Benditos "independentes"...
Benditos "independentes"...
Cá está o responsável pelo apagão! Um bicharoco!
Um “bug assassino” que um programador informático deixou
passar e o software leu mal a perda de geração de energia na rede – 60% em 5 segundos! Tinha zeros a
mais e deu erro….
Continuando na senda dos cruzeiros fica aqui uma nota histórica de 1869, quando a Câmara Municipal do Porto mandou retirar todas as cruzes e cruzeiros espalhados pelas ruas e caminhos. Alguns foram recolhidos em cemitérios, outros em adros de igrejas e alguns até adquiridos por particulares. Como exemplo, cito nove cruzes que foram para Santo Ildefonso, juntando-se às três já aí existentes e formaram uma Via Sacra. Um burguês famoso, amigo de Camilo, Freitas Fortuna mandou retirar um cruzeiro seu, do Senhor da Boa Morte, na rua do Sol e coloca-lo junto ao seu jazigo, no cemitério da Lapa. Outro cruzeiro do Senhor do Padrão existente na rua do Heroísmo, foi recolhido por José da Silva Couto a quem a CMP deu três dias para o tirar do caminho. Assim aconteceu e hoje podemos vê-lo na Capela da Senhora da Saúde e do Senhor do Padrão, pendurada na parede principal atrás do altar – uma cruz em granito com a imagem de Cristo.
O Cruzeiro do Senhor do Padrão ou dos Aflitos do Carvalhido teve melhor sorte, especialmente porque nunca foi apenas uma simples cruz de
pedra e porque os seus devotos sempre o acarinharam - por isso vamos ao
encontro da sua localização original.
Na planta de Telles Ferreira de 1892, podemos ver, no ângulo
da Rua Nove de Julho com a Rua Nova dos Arcos, o tanque da fonte da Falperra com a
água pintada de azul e à esquerda, se ampliarmos a imagem, vemos o local
marcado com uma cruz. Presume-se que tenha sido este o local original, onde em
1738 foi erguido o cruzeiro. Poderiam ser os Passos do caminho, local onde os
peregrinos retemperavam forças e faziam as suas preces.
Sabemos que aqui foi local de devoção das gentes do
Carvalhido, que sempre mantiveram a chama acesa ao seu Senhor dos Aflitos, num
lampião a azeite. As esmolas e as promessas sempre cobriram as despesas. Tempos
houve até que foi preciso electrificar o cruzeiro – os devotos quotizaram-se para
pagar a luz.
Temos de deixar passar muitos anos para voltar a ter
memórias escritas deste sítio e devemo-las a Hélder Pacheco, que publicou no
seu livro “Tradições Populares do Porto”, duas páginas sobre o Senhor do
Padrão e contou-nos as suas aventuras com fotografias únicas, que analisei em
pormenor.
Esta foto, embora o motivo seja a composição da comissão de
festas, o que mais me chamou a atenção foi o fundo – o portão de ferro, com as letras NSP (Nosso Senhor do Padrão) e a data -1883. Ou seja, esta fotografia,
ainda que seja de 1980, foi tirada no primitivo local “embutido no muro
contíguo a habitações térreas”, ainda conforme a planta de 1892. O espaço
foi protegido por um portão de ferro, que se vê por detrás dos membros da
comissão de festa, com a data do melhoramento – 1883. Hélder Pacheco conta-nos
que “ocultaram a cruz dentro de uma redoma rudimentar, uma caixa de vidro,
cruciforme, protegendo a imagem”. Na rua da Fonte de Massarelos ainda hoje,
temos um cruzeiro idêntico numa redoma
de vidro, dedicado ao Senhor dos Navegantes.
Os anos passaram, a zona do “Mata e Rouba” e o bidonville
que por ali existia desapareceu, para dar continuidade à Rua da Constituição. O
cruzeiro estorvava…
Bem datada é uma carta que um morador escreveu a Hélder
Pacheco, sobre a mudança do Cruzeiro do Senhor dos Aflitos. Ora já sabemos que a
fonte da Falperra e o Cruzeiro encontravam-se na rua do mesmo nome, que
depois foi baptizada como Rua Nove de Julho, data em que o Exército Libertador por
ela entrou no Carvalhido, mais ou menos no sítio onde esta rua cruzaria com a continuação
da Rua da Constituição. É pena, que a C. M. do Porto, ainda hoje, tenha gasto dinheiro em mais um projecto de Rua
Direita, num pequeno troço da rua Nove de Julho que passa por baixo dos
prédios, mais ou menos no sítio onde estaria a fonte e o cruzeiro e nem uma
plaquinha evocativa lá tenha deixado.
Por isso os “muradores” revoltaram-se. Transcrevo algumas
frases da “Carta ao Historiador”, datada de 9 de Junho de 1980:
«Com muita
tristeza lhe escrevo: o Nosso Senhor do Padrão vai ser mudado até ó dia
20 de Julho. Segundo dizem vai para perto da praça do carvalhido no fim da R. 9
de Julho […]
se o Senhor do Padrão estivesse escrito nos Monumentos nacionais já não pudiam
bulir nel […]
Querem fazer del gato sapato. Os muradores não querem que saia de lá
[…] Vamos a ver como vai ser. Já que eu não o posso segurar ali queria pelo menos que êle estivesse ali até ó mês de Setembro [...]»
Mas saiu…
E foi para o fim da rua ao chegar ao Largo do Carvalhido.
O Arquivo do Porto ainda tem um cartaz das festas ao Senhor
do Padrão do ano de 1987 e uma imagem da cruz.
À falta de fontes de informação fidedignas anteriores, vou
ficar neste ponto intermédio dos anos 80. Analisando o cartaz das festas, vemos
que no “pedrão” inferior que sustenta a cruz, há uma inscrição com as letras
pintadas e a data de construção – 1738.
Bem padeceu Hélder Pacheco, com estas “letras pintadas”,
hoje então a sua decifração consegue-se ler apenas com muita imaginação, já
limpas de tinta e ainda mais da erosão do tempo. A inscrição, segundo grafia agora gravada em
chapa inox, diz «louvado seja os tempos
de valores virtude lisura ozeas mdccxxxviii 1738».
A palavra mais curiosa é “OZEAS”. Pacheco tinha dúvidas nesta
última palavra, talvez fosse “OZLIA”, que aparentando ser palavra desconhecida,
o pintor reescreveu sobre a primitiva inscrição, alterando a frase original. Com
o restauro da CMP em 2000, eu continuo com as mesmas dúvidas, seria “Ozeas”
(como se lê na placa inox, nessa data colocada) ou “Ozias” – um rei de Judá, ou
“força divina” como valor, que até já esteve lá bem pintado?
Voltando ao cartaz, e deixando o programa para outra
ocasião, a imagem está pintada e é sobre madeira. Até o fuste foi pintado a
esmalte. Hoje todo o conjunto é granito, inclusive a cruz. O granito veio
também substituir “os azulejos de cozinha” para os quais Pacheco nos chama atenção na sua
fotografia.
Hoje é tudo pedra como se vê na imagem da direita, porque em
2000, a CMP voltou a restaurar o espaço, que classificou de Interessse Municipal, em 1993. Desapareceram para sempre, os azulejos tão kitsch, a porta
gradeada e o lampião que tantos litros de azeite queimou para manter a luz
sempre acesa. Repare-se que esta porta da imagem da esquerda já não é o portão de ferro, de lá de cima, da Nove de Julho.
Gosto de descobrir os pormenores fotográficos e na foto da
esquerda de Hélder Pacheco há marcas do tempo que nos permitem datar o
documento.
Por detrás do cruzeiro, vislumbro uma “mascarra” pós-25 de
Abril. Sempre que se aproximavam as eleições, os partidos inundavam as paredes
com cartazes que por ali ficavam eternamente. Já tinha acabado o tempo, em que
os prédios ostentavam placas dizendo “prohibido
affixar cartazes”. Basta um pouco de atenção para reconhecer um cartaz
da APU em baixo e em cima provavelmente PPD, CDS e PS.
Outro pormenor que me chamou a atenção, foram “umas janelas
abertas” ao fundo à esquerda. São de prédios em construção, na última parte da
Rua da Constituição, onde já tinha desaparecido o bairro de lata que havia
pelos restos dos montes, por onde andou o “Mata e Rouba”. Alguns desses prédios
eram da Cooperativa de Habitação, depois do 25 de Abril – a Habece
construiu de 1977 a 1987, como marca o seu monumento, lá na rua. Há por lá ainda uma placa
da Associação de Moradores do Carvalhido, que assinala a data da sua fundação – 26 de Março de 1976.
Para acabar, já não há luzinhas eléctricas à volta da cruz, nem azeite a arder no lampião, mas diariamente não faltam flores e velas arder no chão.
Os romanos parecem ter sido os primeiros a marcar as
distâncias e deixar assinaturas nas vias que iam abrindo e ainda hoje
encontramos os seus conhecidos miliários. Se a medida padrão era a
milha, daí “o miliário”, importa saber a sua equivalência para o
sistema métrico.
E como era medida a milha? A passo, é claro, de um soldado,
de um centurião. Nada mais nada menos que milia passuum ou mille
passus - mil passos - bem medidos, porque um passo é a
distância entre dois batimentos do pé esquerdo, é o chamado passo
dobrado, valor aproximado de metro e meio. Os centuriões não eram gigantes,
nem podiam dar muitas passadas largas, daí que os 75 cm seriam um bom padrão.
As medições actuais atribuem à milha romana valores entre 1 481 e 1 580
metros. Quanto à milha terrestre que os ingleses têm no “conta-milhas” dos
seus carros – equivale a 1 609 metros, se for no barco já vale mais – 1 855
metros.
Já agora, vamos procurar uma outra unidade – a légua.
Aqui as variações ainda são maiores. Para os romanos, poderia ser milha e meia,
o que convertido em medida mais pequena seria 7500 pés. Polegadas, pés,
jardas e milhas, foram sempre medidas inglesas com que me familiarizei, até
à custa das anedotas – um espertinho vai ao talho e querendo gozar o talhante,
pede-lhe uma jarda de porco. O magarefe embrulha três pés de porco e
diz-lhe “three feet make one yard”, o que é verdade.
A distância “légua” encontra-se em alguma literatura
europeia, com influência de viagens, e frequentemente em Portugal e no Brasil.
O valor é variável, conforme os autores e as épocas.
Foi considerada a distância aproximada de caminho percorrido
por um homem durante uma hora. Em 1855, antes da adopção do sistema métrico, até
se legislou que a légua métrica seria equivalente a 5 000 metros. No
entanto, o seu valor varia entre os 4 000 e os 7 500 metros. Dessa
variabilidade terá surgido a expressão “é como a légua da Póvoa”,
significando que não tem um valor exacto.
Todo este arrazoado veio-me à memória por razões
hagiográficas – o Senhor do Padrão e o Senhor do Padrão da Légua.
Hoje, vou deixar ficar por aqui mais umas “pedras” sobre o “Senhor do Padrão”,
especialmente aquele que ainda hoje tem muitos devotos na zona do Carvalhido,
aqui no Porto, que levam uma vida sempre a correr, e talvez por isso também lhe
chamem o Senhor dos Aflitos. Para complicar um pouco mais a história,
além dos “pedrões” este Senhor tem um cruzeiro, pelo que será mais correcto
designá-lo por “Cruzeiro do Senhor do Padrão”.
Desde tempos imemoriais nos têm colocado “pedras no caminho”
que, quando este era de terra, até agradecíamos em dias de chuva. O caminho longo que saía do Porto para o
Norte, percorrido pelos caminhantes, romeiros e festeiros, tinha lugares de
paragem, como as “alminhas”, as capelas e os cruzeiros. Embora o caminho viesse
da parte alta do Porto, do Olival, hoje Cordoaria, vamos recuar até uns anos
antes da abertura da rua de Cedofeita, que só começou em 1762, até aí seria
mais um caminho e mais tarde foi a Rua da Estrada, saída do Porto para a Póvoa,
como era conhecida em 1781.
As minhas interrogações começaram pela data inscrita no Cruzeiro
do Senhor do Padrão – 1738. Assim sendo, foi erigido muito antes de Cedofeita
ter sido aberta, como rua. Era um caminho que na parte mais alta chegava ao que
hoje designamos por Ramada Alta, lugar onde a partir de 1737, começaram a
erigir a Capela de Nossa Senhora das Dores ou do Senhor do Calvário. Convém
lembrar que as festas do Senhor de Bouças (Matosinhos) tinham começado poucos
anos antes – 1732. O caminho a seguir à Ramada Alta, era uma estrada que
cruzava sopés de montes, conhecido como a Falperra.
Os romeiros vindos do Porto usavam este caminho e percebe-se
que por essa época se tivesse erguido o cruzeiro na Falperra, lá ao
fundo da rua, hoje mais ou menos no cruzamento da Rua da Constituição com a Rua
9 de Julho, talvez em frente à Fonte da Falperra. Uma pausa na caminhada
seria sempre bem aproveitada junto de uma fonte.
Não me parece que como já li, que este cruzeiro marcasse a
distância da primeira milha, à saída do Porto, pois a distância é de 2,5
km. Aceito como mais provável um outro “pedrão” que vem mais para diante,
depois de sairmos do Porto – o Padrão da Légua – a tal légua de
aproximadamente 5,5 km. O cruzeiro seria mais um ponto de devoção
religiosa.
Aproveitemos uma sede de água e prometo voltar em breve com longas histórias do Cruzeiro do Senhor do Padrão ou dos Aflitos.
(RTP 1974)
Depois do 25 de Abril, José Mário alterou cinco estrofes, da "Ronda do Soldadinho" de 1970, na versão que canta no vídeo acima, do arquivo da RTP, em 1974.
O soldadinho já não vai prá guerra!
A partir da 7.ª estrofe a canção passa a ter a seguinte letra:
Mas o soldadinho
percebeu
que esses senhores
mandavam
na guerra
contra os seus irmãos de cor
Soldadinho lindo
és também
trabalhador
viras a espingarda
contra o teu
explorador
Dancemos meninos
A roda
no roseiral
Que os nossos soldados
libertaram
Portugal
Soldadinho lindo
és o rei
da nossa terra
Vais voltar agora
para acabar
com essa guerra
Soldadinho lindo
és o rei do nosso povo
e contigo vamos
construir um mundo novo
(1974)
Capa da primeira versão do disco - um single produzido durante o
exílio em França, em 1970.
Cerca de 3000 exemplares entraram clandestinamente em Portugal.
Um e dois e três
era uma vez
um soldadinho
De chumbo não era
como era
o soldadinho
Um menino lindo
que nasceu
num roseiral
O menino lindo
não nasceu
para fazer mal
Menino cresceu
já foi à escola
de sacola
Um e dois e três
já sabe ler
sabe contar
Menino cresceu
já aprendeu
a trabalhar
Vai gado guardar
já vai lavrar
e semear
………………..
Um e dois e três
era uma vez
um soldadinho
De chumbo não era
como era
o soldadinho
Menino cresceu,
mas não colheu
de semear
Os senhores da terra
o mandam prá guerra
morrer ou matar
Os senhores de da guerra
não matam
mandam matar
Os senhores da guerra
não morrem
mandam morrer
A guerra é pra quem
nunca aprendeu
a semear
É para quem só quer
mandar matar
pra roubar
…………….
Um e dois e três
era uma vez
um soldadinho
De chumbo não era
como era
o soldadinho
Dancemos meninos
a roda
no roseiral
que os meninos lindos
não nascem
pra fazer mal
Soldadinho lindo
Era o rei
da nossa terra
Fugiu para França
pra não ir
morrer na guerra
Soldadinho lindo
Era o rei
da nossa terra
Fugiu para França
pra não ir
morrer
José Mário Branco
1970
Deixando de lado todo o cerimonial religioso da Páscoa,
gostava de partilhar curiosidades pascais de tempos idos ou intemporais.
Podemos começar pelo calendário. Porque é que a Páscoa é um
feriado móvel, isto é, porque não é, no mesmo dia todos os anos?
Temos de recuar muito, não até à Ressurreição de Cristo, mas até cerca de 300
anos depois. Em 325, realizou-se o Concílio de Niceia, na actual Turquia, o 1.º
concílio ecuménico, onde bispos de diversas igrejas definiram, entre outros
temas, a data da Páscoa. Não complicando dizemos que ficou assente
ser no 1.º domingo, a seguir à 1.ª lua-cheia da Primavera. Depois poderíamos
falar de calendários, o juliano, o gregoriano, o judaico e teríamos a
justificação para a Páscoa ortodoxa ser em data diferente da católica.
Bem, como a Primavera começa a 21 de Março, a Páscoa ocorre entre o dia seguinte
e o dia 25 de Abril. Quanto mais tarde é, pior para os estudantes, pois lá diz
o provérbio, “Páscoa alta, chumbo na malta”. O último período escolar
fica mais reduzido e há menos tempo para recuperar os resultados menos bons.
Portugal, como país católico, há 50 anos ou mais, cumpria
muitas tradições que os jovens de hoje nem as imaginam. O tempo da Quaresma
era vivido de um modo triste e acabrunhado. As mulheres não vestiam roupas garridas,
então o vermelho estava proibido. A maioria trajava praticamente de preto. A
alegria dos campos desaparecia. Não ouvíamos os cantares, era mais provável
escutar algumas antífonas, dizer umas ladainhas e umas jaculatórias ou um
desfiar de orações. Os homens abstinham-se de dizer os seus palavrões, contar
as suas larachas e às vezes até eram mal vistos por assobiar. Eram dias tristes
que mais enegreciam na Semana Santa. Então na 6.ª Feira Santa não se podia fazer
nada. As mulheres não fiavam, não cosiam, não coziam o pão, não lavavam, não
estendiam a roupa… As limpezas da casa já tinham começado na semana anterior. O
tempo normalmente estava melhor – até o provérbio o previa “Na semana de
Ramos lava os teus panos, na da Paixão lavarás ou não.” E às três da tarde
de Sexta-feira tudo parava – era a morte do Senhor – tinha que se fazer
silêncio.
Quem não trabalhava ia ver as igrejas. Aqui na cidade
tinha de visitar mais do que uma e sempre em número ímpar, porque são os
números divinos – as trindades, as cinco chagas de Cristo, as sete bem-aventuranças…
tudo ímpar.
Lembro-me de ir com a minha avó e ser tudo muito feio.
Estavam todas as pessoas caladas, os altares não tinham flores e os santos estavam
tapados com panos roxos ou pretos – ou seja, não havia nada para ver.
Parece que em algumas aldeias nem os sinos tocavam. Em
terras minhotas, ouvi muitas vezes o som dos trique-li-traques e das matracas
e sempre me disseram que era para lembrar às pessoas o tempo de reflexão, mas
parece que também funcionava como substituição do toque dos sinos, nos chamamentos
diários.
Alguns chamamentos infundiram-me sempre muito medo, quando
era pequeno. Um desses rituais, hoje desaparecido, era a “Encomendação das
Almas” ou o “Botar das Alminhas”.
Uma pessoa da aldeia, o “botador de almas”, subia a um ponto alto e ao
toque das primeiras trindades, e enquanto os sinos tocavam, começava a rezar
uma ladainha, numa toada muito dorida e melancólica e acabava com um Pai-Nosso
e uma Avé-Maria, pela salvação das almas do Purgatório.
Os receios pelas coisas más que nos pudessem acontecer
levavam-nos a aceitar os mandamentos e as ordens do padre. “Não se esqueçam
da desobriga!” – obrigação da confissão anual e comunhão pascal. Desobriga
– foi sempre uma palavra temida, porque tínhamos de livrar-nos dessa obrigação
e o rapazio, com a doutrina esquecida, tinha mais receio da penitência, de não
conseguir dizer ao padre a “salvé-rainha” ou o “acto de contrição”,
do que da ameaça da forquilha do mafarrico.
Merece algumas palavras a tradição do “Compasso Pascal”.
Não sei se os jovens de hoje, que não estudem geometria, estão familiarizados
com o “compasso e o tira-linhas”, mas não é desses objectos que quero
falar.
É mais da “Crux cum passo Domino”, que se formos ao
latinório significa “A cruz com o Senhor sofredor”. Abreviando a expressão, ela
serve para o Porto e para o Minho. O “cum passo Domino” foi reduzido
para “compasso”. Quando fui para o Minho não sabiam o que era o compasso, pois
tinham ficado só com a “Crux” – a Cruz. «Cá a Cruz só vem na 2.ª Feira»,
diziam eles.
Conheci bem este “eles”, pois foram os mordomos e
juízes da Cruz que me fizeram partilhar de pantagruélicas mesas de Domingo
de Páscoa. Os quarenta dias de abstinência da carne eram ali vingados, pelo
sacrifício da vitela, do anho, do porco e todo o bico de capoeira, frito,
cozido e assado, sem esquecer que foi aí que comecei a dizer que aletria não
era massa doce cozida e soube que também havia leite-creme e arroz doce,
que levavam canadas de leite e eram canelo-bordados e canelo-ortografados na
perfeição.
Quanto à Cruz era levada pelo Juiz da Cruz, que à
chegada a entregava ao dono da casa e este, hierarquicamente, dava-a a beijar à
esposa, aos filhos, demais familiares, criados e vizinhos.
Cumpria ao abade a bênção da casa e de todos os presentes,
aspergindo tudo com água benta que o rapaz da caldeirinha transportava.
A associação da cruz e da caldeirinha é que não é nada própria para esta época
de festa. A expressão “Estar entre a cruz e a caldeirinha”, dizia-se,
literalmente, do moribundo que estava à espera da sua hora, pois no caixão iria
ter a cruz à cabeça e a caldeirinha aos pés.
A visita pascal tinha mais dois momentos dignos de nota. Um
era a partilha da mesa. Cada casa “punha a mesa para o senhor Prior” e para
toda a comitiva e a família levava a mal, se todos não comessem e bebessem. O
mal vinha ao fim do dia quando muitos não sabiam fazer número nenhum.
À saída, era o momento do folar. Lembro-me da laranja no meio da mesa,
com uma moeda de dez escudos de prata por baixo. O padre levantava a laranja e
pegava na moeda. Fazia parte do seu folar. O tempo de levar uma dúzia de ovos
já há muito tinha acabado e quando acabaram as moedas de prata, passou a estar
um envelope com notas debaixo da laranja.
O rapaz da campainha era o primeiro a sair e continuava rua
abaixo, a calcar “os verdes” da próxima casa onde iam entrar. “Deitar os
verdes” – ramos de plantas mais ou menos odoríferas e pétalas de flores –
era sinal de que queríamos receber a Visita Pascal.
A este propósito convém lembrar que o bispo do Porto D.
António Castro Meireles, que por acaso deu nome a uma rua vizinha donde nasci,
ali pelos anos 30, legislou sobre esta Visita dizendo « … Que ela não se devia fazer a
casa de registados civilmente quanto ao casamento e aos amancebados públicos».
Talvez não tenha sido esse o principal motivo, mas a verdade é que pelos anos
80, o compasso foi acabando.
O folar também foi desaparecendo. Achei piada a um anúncio publicitário na TV,
em que os padrinhos instruídos do “dever do folar” confessavam que então deviam
6, 10 ou 25 folares…
Quem nunca se esquecia de um folar era o meu padrinho que distribuía
“um Sant’Antoninho” a cada neto e uma nota de “cincoenta escudos” aos
netos-afilhados.
Antes de acabar a Quaresma ficam duas tradições para encerrar
o escrito – uma que ainda perdura em muitas terras e outra que já lá vai o tempo…
Comecemos pela Queima
do Judas – um cortejo barulhento, acompanhado de gritos e música de enterro,
realizado no Sábado de aleluia. A parte mais emocionante é sempre a final – a queima
– um ritual de purificação em que se queima todo o mal. A queima é precedida da
leitura de um testamento, onde são relembradas todas as mal-feitorias feitas ao
povo durante o ano. Nalgumas terras havia fogo-de-artifício, normalmente fogo
preso, em que bonecos de palha enfiados num alto pau giravam e iam ardendo até
ao estouro final, provocado por umas bombas lá deixadas.
Ficou para o fim o Enterro do Bacalhau.
A ideia percebe-se, pois é a reacção popular à abstinência da carne durante a
Quaresma, salvo para os endinheirados que podiam pagar a bula. Os pobres ou recorriam
às sardinhas de ceira, em salmoura, ou então ao bacalhau pequenino, chamado alecrim,
que era o mais barato. Também parece que o antigo regime quis proibir esta
tradição e hoje como poucos ligam à abstinência, a tradição perdeu o seu
sentido.
Hélder Pacheco, nas “Vistas do Meu Quinteiro” lamenta
que os amigos não tenham memória deste Enterro cá no Porto. Mas há sempre um
amigo especial – o Júlio Couto, que lhe falou de um fiel amigo - o Magriço
Bacalhau.
Devia ter sido numa das “trocas de saquinhos” que
ambos faziam, que Júlio Couto lhe levou o folheto “Sentença de Morte Natural contra o Réo
de Lesa Barriga – Magriço Palhares Bacalhau”.
Como não o encontro em nenhuma biblioteca, nem numa loja da
Rua das Flores, onde se vendia em meados dos oitocentos, vou copiar-lhe alguns excertos
para melhor ideia fazermos deste “Enterro do Bacalhau”.
No escrito, para ser lido na ocasião do julgamento do
bacalhau, refere-se a penitência a que os pobres mortais estavam condenados:
«prova-se
que o réu Magriço Palhares Bacalhau, […] natural da Terra Nova, tendo sido,
como protestante, que é, um verdadeiro flagelo dos estômagos católicos,
declarando guerra à saborosa Vitela Mamota, ao sólido Lombo de Vaca, Paio de
Alentejo, Presunto de Lamego e outras Viandas gostosíssimas… o Réu para desafiar
o apetite dos incautos e abusar da sua boa fé, se disfarça em bolinhos,
pastelinhos, pudins, batatadas e salsadas […].»
«Depois o bacalhau é condenado à morte por enforcamento no
Monte Pedral, pendurado pelo rabo, sendo este cortado e colocado na Praça do
Anjo e as barbatanas expostas no Cais da Alfândega, na Ribeira «lugar da sua
praça-forte». O resto do corpo ficaria exposto no patíbulo, até à meia-noite do
Sábado de Aleluia.
O réu seria ainda multado em oitocentos milhões de espinhas para alívio e
consolação dos gatos, que ficam miando saudosos pela sua morte.»
A sentença de
11 de Março de 1852, era assinada pelos juízes
(parcialíssimos por serem
prejudicados pelo bacalhau e logo seus inimigos figadais):
Dr. Vacório – Chibarro
– Carneiro – cabrito – Bode Capado – Paio - Choiriço
Finalmente, o algoz
lia o “Pregão do Executor”, com ataques virulentos e chorrilhos de
insultos como “traidor dos pobres” ou “maldito da Terra Nova” e esperava-lhe o arrependimento:
“Arrepende-te.
Arrepende-te já, pois não posso demorar mais a execução, o senhor Juiz tem de
ir aprontar uma rabada de boi para comer ao cair da meia-noite…»
Passadas as paredes de conventos e mosteiros de anterior
artigo, aproximando-se uma das datas mais doces para a gastronomia, valeria a
pena fazer hoje uma homenagem ao ovo – aos ovos na/da Páscoa e já agora
a toda a nomenclatura da doçaria conventual, onde junto com o açúcar, o ovo é
rei.
Sem deixar receitas, ficam aqui alguns títulos para mentes
mais gulosas começarem a salivar com umas “barriguinhas de freiras”, uns
“alfitetes de Santa Clara”, um “pão de rala”, uns “papos d’anjo”, um “toucinho
do céu”, uma “encharcada d’ovos”, uma “lampreia d’ovos”, uns “fios d’ovos” e
para acabar, metemos lá o padre, com o “pudim do abade de Priscos”.
Mas deixemos o açúcar e concentremo-nos no ovo. E se a
semana em que vamos entrar é “Santa”, quando é que se falou também de “ovos
santos”?
A verdade é que os ovos postos pelas galinhas na
Quinta-feira Santa mereciam cuidados especiais, porque eram mesmo rotulados
como “ovos santos”. Quem comesse um “ovo santo” tinha garantidas todas as
benesses celestiais e terrenas.
Os que não gostavam de ovos tinham a oportunidade de atirar um “ovo santo” para
cima do telhado e ficar com a casa protegida durante o ano inteiro.
Mais do que em qualquer época do ano, na Primavera, o ovo
foi sempre visto como um sinal de fertilidade, de esperança em melhores dias e
de renascimento.
Se recuarmos até à antiguidade, vemos os egípcios a “semear” ovos nas
margens do Nilo, pois acreditavam que estes trariam fertilidade às suas
colheitas, as plantas floresciam, as aves rompiam os ovos e alegravam os dias.
Na mitologia grega, até a Fénix, queimada no ninho, renascia
das próprias cinzas, ou talvez do ovo que havia anteriormente posto. A
filosofia via os quatro Elementos num ovo só – a terra na casca, o
ar no interior do ovo, a água na clara e o fogo na gema.
A cultura judaico-cristã aproveitou muitas tradições pagãs e
usou-as com novas roupagens, sendo o ovo um elemento central da Páscoa, como
símbolo de uma nova vida, de um renascer.
Estas tradições têm sempre um fundo lendário, pelo que fica aqui
o “acredite quem quiser”, que nós não estávamos lá para ver. Falemos por exemplo, do jejum e da
abstinência. Na maioria das terras a abstinência cingia-se à carne, havendo
até um costume de pôr uma grande pedra em cima da salgadeira, para
afugentar as tentações de tirar um bocadinho de carne ou até de gordura. In
illo tempore, parece que a proteína dos ovos também estava na lista das
proibições, pelo que a imaginação popular teve de entrar em campo para conservar
os ovos durante a quaresma.
Há histórias curiosas que falam de técnicas de conservação
dos ovos, como a de os mergulhar em cera líquida. Dada a sua importância podiam
ser oferecidos no Domingo de Páscoa e então embelezavam-se para servir de
presente. Lembro-me da minha avó, cozer os ovos e depois ficarem de cores
diferentes. Castanhos, adicionando-se à água cascas de cebola e vinagre;
roxos, com a flor de uns lírios que havia no quintal; verdes, com
espinafre ou musgo; amarelos, com a flor de açafrão; ou até pretos,
com fuligem da chaminé.
Tradições abundam desde tempos imemoriais, que se prolongam
até aos dias de hoje. Uma história curiosa vem-nos da Grécia e de uma tradição
ortodoxa, de oferecerem ovos pintados de vermelho, simbolizando a vida e o
sangue de Cristo. Mais curioso é o facto de partirem o primeiro ovo nas paredes
da igreja e partir daí, cada pessoa vai partindo o seu ovo, no ovo do parceiro.
O herói do dia é o que ficar com o seu ovo inteiro, sem ninguém lho ter
partido.
Andar à procura de ovos é hoje tradição generalizada em
vários países europeus. Na Alemanha, esvaziam e pintam os ovos decoram as
árvores com eles, ao mesmo tempo que escondem outros, de preferência de
chocolate, atrás de árvores e arbustos, para as crianças irem à caça deles. Os
ingleses preferem fazer esta caçada só na Segunda-Feira de Pascoela, com
crianças e adultos fantasiados de coelhos, mas o coelho já vai para outra
história.
A tradição de não utilizar ovos verdadeiros para oferecer na
Páscoa também vem de séculos anteriores. Foram utilizados ovos de madeira, de
metal e de cerâmica, com os mesmos simbolismos.
Hélder Pacheco, diz-nos que por volta de 1700, pertencia ao
Rei da França o maior ovo posto na Semana Santa. Tenho pena que não tenha
especificado um pouco mais. Seria um ovo de quê? De galinha, de pata, de perua?
Ou de outras aves que não de capoeira?
Nesta data, os Luíses eram reis e procurando descobrir qual
teria sido o Luís, talvez possámos ir até 1757, ao Luís XV. Este rei teve
algumas famosas “maîtresses-en-titre” (amantes oficiais) que
mereciam prendas extraordinárias.
Li algures que ofereceu a uma das últimas – a Madame du Barry – um ovo
enorme com uma estátua do Cupido no seu interior. Não apurei a veracidade desta
oferta, mas a estátua de um Cupido sentado, que ofereceu a outra amante – a Madame
Pompadour - essa é bem real e figura em museu.
Trata-se de “L’ Amour Ménaçant” – “o Amor Ameaçador”, onde o Cupido pede
segredo, com um dedo na boca. Não sei se esta oferta também foi dentro de um
ovo, mas teria de ser gigante, pois só a estátua, sem pedestal media mais de 70
cm e tinha cento e muitos quilos de mármore de Carrara.
Estas criações inspiraram um famoso artista russo - Peter
Carl Fabergé, que nos finais do século XIX, inícios do XX, criou meia
centena de ovos, de ouro e outros metais e pedras preciosas, com a sua arte de joalheiro,
que os Czares russos elegeram como oferta pascal para os membros da família
imperial. Valem uma fortuna.
Mas voltando às berças, nesta época do ano, deveríamos estar a pensar no folar, que nos tempos antigos era preciso dá-lo não só aos afilhados, mas também ao pároco da freguesia. Em muitas aldeias chamavam-lhe as “ofertas brancas”, porque o maior conteúdo da cesta eram os ovos.
A região de Braga é rica em tradições pascais. O “ovo na
ponte” é um ritual que ainda hoje se cumpre, sempre à meia-noite do Domingo de
Páscoa. Centenas de pessoas passam na Ponte de Prado, sobre o rio Cávado,
descascam um ovo cozido, comem-no e deitam as cascas ao rio. Para quê? Para se
livrarem de dores de cabeça durante todo o ano.
Para terminar, fica mais uma tradição para “escabulhar” – qual era a aldeia dos
arredores de Braga, onde era costume fazer-se no Domingo de Páscoa, a “Procissão
dos Ovos”?
Ainda não descobri, mas hei-de lá chegar.
Como somos mais comezinhos, contentámo-nos com uma fatia de
pão-de-ló, cortado à mão, que há-de levar, pelo menos, duas dúzias de ovos.
Acabemos com duas frases publicitárias, já que os
respectivos anúncios televisivos, nem nos “tesourinhos deprimentes” aparecem.
“Ovo carimbado – a
alegria do cozinhado”
Tic-tic-tic … e
que tal uma gemadinha?
(Nota de memória- “a gemadinha” era um
ovo que ia a passear pela mesa e ameaçava atirar-se ao chão.)
Se por um lado, temos folhas brilhantes da história que
enaltecem o trabalho desenvolvido pelas comunidades religiosas dentro de
conventos e mosteiros, que ainda hoje admiramos (e de sobremaneira os
reconstruídos, onde abunda o luxo da “boa cama e da boa mesa”), por
outro lado, temos páginas negras que nos fazem pensar nas verdadeiras razões
para a extinção destas casas.
São muitos os relatos de obras que nos contam a vida dentro
das paredes do convento e talvez valha a pena relembrar alguns, para fazermos
um melhor juízo do que por lá teria passado quem, à força ou de livre vontade,
entrou nesses muros.
Comecemos por um excerto de “A Freira no Subterrâneo”
um livro, de autor anónimo, traduzido por Camilo Castelo Branco, em 1872, e
publicado pela Tipografia Pereira da Silva, cuja acção se passou na Polónia,
entre 1841 e 1868.
«- Espera
pois que a eternidade se abra para ti.
A esta hora, estás nas entranhas da terra, sem hálito de ar, sem raio de luz...
A palha d'este ninho não será renovada nunca... os teus vestidos
desfazer-se-hão de pôdres sobre o teu corpo, e a tua nudez nunca mais se
cobrirá... Os teus dentes cahirão, as tuas unhas crescerão como as das feras,
os teus cabellos hão-de encanecer n'esta caverna, que é a tua sepultura. Não
haverá creatura humana que haja de soffrer o que tu vaes aqui amargurar. E o
teu próprio amante, se te visse alguma vez, recuaria horrorizado de ti.
- É meio-dia, Barbara. Não verás jamais o sol; nunca mais contarás os dias.
D'esta vez, fechou-se o postigo para não mais se abrir. »
Embora estejemos perante um romance histórico, podemos
colocar aquela etiqueta, como nos filmes “Baseado numa história
verdadeira”.
O encarceramento de Barbara Ubryk durante vinte anos, no
convento das Carmelitas de Wesola, em Cracóvia, comoveu a opinião pública na
Europa. Deu origem a um processo nos tribunais, em 1869, onde a sociedade
reclamava o castigo da prelada, Maria Wenzyk. A sua família poderosa e todo o
clero tudo fizeram para abafar a infâmia. Arcebispos, e até o Papa,
intervieram, para finalmente, o processo ser “trancado” por ordem
governamental.
Um livro histórico sobre o caso “A Verdade sobre Barbara Ubrykówna”, de
Julian Tomkowicz, publicado em 1909, teve por base arquivos judiciais. No
entanto, o autor era sobrinho da prioresa Maria Wenzyk e tentou “branqueá-la”
em detrimento da fiabilidade do livro.
Outras obras vieram a público, desde uma obra em quatro
volumes, mas também muito criticada a uma publicação editada em Filadélfia, em
1869 com o título - “O Horror
do Convento: A história de Barbara Ubryk - Vinte e um Anos numa Masmorra de
Convento de Oito Pés de Comprimento e Seis Pés de Largura”, mas
seria pouco mais do que uma leitura superficial de informações da imprensa da
época.
Camilo diz que traduziu o “romance histórico” de uma edição
francesa anónima - “Les
amoureuses cloitrées”. Mesmo a quarta edição pela Chardron, da Lello
& Irmão, editores, em 1902, não refere o nome do autor original da obra.
Embora as traduções de Camilo estejam pouco estudadas, há mesmo a hipótese de o
romance ter sido escrito pelo próprio Camilo.
Arnaldo Gama, escreve a sua obra “A última dama de S.
Nicolau”, em 1864, relatando factos históricos ocorridos, no Porto em 1474.
Esta dama era uma das “emparedadas” do Porto, que de moto próprio, ou não,
viveram fechadas dentro de paredes como se entrassem num túmulo.
Seriam lendas ou histórias verdadeiras, tantas histórias
contadas? Conforme os contos, a designação varia de “emparedadas”, ”enceladas”
ou até “inclusas”, mas sempre mulheres que se condenavam a viver o resto dos
dias num espaço exíguo, onde nem podiam mover o corpo e com um único postigo para
entrada de pão e água, quando muito.
Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, no seu “Elucidário
das Palavras, Termos e Frases Antiquadas da Língua Portugueza”, de 1798,
tem um verbete sobre a palavra “emparedadas” do que fotografei o início,
para a ilustração inicial. Assim falou Frei Joaquim:
«EMPAREDADA, Emparedeada, Emparedenada, ou Empardeada.
Desde o século XII até o XV se acham em Portugal muitas Emparedadas.
Eram mulheres varonis, que desenganadas inteiramente do mundo, se sepultavam em
vida n’uma estreita cela, cuja porta no mesmo ponto da sua entrada se fechava
com pedra, e cal e só por morte da inclusa se abria, para ser levada
finalmente à sepultura. No lugar da porta, e ao tempo de a tapar, ficava só uma
pequenina fresta por onde se lhes ministrava o indispensavelmente necessário
para a vida, que poucas vezes passava de pão e água, recebiam o corpo de
Christo, e falavam ao seu confessor unicamente no que respeitava à sua
consciência. E de se fecharem entre paredes, ou emparendando-se, se
chamaram Emparedadas.»
Vou citar o prof. António Cruz que no seu livro “Tempo e
Caminhos”, de 1973, expõe dúvidas relativas à localização das casas das inclusae.
No entanto, identifica várias “deixas”, dos testamentos de prelados, com
referências específicas às “emparedadas”:
«D. Abril Mendes, em 1295, reparte libras, para pitança, por
vários conventos, distinguindo entre outros “para as emparedadas, para as donas
de São Nicolainho”.
D. Vicente Mendes, em 1296, contemplou “As inclussis de
Portu com dez libras e vinte as donas de Santo Nicholayo”.
D. Sancho Pires, em 1300, destina dez libras às emparedadas
do Porto e vinte às donas de S. Nicolau.”
Vou deixar para os historiadores a confusão existente sobre
a localização exacta da casa das donas de S. Nicolau. Parece que numa
anotação à margem do testamento de D. Sancho Pires, há uma indicação, dizendo
que ambos os legados (para as do Porto e as de S. Nicolau) vieram a beneficiar
as emparedadas de S. Nicolau. Será que não havia emparedadas no Porto, na
Ferrraria de Cima, como Arnaldo Gama sustenta em toda a sua obra? O mosteiro
era na margem esquerda do Douro? Onde? Cá em baixo, junto à Capela do Senhor de
Além, ou lá em cima, no morro de Quebrantões (hoje Serra do Pilar), onde em
1140, foi fundado um mosteiro consagrado a S. Nicolau, das Cónegas Regrantes de
Santo Agostinho, como afirma Magalhães Basto. O mosteiro já estava há muito
desabitado, quando, em 1538, outros frades foram para lá. Deixemos isso para
quem estuda a sério estes assuntos. Em relação ao Porto, Frei Rosa Viterbo
afirma que a casa não era na serra, nem do outro lado do rio, mas sim na
Ferraria de Cima, junto ao Hospital de Nossa Senhora da Silva.
O que relevam estes testamentos era a existência de mulheres
enclausuradas que seriam merecedoras da caridade do próximo. Frei Rosa Viterbo,
no seu “Elucidário” dá nota da existência de emparedadas por todo o
país, citando Lisboa, Santarém, Coimbra e Lamego.
Em Lisboa, estavam no Convento da Madre de Deus – um
convento de freiras que viviam “emparedadas”, sem conseguirem ver o rio Tejo que
corria ali mesmo ao lado e que muitas vezes lhes inundou a igreja. Foi fundado
por D. Leonor em 1509 em Enxobregas ou Xabregas, como hoje se diz. Em 2010
contaram a sua história numa exposição intitulada “Casa Perfeitíssima”, mas não revelaram muito dos seus
segredos.
Em Santarém, existiu o Convento de S. Domingos das Donas
de Santarém, fundado em 1246, que pertencia à Ordem dos Pregadores e também
aí existia uma comunidade de “emparedadas”.
Passado o tempo das trevas, veio o século das luzes e a
Revolução Francesa e as ideias dos Iluministas começaram a pôr em causa a
existência destas casas religiosas. A revolução das novas ideias liberais
estendeu-se por toda a Europa. Logo em 1789, a Assembleia Constituinte francesa
propôs o confisco dos bens: “mettre les biens du clergé à la disposition de
la Nation”.
Por cá, a nossa rainha D. Maria I, de cognome “a Louca”,
embora fosse mais devagar, também mandou criar uma Junta para examinar o estado
das Ordens Regulares e avaliar a utilidade para a Igreja e para o Estado.
O filho, D. João VI, em 1822, reduziu mesmo o número de
mosteiros e conventos, fixando um número por cada congregação e no final, já
não chegavam a uma centena. Estabeleceu normas para o levantamento de
património, bens, fundos e rendimentos, obrigando à escrituração de inventários,
controlados por autoridade fiscal civil.
Chegados a 1834, as ordens religiosas tiveram o golpe de
misericórdia final – o decreto de
“O Matafrades” - Joaquim António de Aguiar que redigiu o decreto, onde
dizia «[…] a religião nada lucra com as Ordens Regulares e a sua conservação
não é compatível com a civilização e as luzes do século» e determinava a
imediata extinção de todas as casas religiosas e a incorporação dos seus bens
na Fazenda Nacional.»
Fechados mosteiros e conventos, eu volto ao princípio. Quais
seriam as verdadeiras razões para a extinção destas instituições?
Se formos para outros países o fenómeno repete-se.
Aqui ao lado, uma professora, da universidade de Oviedo,
publicou há poucos anos “INCLUSA INTRA PARIETES – La réclusion voluntaria en
la Espana medieval”. A reclusão era mais praticada por mulheres do que
homens, mas não se restringia a conventos e mosteiros, alargava-se a outros
sítios, com celas junto a cemitérios, igrejas ou hospitais, e até em pontes ou
muralhas, perto do centro urbano ou nos arredores. O enclausuramento era
precedido da despedida do mundo, com cerimónia litúrgica e até uma missa de defuntos,
antes de fechar a cela.
Em França, Victor Hugo, retrata uma emparedada no seu livro
“Notre Dame de Paris”, ou o “Corcunda de Notre Dame”. Para abrir o
apetite fica aqui o momento: «Frollo
entregou a cigana Esmeralda às garras de uma velha reclusa
do buraco dos ratos, onde fora enterrada por sua vontade. Ela é
considerada louca e perigosa. No entanto, em vez de despedaçar Esmeralda,
a velha reconhece-a como sendo a sua própria filha, e poupou-lhe a
vida.»
Não faltam obras, onde estas e outras histórias estejam narradas. Mas tudo se deveria aos séculos das trevas e ao fanatismo religioso? Não teriam sido as vinganças, as perseguições, as agressões verbais e corporais, as violentações sexuais – as principais razões para a extinção destas casas?
Fica aqui a dúvida para posteriores estudos.