aqui. Os tendeiros aproveitavam para fazer o seu negócio. Ali se
montavam os velhos comes e bebes. Desde o peixe frito às famosas espetadas,
acompanhadas do tintol, tingido a baga de sabugueiro, que um jornalista da
época, dizia que «aquelas pipas tinham uma zurrapa a que chamam vinho», tudo se vendia.
Para adoçar o bico, não faltavam os famosos doces de Paranhos, apregoados
pelas moçoilas cá da terra, nem as cavacas, o doce da Teixeira e outros doces
vindos das terras vizinhas.
O lugar também era conhecido como a Falperra. Este
topónimo está etimologicamente associado a lugares de salteadores. No entanto, parece
que eles se acolitavam um pouco mais acima, pelo Monte Pedral, sítio de má
fama, território do Mata e Rouba, que tinha a sua quadrilha por lá
espalhada. Hélder Pacheco dizia que era “lugar onde abundavam as ladroeiras”.
Aqui pela rua da Falperra, hoje de 9 de Julho, um pouco inexplicavelmente,
acolheu-se, no início do século XIX, gente piscatória vinda de Ovar que
naturalmente também foram para sítios mais marítimos como a Afurada ou o Ouro. Ficaram
conhecidos como os “vareiros do Carvalhido”. Assim, por estes sítios, podia
comprar-se sável vindo do Douro ou o marisco da costa.
Como os “santos da casa” não costumam fazer milagres, eram
devotos de santo mais longínquo – do Senhor da Pedra, onde no
Verão iam em romaria. Mais uma vez, recorrendo a Hélder Pacheco, sabemos da
alegria com que faziam o caminho, cantando e dançando a chula: «Ó moças virai,
virai / as costas ao Carvalhido / Eu também viro as minhas / Ao largo de Santo
Ovídio».
A rua ainda tinha a fonte da Falperra e o cruzeiro do Senhor
do Padrão, lugar de grande devoção. Com o alastrar urbanístico a fonte
desapareceu e o Senhor do Padrão foi para o fim da rua, já no largo do Carvalhido.
Este Senhor deu as boas vindas ao exército libertador, que passando por ele,
entrou na Falperra e por isso mudaram o nome à rua para 9 de Julho, data em que
eles entraram e o Carvalhido também a partir de então tem placa “Praça do
Exército Libertador”, embora todos lhe chamemos – o Carvalhido.
Estes lugares foram sempre zona pobre, que acolheu gente
humilde durante muitos anos. Só pelos anos 60, num espaço atravessado pela
Falperra, quando foi aberta a continuação da rua da Constituição, desde Serpa
Pinto a Oliveira Monteiro, conseguiram acabar com um verdadeiro bairro de lata,
que se foi propagando por aqueles terrenos.
A Constituição já não era a rua de 27 de Janeiro, que levara anos a romper o Monte Pedral e só nos anos 70 chegou à Carcereira, sítio conhecido pela Casa de Saúde e pela recolha de autocarros nessa época. Ficávamos desiludidos quando à espera do autocarro, em vez do nosso destino, ele ia para a recolha. “Oh, vai para a Carcereira!”
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