Passadas as paredes de conventos e mosteiros de anterior
artigo, aproximando-se uma das datas mais doces para a gastronomia, valeria a
pena fazer hoje uma homenagem ao ovo – aos ovos na/da Páscoa e já agora
a toda a nomenclatura da doçaria conventual, onde junto com o açúcar, o ovo é
rei.
Sem deixar receitas, ficam aqui alguns títulos para mentes
mais gulosas começarem a salivar com umas “barriguinhas de freiras”, uns
“alfitetes de Santa Clara”, um “pão de rala”, uns “papos d’anjo”, um “toucinho
do céu”, uma “encharcada d’ovos”, uma “lampreia d’ovos”, uns “fios d’ovos” e
para acabar, metemos lá o padre, com o “pudim do abade de Priscos”.
Mas deixemos o açúcar e concentremo-nos no ovo. E se a
semana em que vamos entrar é “Santa”, quando é que se falou também de “ovos
santos”?
A verdade é que os ovos postos pelas galinhas na
Quinta-feira Santa mereciam cuidados especiais, porque eram mesmo rotulados
como “ovos santos”. Quem comesse um “ovo santo” tinha garantidas todas as
benesses celestiais e terrenas.
Os que não gostavam de ovos tinham a oportunidade de atirar um “ovo santo” para
cima do telhado e ficar com a casa protegida durante o ano inteiro.
Mais do que em qualquer época do ano, na Primavera, o ovo
foi sempre visto como um sinal de fertilidade, de esperança em melhores dias e
de renascimento.
Se recuarmos até à antiguidade, vemos os egípcios a “semear” ovos nas
margens do Nilo, pois acreditavam que estes trariam fertilidade às suas
colheitas, as plantas floresciam, as aves rompiam os ovos e alegravam os dias.
Na mitologia grega, até a Fénix, queimada no ninho, renascia
das próprias cinzas, ou talvez do ovo que havia anteriormente posto. A
filosofia via os quatro Elementos num ovo só – a terra na casca, o
ar no interior do ovo, a água na clara e o fogo na gema.
A cultura judaico-cristã aproveitou muitas tradições pagãs e
usou-as com novas roupagens, sendo o ovo um elemento central da Páscoa, como
símbolo de uma nova vida, de um renascer.
Estas tradições têm sempre um fundo lendário, pelo que fica aqui
o “acredite quem quiser”, que nós não estávamos lá para ver. Falemos por exemplo, do jejum e da
abstinência. Na maioria das terras a abstinência cingia-se à carne, havendo
até um costume de pôr uma grande pedra em cima da salgadeira, para
afugentar as tentações de tirar um bocadinho de carne ou até de gordura. In
illo tempore, parece que a proteína dos ovos também estava na lista das
proibições, pelo que a imaginação popular teve de entrar em campo para conservar
os ovos durante a quaresma.
Há histórias curiosas que falam de técnicas de conservação
dos ovos, como a de os mergulhar em cera líquida. Dada a sua importância podiam
ser oferecidos no Domingo de Páscoa e então embelezavam-se para servir de
presente. Lembro-me da minha avó, cozer os ovos e depois ficarem de cores
diferentes. Castanhos, adicionando-se à água cascas de cebola e vinagre;
roxos, com a flor de uns lírios que havia no quintal; verdes, com
espinafre ou musgo; amarelos, com a flor de açafrão; ou até pretos,
com fuligem da chaminé.
Tradições abundam desde tempos imemoriais, que se prolongam
até aos dias de hoje. Uma história curiosa vem-nos da Grécia e de uma tradição
ortodoxa, de oferecerem ovos pintados de vermelho, simbolizando a vida e o
sangue de Cristo. Mais curioso é o facto de partirem o primeiro ovo nas paredes
da igreja e partir daí, cada pessoa vai partindo o seu ovo, no ovo do parceiro.
O herói do dia é o que ficar com o seu ovo inteiro, sem ninguém lho ter
partido.
Andar à procura de ovos é hoje tradição generalizada em
vários países europeus. Na Alemanha, esvaziam e pintam os ovos decoram as
árvores com eles, ao mesmo tempo que escondem outros, de preferência de
chocolate, atrás de árvores e arbustos, para as crianças irem à caça deles. Os
ingleses preferem fazer esta caçada só na Segunda-Feira de Pascoela, com
crianças e adultos fantasiados de coelhos, mas o coelho já vai para outra
história.
A tradição de não utilizar ovos verdadeiros para oferecer na
Páscoa também vem de séculos anteriores. Foram utilizados ovos de madeira, de
metal e de cerâmica, com os mesmos simbolismos.
Hélder Pacheco, diz-nos que por volta de 1700, pertencia ao
Rei da França o maior ovo posto na Semana Santa. Tenho pena que não tenha
especificado um pouco mais. Seria um ovo de quê? De galinha, de pata, de perua?
Ou de outras aves que não de capoeira?
Nesta data, os Luíses eram reis e procurando descobrir qual
teria sido o Luís, talvez possámos ir até 1757, ao Luís XV. Este rei teve
algumas famosas “maîtresses-en-titre” (amantes oficiais) que
mereciam prendas extraordinárias.
Li algures que ofereceu a uma das últimas – a Madame du Barry – um ovo
enorme com uma estátua do Cupido no seu interior. Não apurei a veracidade desta
oferta, mas a estátua de um Cupido sentado, que ofereceu a outra amante – a Madame
Pompadour - essa é bem real e figura em museu.
Trata-se de “L’ Amour Ménaçant” – “o Amor Ameaçador”, onde o Cupido pede
segredo, com um dedo na boca. Não sei se esta oferta também foi dentro de um
ovo, mas teria de ser gigante, pois só a estátua, sem pedestal media mais de 70
cm e tinha cento e muitos quilos de mármore de Carrara.
Estas criações inspiraram um famoso artista russo - Peter
Carl Fabergé, que nos finais do século XIX, inícios do XX, criou meia
centena de ovos, de ouro e outros metais e pedras preciosas, com a sua arte de joalheiro,
que os Czares russos elegeram como oferta pascal para os membros da família
imperial. Valem uma fortuna.
Mas voltando às berças, nesta época do ano, deveríamos estar a pensar no folar, que nos tempos antigos era preciso dá-lo não só aos afilhados, mas também ao pároco da freguesia. Em muitas aldeias chamavam-lhe as “ofertas brancas”, porque o maior conteúdo da cesta eram os ovos.
A região de Braga é rica em tradições pascais. O “ovo na
ponte” é um ritual que ainda hoje se cumpre, sempre à meia-noite do Domingo de
Páscoa. Centenas de pessoas passam na Ponte de Prado, sobre o rio Cávado,
descascam um ovo cozido, comem-no e deitam as cascas ao rio. Para quê? Para se
livrarem de dores de cabeça durante todo o ano.
Para terminar, fica mais uma tradição para “escabulhar” – qual era a aldeia dos
arredores de Braga, onde era costume fazer-se no Domingo de Páscoa, a “Procissão
dos Ovos”?
Ainda não descobri, mas hei-de lá chegar.
Como somos mais comezinhos, contentámo-nos com uma fatia de
pão-de-ló, cortado à mão, que há-de levar, pelo menos, duas dúzias de ovos.
Acabemos com duas frases publicitárias, já que os
respectivos anúncios televisivos, nem nos “tesourinhos deprimentes” aparecem.
“Ovo carimbado – a
alegria do cozinhado”
Tic-tic-tic … e
que tal uma gemadinha?
(Nota de memória- “a gemadinha” era um
ovo que ia a passear pela mesa e ameaçava atirar-se ao chão.)
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