domingo, 13 de abril de 2025

O ovo pascal

 


Passadas as paredes de conventos e mosteiros de anterior artigo, aproximando-se uma das datas mais doces para a gastronomia, valeria a pena fazer hoje uma homenagem ao ovo – aos ovos na/da Páscoa e já agora a toda a nomenclatura da doçaria conventual, onde junto com o açúcar, o ovo é rei.

Sem deixar receitas, ficam aqui alguns títulos para mentes mais gulosas começarem a salivar com umas “barriguinhas de freiras”, uns “alfitetes de Santa Clara”, um “pão de rala”, uns “papos d’anjo”, um “toucinho do céu”, uma “encharcada d’ovos”, uma “lampreia d’ovos”, uns “fios d’ovos” e para acabar, metemos lá o padre, com o “pudim do abade de Priscos”.

Mas deixemos o açúcar e concentremo-nos no ovo. E se a semana em que vamos entrar é “Santa”, quando é que se falou também de “ovos santos”?

A verdade é que os ovos postos pelas galinhas na Quinta-feira Santa mereciam cuidados especiais, porque eram mesmo rotulados como “ovos santos”. Quem comesse um “ovo santo” tinha garantidas todas as benesses celestiais e terrenas.
Os que não gostavam de ovos tinham a oportunidade de atirar um “ovo santo” para cima do telhado e ficar com a casa protegida durante o ano inteiro.

Mais do que em qualquer época do ano, na Primavera, o ovo foi sempre visto como um sinal de fertilidade, de esperança em melhores dias e de renascimento.
Se recuarmos até à antiguidade, vemos os egípcios a “semear” ovos nas margens do Nilo, pois acreditavam que estes trariam fertilidade às suas colheitas, as plantas floresciam, as aves rompiam os ovos e alegravam os dias.

Na mitologia grega, até a Fénix, queimada no ninho, renascia das próprias cinzas, ou talvez do ovo que havia anteriormente posto. A filosofia via os quatro Elementos num ovo sóa terra na casca, o ar no interior do ovo, a água na clara e o fogo na gema.

A cultura judaico-cristã aproveitou muitas tradições pagãs e usou-as com novas roupagens, sendo o ovo um elemento central da Páscoa, como símbolo de uma nova vida, de um renascer.

Estas tradições têm sempre um fundo lendário, pelo que fica aqui o “acredite quem quiser”, que nós não estávamos lá para ver.  Falemos por exemplo, do jejum e da abstinência. Na maioria das terras a abstinência cingia-se à carne, havendo até um costume de pôr uma grande pedra em cima da salgadeira, para afugentar as tentações de tirar um bocadinho de carne ou até de gordura. In illo tempore, parece que a proteína dos ovos também estava na lista das proibições, pelo que a imaginação popular teve de entrar em campo para conservar os ovos durante a quaresma.

Há histórias curiosas que falam de técnicas de conservação dos ovos, como a de os mergulhar em cera líquida. Dada a sua importância podiam ser oferecidos no Domingo de Páscoa e então embelezavam-se para servir de presente. Lembro-me da minha avó, cozer os ovos e depois ficarem de cores diferentes. Castanhos, adicionando-se à água cascas de cebola e vinagre; roxos, com a flor de uns lírios que havia no quintal; verdes, com espinafre ou musgo; amarelos, com a flor de açafrão; ou até pretos, com fuligem da chaminé.

Tradições abundam desde tempos imemoriais, que se prolongam até aos dias de hoje. Uma história curiosa vem-nos da Grécia e de uma tradição ortodoxa, de oferecerem ovos pintados de vermelho, simbolizando a vida e o sangue de Cristo. Mais curioso é o facto de partirem o primeiro ovo nas paredes da igreja e partir daí, cada pessoa vai partindo o seu ovo, no ovo do parceiro. O herói do dia é o que ficar com o seu ovo inteiro, sem ninguém lho ter partido.

Andar à procura de ovos é hoje tradição generalizada em vários países europeus. Na Alemanha, esvaziam e pintam os ovos decoram as árvores com eles, ao mesmo tempo que escondem outros, de preferência de chocolate, atrás de árvores e arbustos, para as crianças irem à caça deles. Os ingleses preferem fazer esta caçada só na Segunda-Feira de Pascoela, com crianças e adultos fantasiados de coelhos, mas o coelho já vai para outra história.

A tradição de não utilizar ovos verdadeiros para oferecer na Páscoa também vem de séculos anteriores. Foram utilizados ovos de madeira, de metal e de cerâmica, com os mesmos simbolismos.

Hélder Pacheco, diz-nos que por volta de 1700, pertencia ao Rei da França o maior ovo posto na Semana Santa. Tenho pena que não tenha especificado um pouco mais. Seria um ovo de quê? De galinha, de pata, de perua? Ou de outras aves que não de capoeira?

Nesta data, os Luíses eram reis e procurando descobrir qual teria sido o Luís, talvez possámos ir até 1757, ao Luís XV. Este rei teve algumas famosas “maîtresses-en-titre” (amantes oficiais) que mereciam prendas extraordinárias.
Li algures que ofereceu a uma das últimas – a Madame du Barry – um ovo enorme com uma estátua do Cupido no seu interior. Não apurei a veracidade desta oferta, mas a estátua de um Cupido sentado, que ofereceu a outra amante – a Madame Pompadour - essa é bem real e figura em museu.
Trata-se de “L’ Amour Ménaçant” – “o Amor Ameaçador”, onde o Cupido pede segredo, com um dedo na boca. Não sei se esta oferta também foi dentro de um ovo, mas teria de ser gigante, pois só a estátua, sem pedestal media mais de 70 cm e tinha cento e muitos quilos de mármore de Carrara.

Estas criações inspiraram um famoso artista russo - Peter Carl Fabergé, que nos finais do século XIX, inícios do XX, criou meia centena de ovos, de ouro e outros metais e pedras preciosas, com a sua arte de joalheiro, que os Czares russos elegeram como oferta pascal para os membros da família imperial. Valem uma fortuna.

Mas voltando às berças, nesta época do ano, deveríamos estar a pensar no folar, que nos tempos antigos era preciso dá-lo não só aos afilhados, mas também ao pároco da freguesia. Em muitas aldeias chamavam-lhe as “ofertas brancas”, porque o maior conteúdo da cesta eram os ovos.

A região de Braga é rica em tradições pascais. O “ovo na ponte” é um ritual que ainda hoje se cumpre, sempre à meia-noite do Domingo de Páscoa. Centenas de pessoas passam na Ponte de Prado, sobre o rio Cávado, descascam um ovo cozido, comem-no e deitam as cascas ao rio. Para quê? Para se livrarem de dores de cabeça durante todo o ano.

Para terminar, fica mais uma tradição para “escabulhar” – qual era a aldeia dos arredores de Braga, onde era costume fazer-se no Domingo de Páscoa, a “Procissão dos Ovos”?
Ainda não descobri, mas hei-de lá chegar.

Como somos mais comezinhos, contentámo-nos com uma fatia de pão-de-ló, cortado à mão, que há-de levar, pelo menos, duas dúzias de ovos.

Acabemos com duas frases publicitárias, já que os respectivos anúncios televisivos, nem nos “tesourinhos deprimentes” aparecem.

“Ovo carimbado – a alegria do cozinhado”

Tic-tic-tic … e que tal uma gemadinha?

(Nota de memória- “a gemadinha” era um ovo que ia a passear pela mesa e ameaçava atirar-se ao chão.)


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