quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Continuando pela Falperra...

 

Casa do barão de Forrester

Vou retomar o caminho já iniciado pelo sítio do Ribeirinho, precisamente pela Rua de Cedofeita, no troço depois da rua da Boavista, que mudou de nome e passou a homenagear o Barão de Forrester. Tal facto deve ter ocorrido por volta de 1879, quando a CMP procedeu ao alinhamento da rua. Recorde-se que, em 1861, J. James Forrester havia perecido num naufrágio no Cachão da Valeira, no rio Douro, onde salvaram a D.ª Antónia Ferreirinha e muitos outros que seguiam no barco. Pormenor curioso sobre a rua – alteraram o topónimo, mas os números de polícia mantiveram-se. Assim, em vez de começar por, 2, 4, 6… a rua Barão de Forrester começa por 700, 702, 704 … conheço poucos exemplos iguais.

Lamento não aceder a um mapa dos oitocentos, onde esta rua ainda seria rua da Cruz, que assinalava a localização de uma fonte, que presumo ser a dos Ablativos.

Seria ainda de falar da Tutoria Central da Infância, situada aqui a meio da rua, mais tarde Colégio de Santo António, pelo menos por causa das ameaças que nos faziam – «Se te portas mal, mando-te para a “titoria”», que embora não soubéssemos o que era, infundia-nos medo.

A casa do Barão era no cimo da rua, já quase no largo. Foi casa importante, pelo menos pelas figuras das letras e da cultura que por lá passaram, para além dos negociantes, especialmente do vinho.  Também lá viveu outro comerciante, Freitas Fortuna, grande amigo de Camilo, que até quis que ele fosse sepultado no seu jazigo na Lapa. Curioso que, Camilo era grande inimigo do Barão que, no entanto, a todos acolhia. Demoliram a casa e trocaram-na por um prediozito de apartamentos.

Nos finais do dezanove e inícios do século vinte, a rua ganha fama por outros motivos – era ponto de passagem de romeiros que faziam “romaria intermédia” pela Falperra, ou melhor, pela Ramada Alta. Há notícias de jornais que relatam as cadeiras estrategicamente colocadas ao longo do Ribeirinho, para ver passar os romeiros para o Senhor de Matosinhos, que iam nos carroções, puxados a bois ou a mulas, nos burricos, nas charretes e muitos a pé.

Desde 1732, data em que se começou a fazer a Festa ao Senhor de Bouças, na segunda oitava do Espírito Santo, (traduzindo, cinquenta e dois dias depois da Páscoa, uma festa móvel como a do Pentecostes). A devoção inicialmente era dos pescadores e dos lavradores de Matosinhos, mas estendeu-se aos concelhos vizinhos, quando se faziam procissões pelo Porto, com o andor do Santo, como agradecimento por ter serenado os ares de tempestade, as chuvas torrenciais ou o abrandamento do dizimar de mortes pelas epidemias nos finais do dezassete.

A festa durava três dias. Começava no domingo e terminava na terça-feira, dia em que, segundo a tradição, apareceu a imagem do Bom Jesus, sem um braço, na praia do Espinheiro. Cinquenta anos depois, um pedaço de madeira que tinha sido apanhado na praia, com outra lenha, levado para casa não ardia no fogão – era o braço que faltava.

Para estes romeiros, onze dias antes (quarenta depois da Páscoa), outra festa os esperava – a Senhora da Hora, com a milagrosa água das suas sete bicas. Para ambas as romarias, as gentes da cidade passavam pelo Ribeirinho.

Vindos pela rua da Estrada (Cedofeita), paravam na Ramada Alta, já vamos ver porquê, seguindo pela rua da Falperra (depois Nove de Julho) até ao Carvalhido, onde havia nova paragem. Aqui uns iam por Ramalde do Meio, atravessavam o Viso e chegavam às Sete Bicas, enquanto os que rumavam ao templo do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos tinham de ir lá abaixo a Lordelo e Serralves, para lá chegarem pela Rua da Vilarinha. Lembremos que à data ainda não tinha sido aberta a Estrada da Circunvalação, que hoje é o caminho mais rápido.

Voltando atrás, qual a razão das cadeiras no passeio do Ribeirinho e a festa pelo meio, na Ramada Alta?  O povo sempre gostou de festas e antes da devoção estava a obrigação de fazer bem aos estômagos para aguentar a viagem. Quanto às cadeiras, muitas até eram de aluguer, havia quem pagasse para ver passar a “procissão” – os magotes de gente que ia ou vinha da festa, com os romeiros animados, cantando e dançando ao som das concertinas. Narra uma notícia de um jornal dos finais dos oitocentos que certo ano, com o mau tempo que se avizinhava, nem valeu a pena pôr as cadeiras cá fora.

Ali no largo fica a Capela que hoje todos dizemos da Ramada Alta. Conforme as devoções de cada um é conhecida por outros nomes. Foi a ermida da Senhora das Dores, mas também lhe chamam do Senhor dos Aflitos, ou ainda do Senhor do Calvário ou do Senhor da Agonia que lá se veneram. A capela começou a ser construída em 1737, com esmolas dos vizinhos, mas em 1883 foi sendo reconstruída com torre sineira e outros melhoramentos, à custa de um “desvelado benfeitor”, que teve direito a ver o seu nome em pedra lavrada na fachada da capela. No largo adro, além de árvores centenárias que convidavam ao descanso, há pelo menos três cruzeiros de pedra simples e nos muros que envolvem a capela há umas cinco caixas embutidas na pedra, para recolha de esmolas, algumas com azulejos pintados em desenhos naif e também um aviso para os amigos do alheio.

Com tantos santos e caixas de esmola, a Capela era lugar para pagamento de promessas e daí que nestas datas de outras romarias, muito povo parasse por aqui. Os tendeiros aproveitavam para fazer o seu negócio. Ali se montavam os velhos comes e bebes. Desde o peixe frito às famosas espetadas, acompanhadas do tintol, tingido a baga de sabugueiro, que um jornalista da época, dizia que «aquelas pipas tinham uma zurrapa a que chamam vinho», tudo se vendia. Para adoçar o bico, não faltavam os famosos doces de Paranhos, apregoados pelas moçoilas cá da terra, nem as cavacas, o doce da Teixeira e outros doces vindos das terras vizinhas.

O lugar também era conhecido como a Falperra. Este topónimo está etimologicamente associado a lugares de salteadores. No entanto, parece que eles se acolitavam um pouco mais acima, pelo Monte Pedral, sítio de má fama, território do Mata e Rouba, que tinha a sua quadrilha por lá espalhada. Hélder Pacheco dizia que era “lugar onde abundavam as ladroeiras”.

Aqui pela rua da Falperra, hoje de 9 de Julho, um pouco inexplicavelmente, acolheu-se, no início do século XIX, gente piscatória vinda de Ovar que naturalmente também foram para sítios mais marítimos como a Afurada ou o Ouro. Ficaram conhecidos como os “vareiros do Carvalhido”. Assim, por estes sítios, podia comprar-se sável vindo do Douro ou o marisco da costa.

Como os “santos da casa” não costumam fazer milagres, eram devotos de santo mais longínquo – do Senhor da Pedra, onde no Verão iam em romaria. Mais uma vez, recorrendo a Hélder Pacheco, sabemos da alegria com que faziam o caminho, cantando e dançando a chula: «Ó moças virai, virai / as costas ao Carvalhido / Eu também viro as minhas / Ao largo de Santo Ovídio».

A rua ainda tinha a fonte da Falperra e o cruzeiro do Senhor do Padrão, lugar de grande devoção. Com o alastrar urbanístico a fonte desapareceu e o Senhor do Padrão foi para o fim da rua, já no largo do Carvalhido. Este Senhor deu as boas vindas ao exército libertador, que passando por ele, entrou na Falperra e por isso mudaram o nome à rua para 9 de Julho, data em que eles entraram e o Carvalhido também a partir de então tem placa “Praça do Exército Libertador”, embora todos lhe chamemos – o Carvalhido.

Estes lugares foram sempre zona pobre, que acolheu gente humilde durante muitos anos. Só pelos anos 60, num espaço atravessado pela Falperra, quando foi aberta a continuação da rua da Constituição, desde Serpa Pinto a Oliveira Monteiro, conseguiram acabar com um verdadeiro bairro de lata, que se foi propagando por aqueles terrenos.

 A Constituição já não era a rua de 27 de Janeiro, que levara anos a romper o Monte Pedral e só nos anos 70 chegou à Carcereira, sítio conhecido pela Casa de Saúde e pela recolha de autocarros nessa época. Ficávamos desiludidos quando à espera do autocarro, em vez do nosso destino, ele ia para a recolha.  “Oh, vai para a Carcereira!”

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