domingo, 6 de abril de 2025

As moças há trinta anos.

O título de hoje nasce no livro de Alberto Pimentel “O Porto há trinta anos”, que viu a luz do dia pela primeira vez em 1893, pelo que as moçoilas de que vou falar já teriam hoje mais do que século e meio.

São portuenses, se não “tripeiras de gemma”, pelo menos todas elas geradas no que hoje dizemos Grande Porto, ou seja, umas seriam “tripeiras de clara” outras só “tripeiras de casca”.

Isso de “tripeiros de gemma” tem muito que se lhe diga, porque só seriam os naturais do centro da cidade, da Sé, da Vitória ou de São Nicolau, aqueles que deram as suas vitualhas, as carnes das rezes, para lhes ficarem só com as entranhas. Hoje dão-nas aos “estranhos” e eles gostam…

As das freguesias rurais – Campanhã, Paranhos e Bonfim, seriam “tripeiras de clara” e as mulheres de que hoje vou falar seriam já “tripeiras de casca”.

As de “gemma” deviam ser de carnes alvas, sempre fechadas em casa, quando muito vinham à janela ou iam até ao quintal, quando os havia, pouco saíam de casa. Ao domingo iam à missa e podiam ir a uma romaria ou outra, de que o homem fosse mais devoto. Aprendiam a fazer meia, a bordar, davam a roupa ao rol às lavadeiras e pouco mais. Talvez fiar já não fosse para elas, mas só as que se revoltaram com as maçarocas sabiam a verdadeira razão.

Com outras coisas se revoltavam, ainda que fosse só contra as suas congéneres da capital.

 «A mulher portuense, forte e sadia, achava delambidas e esgrouviadas as lisboetas, quebradiças como figurinhas de alcorça, e faladoras como gralhas.
Achava-as levantadas da cabeça, amantes de mundanices frívolas, da rua e do teatro.»

Comecemos pelas “toilettes”. Parece que existia uma expressão ” Vestir de nada”, que era frase só para Lisboa, com toilettes leves, transparentes e graciosas, nada habituais no Porto. Por cá, poderíamos ver a opulência burguesa, «com vestidos de veludo e setim, marthas de grande preço e jóias de subido valor». À noite, a neblina penetrante aconselhava a mantilha. Relembremos as palavras de Camilo, sempre tão atento às mulheres:

«Ainda conheci mulheres famosas de mantilha. A graça com que elas as apanhavam e refegavam na cintura! Como as nalgas se relevavam redondas debaixo do lapim (tipo de tecido)! E o bamboar dos cabelllos anelados sob o docel negro e arqueado da côca!»

Hoje interessa-me mais a mulher do campo, as “tripeiras de casca”. Alberto Sampaio generaliza e descreve-as «com saias curtas que se arredondam em refegos até às ancas. Coletes curtos ficando livres as alvas e fartas mangas de camisa quase arregaçadas até ao cotovelo. Sobre o peito cruzam um lenço ou chapéu copado de massanetas de seda, solêtas nos pés e finalmente o ouro – enormes arrecadas pendentes das orelhas, formidáveis anéis em dedos rubros, grossos grilhões nodosos sobre o peito».

No entanto, vale a pena dividir estas tripeiras pelas suas origens.

Comecemos pelas lavradeiras. Vinham às feiras ao Porto, às terças, quintas e sábados. De S. Cosme em Gondomar, de S. Mamede e da Maia, dos Carvalhos e de Grijó, em Vila Nova. Vinham com as cestas à cabeça, com aves, fruta e legumes, vindos da terra.

Nem sentiam o peso, descalças quase todo o caminho e calçadas por obrigação quando se aproximavam das barreiras do Porto, onde tinham de pagar portagem. Aí, sentavam-se numa pedra, calçavam as meias brancas e as chinelas de polimento, sempre a brilhar, mesmo no meio da lama.

Quando a feira corria bem, também elas iam às mercas. Podia ser nos Clérigos, comprar um lenço vistoso, nas Carmelitas, comprar um par de tamancos ou de chinelos, ou até à Rua da Flores para regatear com o ourives uma peça de ouro. Nunca pagavam o que ele inicialmente tinha pedido. O jogo podia levar uma hora, não se importavam com os humores do vendedor, que podiam passar de “minha flor, meu amor” até à descompostura pela oferta de preço demasiadamente baixo – “Vá cavar batatas e guardar porcos, porque de outra coisa não entende”. Pouco se importavam. No fim, pagavam sempre menos do que o pedido. E quando chegavam a casa, mostravam o cordão com orgulho à família:
«Merquei-o por dez mel réis!»

«Mercar um cordão, um coração, umas arrecadas de ouro, eis o grande ideal de uma lavradeira do Porto. Mercar um grilhão é exceder todos os sonhos de riqueza e opulência». No dia da festa levar todo aquele oiro ao peito, era qualquer coisa que atraía o olhar masculino e a inveja feminina – era a chieira!

«As curvas graciosas do seu corpo, especialmente aquelas que parecem albergar um casal de pombos irrequietos, conservam, através dos séculos, a turgidez geometricamente escultural com que exactamente o Criador vitalizou na divina olaria do Éden, o barro de que fez a primeira mulher.» Pimentel dixit…

Como o que fazia falta era “o pão para a boca”, as padeiras também vinham à cidade – umas de Avintes outras de Valongo.

As de Avintes vinham e iam de barco. Quando largavam o remo, deixavam de ser barqueiras para ser padeiras e ai de quem se metesse com aqueles “exemplares de mulheres, de braço forte, que eram capazes de tombar um homem com um bofetada”.

Subiam até à Praça de Santa Teresa, onde se encontravam com as padeiras de Valongo que traziam produto mais fino. Se de Avintes só vinha broa de milho, de Valongo, vinha o alvo pão de trigo, a regueifa e o “biscoitinho”. Por lá já havia quintas que, para além do leite, começaram a produzir a manteiga, que combinada com a farinha e o açúcar, vinha adoçar os queixos portuenses.

Pimentel fala-nos também de um outro grupo – as raparigas da Madalena que merecem as suas palavras «frescas como uma alface, coradas e penugentas como a casca de um pêssego, cheirando a serpão, a rosmaninho ou a alecrim – essas finas essências da perfumaria dos campos – aparecem muito no Porto pelo tempo dos morangos - esses grandes morangos do Norte, carnudos e fartos como elas.»

As regateiras da Praça do Anjo lembram-me sempre a minha madrinha que aí começou como galinheira, mas Pimentel preferia as vendedeiras de fruta, que aparentemente «eram tão apetitosas como as frutas que vendem dentro das barracas» muito frequentadas pelos estudantes da Academia Politécnica, que no intervalo das aulas iam lá dizer graças às raparigas e comer as uvas de Cima-do-Douro.

As são-joaneiras e as banheiras da Foz são dois grupos que mereciam um estudo mais aprofundado. As primeiras, ligadas à faina do peixe, sempre com a canastra à cabeça, percorriam as ruas da cidade e muito teriam que contar.

As banheiras da Foz faziam mais do que o termo funcional indica, não se limitavam a dar o banho. «Eram agentes venais de correspondência amorosa que os Romeus e as Julietas trocavam entre si».

Resumamos o quadro – as famílias ricas iam à Foz a banhos, em Agosto e Setembro.
«As avós, as mães, as tias sentavam-se pachorrentamente, junto às barracas, enquanto as netas, as filhas, as sobrinhas se demoravam dentro de água.»

No Carneiro Grande, onde a onda rebentava e salpicava os mirones cá em cima, as suas julietas iam à água ao colo de duas banheiras. Era o banho de choque, levavam-nas ao colo e de repente eram atiradas para dentro de água. Antes, aproveitavam o momento, para a entrega de cartas de namoro aos janotas que ora se atiravam também para a água ora ficavam cá em cima, a mirá-las, de cima do penedo.  Depois, passavam para o outro lado – a praia dos Banhos quentes. Aqui fica a dúvida, por falta de fontes credíveis, alguém aquecia a água ou eram banhos de sol? Sabe-se que a entrada da Assembleia, onde se gastaram fortunas na roleta, dava para a Rua dos Banhos quentes.

Falando ainda de banhos, valeria a pena falar da outra classe que ia a banhos à Foz, não se misturando “com os ricos”. Era a gente de Cima-do-Douro, lavradores ricos, feitores, caseiros, remediados e até os pobres.  Iam a banhos quando os do Porto já tinham ido embora. Lá para Outubro, depois das colheitas. Os de fora hospedavam-se em barracões da Senhora da Luz. Iam cedo. Às sete horas estavam banhados e almoçados. Depois com um lenço na cabeça, homens e mulheres iam ver o mar e o Brasil do outro lado, ali na Meia-Laranja.

Pimentel diz-nos que «iam tomar banho de madrugada, ocultando-se o mais possível entre as fragas, por causa da extrema leveza do fato com que costumavam entrar na água. Às vezes o fato é tão leve que especialmente à saída do banho, nem se vê. As mulheres vestem camisa, os homens vestem ceroulas, que a água faz aderir à pele do corpo. Fazem lembrar Adão e Eva cobertos por uma teia e aranha.»

Fechemos a história com uma trova popular:

Quem me dera ser do Porto
Ou no Porto ter alguém!
Quem me dera ter a fama
Que as moças do Porto têm!



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