quarta-feira, 2 de abril de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - Epílogo (evocações e honrarias)

 


Como em muitas destas páginas me tenho debruçado sobre a toponímia portuense, termino o folhetim camiliano com uma avenida que muito calcorreei, quando frequentava o Liceu de Alexandre Herculano – precisamente a Avenida de Camilo.

Dois vultos da literatura na mesma avenida. Se dentro de um, eu estudava, dentro de outro, levava os meus livros debaixo do braço. Lembro-me de uma pasta chic de couro, debruada a cetim para segurar duas guardas interiores e com a imagem de Camilo na frente. Era o tal bigodaças, “picado do génio e das bexigas”, como o retratou e legendou Bordalo, no seu “Álbum das Glórias”.

As bexigas também tinham sido imagem das minhas doenças infantis, talvez daí sempre ter tido alguma afeição pelo escritor. Recordo ter conseguido um livro dele proibido pela censura, “A Freira no Subterrâneo”, editada pela Chardron, que li com interesse redobrado.

Bem, voltemos às ruas…

Quando andei pela Avenida de Camilo, já a Quinta de Sacais era reduzida. A toponímia da quinta fica para outra ocasião, porque a história pode ir desde “galhos secos de árvores”, aos acaçais ou aguadeiros com jumentos. Grande parte do terreno desta quinta foi cedida à C.M. do Porto, pelo conhecido banqueiro Francisco Borges, do extinto Borges & Irmão, para o liceu e para abertura da avenida, em 1914.

No primeiro centenário do nascimento de Camilo, e já lá vão cem anos, o jornal “O Comércio do Porto”, promoveu uma homenagem ao romancista, muito pelo empenho do seu director Bento Carqueja. Em 1925, foi colocado, no fundo da avenida, o busto de Camilo, da autoria do escultor Henrique Moreira. Monumento idêntico, foi no mesmo dia 16 de Março, descerrado nos jardins do antigo Paço dos Concelhos de Famalicão. O edifício da Câmara ardeu em 1958 e nessa data o busto foi transladado para Seide.

Hoje em dia, a estátua de Camilo mais fotografada, encontra-se desde 2012, em frente à Cadeia da Relação, onde Camilo tem uma jovem agarrada a si que todos negam ser A. A. Assim despida ninguém reconhece os traços roliços da Plácido. É da autoria de Francisco Simões e o presidente da Câmara, Rui Moreira afirmou em 2023, que iria mandar retirar a estátua “Os amores de Camilo”, por a considerar “feia e de mau gosto”. Ainda lá está, embora todos os dias os pombos lhe façam “aquilo” em cima.

Já que não pude coleccionar estátuas, enquanto estão à vista de todos, tenho coleccionado moedas e algumas notas. Também por estes "sítios" Camilo foi homenageado.

Em 1965, sem ligarem a qualquer efeméride camiliana, o Estado Novo achou que as notas andavam muito velhas e era preciso substituí-las. Bem me lembro dessas notas, grande, velhas e feias. Camilo teve a sua cara numa nota de cem escudos. Era uma nota alegre, em tons de azul claro, com o “bigodaças” todo pimpão de lacinho e jaqueta, que começou a circular em 1965.

Já quanto às moedas, a Imprensa Nacional da Casa da Moeda esperou pelo centenário da morte de Camilo, para em 1990, lançar uma moeda comemorativa de prata BNC (Brilhante Não Circulada), dentro de uma carteira, com informação sobre o escritor e a moeda. A mesma moeda em cuproníquel, circulou, mas como habitualmente ficou pelos bolsos dos coleccionadores e poucos a trocaram por arroz ou açúcar. A moeda é da autoria da escultora matosinhense Irene Vilar e no anverso, tem a acácia do Jorge, existente na Casa de Camilo em S. Miguel de Seide. A árvore de braços alongados e estorcidos, que ardeu uma vez quando do incêndio da casa de São Miguel, mas que ainda teve forças e seiva para rebentar em folhagem verdeera um dos pousos favoritos do filho Jorge que “ocuparia os dias a tocar flauta empoleirado nas árvores simiescamente”.

Jorge foi uma das grandes preocupações de Camilo que quase até à sua morte, por ele se bateu em Lisboa, para que lhe fosse concedida uma pensão, invocando a sua incapacidade para o trabalho. Viria essa pretensão a ser concedida em 1889, um ano antes da sua morte.

Também para o fim da vida, ficaram outras benesses e benefícios régios, especialmente a concessão do título nobiliárquicoVisconde de Correia Botelho.

Camilo toda a vida foi muito satírico em relação à facilidade com que por cá atribuíam os títulos. Escreveu ele:

«Nas noventa léguas, metade incultas, de Portugal, inçam e pompeiam, segundo conta o Almanach Comercial para 1884, 122 Condes, 304 Viscondes e 190 Barões. Quanto o Comendadores quem contou as gotas do Mediterrâneo

Por necessidade, também entrou nesse clube, em Junho de 1885, quando lhe foi atribuído o título, em virtude dos altos serviços prestados à literatura nacional. Como “nobiliado” seria agora mais fácil atribuírem-lhe pensão ao filho. Quanto a ele, até se congratulou com o voto favorável do Parlamento “em isentá-lo do pagamento de direitos de mercê e selo”, a que seria obrigado pelo título, era menos uma despesa.

Tal concessão indignou muita gente, especialmente a abastada burguesia, que nunca esquecera as suas polémicas. «Os “bem pensantes” consideravam Camilo um marginal, um atrevido arrivista e viam na nobilitação um aviltamento de ordem social, na medida em que a interpretavam como uma afronta à classe

Quem também não se congratulou com a distinção honorífica foi a Viscondessa Ana Plácido:

«[…]o único título por ela desejado, no íntimo do coração, não era o de viscondessa, mas o de esposa, tanto mais que a humilhação se tornava maior, desde que Ana Plácido continuasse a ser, ao lado do visconde de Correia Botelho, apenas a sua antiga amante, a sócia dos seus infortúnios, não das suas honrarias.» – palavras de Alberto Pimentel

Finalmente marido e mulher - Tiveram de esperar pelo dia 9 de Março de 1888, para que o responsável eclesiástico os abençoasse, no 2.º andar de um prédio da Rua de Santa Catarina, à data com o n.º 458, como ainda hoje se pode ler numa placa evocativa da C. M. do Porto, aí colocada em 1991. Nesta cerimónia, entre outras testemunhas, esteve o grande amigo de Camilo, João de Freitas Fortuna, que até economicamente muitas vezes lhe valeu e o seu irmão, o Dr. Urbino de Freitas que havia de ficar famoso na cidade, pela acusação de envenenamento de familiares na rua das Flores.


Sem mais “venenos” fica por aqui este folhetim, com a promessa de a ele voltar, sempre que a memória o requeira ou a vontade o exija.

Alguma bibliografia consultada:

·         Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, “Alguns Passos da Vida de Camilo”, de 1950

·         O Porto do Romantismo, Artur de Magalhães Basto, 1932

·         Camilo Castelo Branco – Sua Vida e Obra, Oldemiro César, de 1914

·         Memórias do tempo de Camilo A. A., Alberto Pimentel, 1913

·         O Porto Há Trinta Anos, Alberto Pimentel, de 1893

·         “Cem Cartas de Camillo”, Xavier Barbosa, 

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