Se por um lado, temos folhas brilhantes da história que
enaltecem o trabalho desenvolvido pelas comunidades religiosas dentro de
conventos e mosteiros, que ainda hoje admiramos (e de sobremaneira os
reconstruídos, onde abunda o luxo da “boa cama e da boa mesa”), por
outro lado, temos páginas negras que nos fazem pensar nas verdadeiras razões
para a extinção destas casas.
São muitos os relatos de obras que nos contam a vida dentro
das paredes do convento e talvez valha a pena relembrar alguns, para fazermos
um melhor juízo do que por lá teria passado quem, à força ou de livre vontade,
entrou nesses muros.
Comecemos por um excerto de “A Freira no Subterrâneo”
um livro, de autor anónimo, traduzido por Camilo Castelo Branco, em 1872, e
publicado pela Tipografia Pereira da Silva, cuja acção se passou na Polónia,
entre 1841 e 1868.
«- Espera
pois que a eternidade se abra para ti.
A esta hora, estás nas entranhas da terra, sem hálito de ar, sem raio de luz...
A palha d'este ninho não será renovada nunca... os teus vestidos
desfazer-se-hão de pôdres sobre o teu corpo, e a tua nudez nunca mais se
cobrirá... Os teus dentes cahirão, as tuas unhas crescerão como as das feras,
os teus cabellos hão-de encanecer n'esta caverna, que é a tua sepultura. Não
haverá creatura humana que haja de soffrer o que tu vaes aqui amargurar. E o
teu próprio amante, se te visse alguma vez, recuaria horrorizado de ti.
- É meio-dia, Barbara. Não verás jamais o sol; nunca mais contarás os dias.
D'esta vez, fechou-se o postigo para não mais se abrir. »
Embora estejemos perante um romance histórico, podemos
colocar aquela etiqueta, como nos filmes “Baseado numa história
verdadeira”.
O encarceramento de Barbara Ubryk durante vinte anos, no
convento das Carmelitas de Wesola, em Cracóvia, comoveu a opinião pública na
Europa. Deu origem a um processo nos tribunais, em 1869, onde a sociedade
reclamava o castigo da prelada, Maria Wenzyk. A sua família poderosa e todo o
clero tudo fizeram para abafar a infâmia. Arcebispos, e até o Papa,
intervieram, para finalmente, o processo ser “trancado” por ordem
governamental.
Um livro histórico sobre o caso “A Verdade sobre Barbara Ubrykówna”, de
Julian Tomkowicz, publicado em 1909, teve por base arquivos judiciais. No
entanto, o autor era sobrinho da prioresa Maria Wenzyk e tentou “branqueá-la”
em detrimento da fiabilidade do livro.
Outras obras vieram a público, desde uma obra em quatro
volumes, mas também muito criticada a uma publicação editada em Filadélfia, em
1869 com o título - “O Horror
do Convento: A história de Barbara Ubryk - Vinte e um Anos numa Masmorra de
Convento de Oito Pés de Comprimento e Seis Pés de Largura”, mas
seria pouco mais do que uma leitura superficial de informações da imprensa da
época.
Camilo diz que traduziu o “romance histórico” de uma edição
francesa anónima - “Les
amoureuses cloitrées”. Mesmo a quarta edição pela Chardron, da Lello
& Irmão, editores, em 1902, não refere o nome do autor original da obra.
Embora as traduções de Camilo estejam pouco estudadas, há mesmo a hipótese de o
romance ter sido escrito pelo próprio Camilo.
Arnaldo Gama, escreve a sua obra “A última dama de S.
Nicolau”, em 1864, relatando factos históricos ocorridos, no Porto em 1474.
Esta dama era uma das “emparedadas” do Porto, que de moto próprio, ou não,
viveram fechadas dentro de paredes como se entrassem num túmulo.
Seriam lendas ou histórias verdadeiras, tantas histórias
contadas? Conforme os contos, a designação varia de “emparedadas”, ”enceladas”
ou até “inclusas”, mas sempre mulheres que se condenavam a viver o resto dos
dias num espaço exíguo, onde nem podiam mover o corpo e com um único postigo para
entrada de pão e água, quando muito.
Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, no seu “Elucidário
das Palavras, Termos e Frases Antiquadas da Língua Portugueza”, de 1798,
tem um verbete sobre a palavra “emparedadas” do que fotografei o início,
para a ilustração inicial. Assim falou Frei Joaquim:
«EMPAREDADA, Emparedeada, Emparedenada, ou Empardeada.
Desde o século XII até o XV se acham em Portugal muitas Emparedadas.
Eram mulheres varonis, que desenganadas inteiramente do mundo, se sepultavam em
vida n’uma estreita cela, cuja porta no mesmo ponto da sua entrada se fechava
com pedra, e cal e só por morte da inclusa se abria, para ser levada
finalmente à sepultura. No lugar da porta, e ao tempo de a tapar, ficava só uma
pequenina fresta por onde se lhes ministrava o indispensavelmente necessário
para a vida, que poucas vezes passava de pão e água, recebiam o corpo de
Christo, e falavam ao seu confessor unicamente no que respeitava à sua
consciência. E de se fecharem entre paredes, ou emparendando-se, se
chamaram Emparedadas.»
Vou citar o prof. António Cruz que no seu livro “Tempo e
Caminhos”, de 1973, expõe dúvidas relativas à localização das casas das inclusae.
No entanto, identifica várias “deixas”, dos testamentos de prelados, com
referências específicas às “emparedadas”:
«D. Abril Mendes, em 1295, reparte libras, para pitança, por
vários conventos, distinguindo entre outros “para as emparedadas, para as donas
de São Nicolainho”.
D. Vicente Mendes, em 1296, contemplou “As inclussis de
Portu com dez libras e vinte as donas de Santo Nicholayo”.
D. Sancho Pires, em 1300, destina dez libras às emparedadas
do Porto e vinte às donas de S. Nicolau.”
Vou deixar para os historiadores a confusão existente sobre
a localização exacta da casa das donas de S. Nicolau. Parece que numa
anotação à margem do testamento de D. Sancho Pires, há uma indicação, dizendo
que ambos os legados (para as do Porto e as de S. Nicolau) vieram a beneficiar
as emparedadas de S. Nicolau. Será que não havia emparedadas no Porto, na
Ferrraria de Cima, como Arnaldo Gama sustenta em toda a sua obra? O mosteiro
era na margem esquerda do Douro? Onde? Cá em baixo, junto à Capela do Senhor de
Além, ou lá em cima, no morro de Quebrantões (hoje Serra do Pilar), onde em
1140, foi fundado um mosteiro consagrado a S. Nicolau, das Cónegas Regrantes de
Santo Agostinho, como afirma Magalhães Basto. O mosteiro já estava há muito
desabitado, quando, em 1538, outros frades foram para lá. Deixemos isso para
quem estuda a sério estes assuntos. Em relação ao Porto, Frei Rosa Viterbo
afirma que a casa não era na serra, nem do outro lado do rio, mas sim na
Ferraria de Cima, junto ao Hospital de Nossa Senhora da Silva.
O que relevam estes testamentos era a existência de mulheres
enclausuradas que seriam merecedoras da caridade do próximo. Frei Rosa Viterbo,
no seu “Elucidário” dá nota da existência de emparedadas por todo o
país, citando Lisboa, Santarém, Coimbra e Lamego.
Em Lisboa, estavam no Convento da Madre de Deus – um
convento de freiras que viviam “emparedadas”, sem conseguirem ver o rio Tejo que
corria ali mesmo ao lado e que muitas vezes lhes inundou a igreja. Foi fundado
por D. Leonor em 1509 em Enxobregas ou Xabregas, como hoje se diz. Em 2010
contaram a sua história numa exposição intitulada “Casa Perfeitíssima”, mas não revelaram muito dos seus
segredos.
Em Santarém, existiu o Convento de S. Domingos das Donas
de Santarém, fundado em 1246, que pertencia à Ordem dos Pregadores e também
aí existia uma comunidade de “emparedadas”.
Passado o tempo das trevas, veio o século das luzes e a
Revolução Francesa e as ideias dos Iluministas começaram a pôr em causa a
existência destas casas religiosas. A revolução das novas ideias liberais
estendeu-se por toda a Europa. Logo em 1789, a Assembleia Constituinte francesa
propôs o confisco dos bens: “mettre les biens du clergé à la disposition de
la Nation”.
Por cá, a nossa rainha D. Maria I, de cognome “a Louca”,
embora fosse mais devagar, também mandou criar uma Junta para examinar o estado
das Ordens Regulares e avaliar a utilidade para a Igreja e para o Estado.
O filho, D. João VI, em 1822, reduziu mesmo o número de
mosteiros e conventos, fixando um número por cada congregação e no final, já
não chegavam a uma centena. Estabeleceu normas para o levantamento de
património, bens, fundos e rendimentos, obrigando à escrituração de inventários,
controlados por autoridade fiscal civil.
Chegados a 1834, as ordens religiosas tiveram o golpe de
misericórdia final – o decreto de
“O Matafrades” - Joaquim António de Aguiar que redigiu o decreto, onde
dizia «[…] a religião nada lucra com as Ordens Regulares e a sua conservação
não é compatível com a civilização e as luzes do século» e determinava a
imediata extinção de todas as casas religiosas e a incorporação dos seus bens
na Fazenda Nacional.»
Fechados mosteiros e conventos, eu volto ao princípio. Quais
seriam as verdadeiras razões para a extinção destas instituições?
Se formos para outros países o fenómeno repete-se.
Aqui ao lado, uma professora, da universidade de Oviedo,
publicou há poucos anos “INCLUSA INTRA PARIETES – La réclusion voluntaria en
la Espana medieval”. A reclusão era mais praticada por mulheres do que
homens, mas não se restringia a conventos e mosteiros, alargava-se a outros
sítios, com celas junto a cemitérios, igrejas ou hospitais, e até em pontes ou
muralhas, perto do centro urbano ou nos arredores. O enclausuramento era
precedido da despedida do mundo, com cerimónia litúrgica e até uma missa de defuntos,
antes de fechar a cela.
Em França, Victor Hugo, retrata uma emparedada no seu livro
“Notre Dame de Paris”, ou o “Corcunda de Notre Dame”. Para abrir o
apetite fica aqui o momento: «Frollo
entregou a cigana Esmeralda às garras de uma velha reclusa
do buraco dos ratos, onde fora enterrada por sua vontade. Ela é
considerada louca e perigosa. No entanto, em vez de despedaçar Esmeralda,
a velha reconhece-a como sendo a sua própria filha, e poupou-lhe a
vida.»
Não faltam obras, onde estas e outras histórias estejam narradas. Mas tudo se deveria aos séculos das trevas e ao fanatismo religioso? Não teriam sido as vinganças, as perseguições, as agressões verbais e corporais, as violentações sexuais – as principais razões para a extinção destas casas?
Fica aqui a dúvida para posteriores estudos.
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