Continuando na senda dos cruzeiros fica aqui uma nota histórica de 1869, quando a Câmara Municipal do Porto mandou retirar todas as cruzes e cruzeiros espalhados pelas ruas e caminhos. Alguns foram recolhidos em cemitérios, outros em adros de igrejas e alguns até adquiridos por particulares. Como exemplo, cito nove cruzes que foram para Santo Ildefonso, juntando-se às três já aí existentes e formaram uma Via Sacra. Um burguês famoso, amigo de Camilo, Freitas Fortuna mandou retirar um cruzeiro seu, do Senhor da Boa Morte, na rua do Sol e coloca-lo junto ao seu jazigo, no cemitério da Lapa. Outro cruzeiro do Senhor do Padrão existente na rua do Heroísmo, foi recolhido por José da Silva Couto a quem a CMP deu três dias para o tirar do caminho. Assim aconteceu e hoje podemos vê-lo na Capela da Senhora da Saúde e do Senhor do Padrão, pendurada na parede principal atrás do altar – uma cruz em granito com a imagem de Cristo.
O Cruzeiro do Senhor do Padrão ou dos Aflitos do Carvalhido teve melhor sorte, especialmente porque nunca foi apenas uma simples cruz de
pedra e porque os seus devotos sempre o acarinharam - por isso vamos ao
encontro da sua localização original.
Na planta de Telles Ferreira de 1892, podemos ver, no ângulo
da Rua Nove de Julho com a Rua Nova dos Arcos, o tanque da fonte da Falperra com a
água pintada de azul e à esquerda, se ampliarmos a imagem, vemos o local
marcado com uma cruz. Presume-se que tenha sido este o local original, onde em
1738 foi erguido o cruzeiro. Poderiam ser os Passos do caminho, local onde os
peregrinos retemperavam forças e faziam as suas preces.
Sabemos que aqui foi local de devoção das gentes do
Carvalhido, que sempre mantiveram a chama acesa ao seu Senhor dos Aflitos, num
lampião a azeite. As esmolas e as promessas sempre cobriram as despesas. Tempos
houve até que foi preciso electrificar o cruzeiro – os devotos quotizaram-se para
pagar a luz.
Temos de deixar passar muitos anos para voltar a ter
memórias escritas deste sítio e devemo-las a Hélder Pacheco, que publicou no
seu livro “Tradições Populares do Porto”, duas páginas sobre o Senhor do
Padrão e contou-nos as suas aventuras com fotografias únicas, que analisei em
pormenor.
Esta foto, embora o motivo seja a composição da comissão de
festas, o que mais me chamou a atenção foi o fundo – o portão de ferro, com as letras NSP (Nosso Senhor do Padrão) e a data -1883. Ou seja, esta fotografia,
ainda que seja de 1980, foi tirada no primitivo local “embutido no muro
contíguo a habitações térreas”, ainda conforme a planta de 1892. O espaço
foi protegido por um portão de ferro, que se vê por detrás dos membros da
comissão de festa, com a data do melhoramento – 1883. Hélder Pacheco conta-nos
que “ocultaram a cruz dentro de uma redoma rudimentar, uma caixa de vidro,
cruciforme, protegendo a imagem”. Na rua da Fonte de Massarelos ainda hoje,
temos um cruzeiro idêntico numa redoma
de vidro, dedicado ao Senhor dos Navegantes.
Os anos passaram, a zona do “Mata e Rouba” e o bidonville
que por ali existia desapareceu, para dar continuidade à Rua da Constituição. O
cruzeiro estorvava…
Bem datada é uma carta que um morador escreveu a Hélder
Pacheco, sobre a mudança do Cruzeiro do Senhor dos Aflitos. Ora já sabemos que a
fonte da Falperra e o Cruzeiro encontravam-se na rua do mesmo nome, que
depois foi baptizada como Rua Nove de Julho, data em que o Exército Libertador por
ela entrou no Carvalhido, mais ou menos no sítio onde esta rua cruzaria com a continuação
da Rua da Constituição. É pena, que a C. M. do Porto, ainda hoje, tenha gasto dinheiro em mais um projecto de Rua
Direita, num pequeno troço da rua Nove de Julho que passa por baixo dos
prédios, mais ou menos no sítio onde estaria a fonte e o cruzeiro e nem uma
plaquinha evocativa lá tenha deixado.
Por isso os “muradores” revoltaram-se. Transcrevo algumas
frases da “Carta ao Historiador”, datada de 9 de Junho de 1980:
«Com muita
tristeza lhe escrevo: o Nosso Senhor do Padrão vai ser mudado até ó dia
20 de Julho. Segundo dizem vai para perto da praça do carvalhido no fim da R. 9
de Julho […]
se o Senhor do Padrão estivesse escrito nos Monumentos nacionais já não pudiam
bulir nel […]
Querem fazer del gato sapato. Os muradores não querem que saia de lá
[…] Vamos a ver como vai ser. Já que eu não o posso segurar ali queria pelo menos que êle estivesse ali até ó mês de Setembro [...]»
Mas saiu…
E foi para o fim da rua ao chegar ao Largo do Carvalhido.
O Arquivo do Porto ainda tem um cartaz das festas ao Senhor
do Padrão do ano de 1987 e uma imagem da cruz.
À falta de fontes de informação fidedignas anteriores, vou
ficar neste ponto intermédio dos anos 80. Analisando o cartaz das festas, vemos
que no “pedrão” inferior que sustenta a cruz, há uma inscrição com as letras
pintadas e a data de construção – 1738.
Bem padeceu Hélder Pacheco, com estas “letras pintadas”,
hoje então a sua decifração consegue-se ler apenas com muita imaginação, já
limpas de tinta e ainda mais da erosão do tempo. A inscrição, segundo grafia agora gravada em
chapa inox, diz «louvado seja os tempos
de valores virtude lisura ozeas mdccxxxviii 1738».
A palavra mais curiosa é “OZEAS”. Pacheco tinha dúvidas nesta
última palavra, talvez fosse “OZLIA”, que aparentando ser palavra desconhecida,
o pintor reescreveu sobre a primitiva inscrição, alterando a frase original. Com
o restauro da CMP em 2000, eu continuo com as mesmas dúvidas, seria “Ozeas”
(como se lê na placa inox, nessa data colocada) ou “Ozias” – um rei de Judá, ou
“força divina” como valor, que até já esteve lá bem pintado?
Voltando ao cartaz, e deixando o programa para outra
ocasião, a imagem está pintada e é sobre madeira. Até o fuste foi pintado a
esmalte. Hoje todo o conjunto é granito, inclusive a cruz. O granito veio
também substituir “os azulejos de cozinha” para os quais Pacheco nos chama atenção na sua
fotografia.
Hoje é tudo pedra como se vê na imagem da direita, porque em
2000, a CMP voltou a restaurar o espaço, que classificou de Interessse Municipal, em 1993. Desapareceram para sempre, os azulejos tão kitsch, a porta
gradeada e o lampião que tantos litros de azeite queimou para manter a luz
sempre acesa. Repare-se que esta porta da imagem da esquerda já não é o portão de ferro, de lá de cima, da Nove de Julho.
Gosto de descobrir os pormenores fotográficos e na foto da
esquerda de Hélder Pacheco há marcas do tempo que nos permitem datar o
documento.
Por detrás do cruzeiro, vislumbro uma “mascarra” pós-25 de
Abril. Sempre que se aproximavam as eleições, os partidos inundavam as paredes
com cartazes que por ali ficavam eternamente. Já tinha acabado o tempo, em que
os prédios ostentavam placas dizendo “prohibido
affixar cartazes”. Basta um pouco de atenção para reconhecer um cartaz
da APU em baixo e em cima provavelmente PPD, CDS e PS.
Outro pormenor que me chamou a atenção, foram “umas janelas
abertas” ao fundo à esquerda. São de prédios em construção, na última parte da
Rua da Constituição, onde já tinha desaparecido o bairro de lata que havia
pelos restos dos montes, por onde andou o “Mata e Rouba”. Alguns desses prédios
eram da Cooperativa de Habitação, depois do 25 de Abril – a Habece
construiu de 1977 a 1987, como marca o seu monumento, lá na rua. Há por lá ainda uma placa
da Associação de Moradores do Carvalhido, que assinala a data da sua fundação – 26 de Março de 1976.
Para acabar, já não há luzinhas eléctricas à volta da cruz, nem azeite a arder no lampião, mas diariamente não faltam flores e velas arder no chão.
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