terça-feira, 15 de abril de 2025

Velhas tradições pascais

 

Deixando de lado todo o cerimonial religioso da Páscoa, gostava de partilhar curiosidades pascais de tempos idos ou intemporais.

Podemos começar pelo calendário. Porque é que a Páscoa é um feriado móvel, isto é, porque não é, no mesmo dia todos os anos?
Temos de recuar muito, não até à Ressurreição de Cristo, mas até cerca de 300 anos depois. Em 325, realizou-se o Concílio de Niceia, na actual Turquia, o 1.º concílio ecuménico, onde bispos de diversas igrejas definiram, entre outros temas, a data da Páscoa. Não complicando dizemos que ficou assente ser no 1.º domingo, a seguir à 1.ª lua-cheia da Primavera. Depois poderíamos falar de calendários, o juliano, o gregoriano, o judaico e teríamos a justificação para a Páscoa ortodoxa ser em data diferente da católica.
Bem, como a Primavera começa a 21 de Março, a Páscoa ocorre entre o dia seguinte e o dia 25 de Abril. Quanto mais tarde é, pior para os estudantes, pois lá diz o provérbio, “Páscoa alta, chumbo na malta”. O último período escolar fica mais reduzido e há menos tempo para recuperar os resultados menos bons.

Portugal, como país católico, há 50 anos ou mais, cumpria muitas tradições que os jovens de hoje nem as imaginam. O tempo da Quaresma era vivido de um modo triste e acabrunhado. As mulheres não vestiam roupas garridas, então o vermelho estava proibido. A maioria trajava praticamente de preto. A alegria dos campos desaparecia. Não ouvíamos os cantares, era mais provável escutar algumas antífonas, dizer umas ladainhas e umas jaculatórias ou um desfiar de orações. Os homens abstinham-se de dizer os seus palavrões, contar as suas larachas e às vezes até eram mal vistos por assobiar. Eram dias tristes que mais enegreciam na Semana Santa. Então na 6.ª Feira Santa não se podia fazer nada. As mulheres não fiavam, não cosiam, não coziam o pão, não lavavam, não estendiam a roupa… As limpezas da casa já tinham começado na semana anterior. O tempo normalmente estava melhor – até o provérbio o previa “Na semana de Ramos lava os teus panos, na da Paixão lavarás ou não.” E às três da tarde de Sexta-feira tudo parava – era a morte do Senhor – tinha que se fazer silêncio.

Quem não trabalhava ia ver as igrejas. Aqui na cidade tinha de visitar mais do que uma e sempre em número ímpar, porque são os números divinos – as trindades, as cinco chagas de Cristo, as sete bem-aventuranças… tudo ímpar.

Lembro-me de ir com a minha avó e ser tudo muito feio. Estavam todas as pessoas caladas, os altares não tinham flores e os santos estavam tapados com panos roxos ou pretos – ou seja, não havia nada para ver.

Parece que em algumas aldeias nem os sinos tocavam. Em terras minhotas, ouvi muitas vezes o som dos trique-li-traques e das matracas e sempre me disseram que era para lembrar às pessoas o tempo de reflexão, mas parece que também funcionava como substituição do toque dos sinos, nos chamamentos diários.

Alguns chamamentos infundiram-me sempre muito medo, quando era pequeno. Um desses rituais, hoje desaparecido, era a “Encomendação das Almas” ou o “Botar das Alminhas”.
Uma pessoa da aldeia, o “botador de almas”, subia a um ponto alto e ao toque das primeiras trindades, e enquanto os sinos tocavam, começava a rezar uma ladainha, numa toada muito dorida e melancólica e acabava com um Pai-Nosso e uma Avé-Maria, pela salvação das almas do Purgatório.

Os receios pelas coisas más que nos pudessem acontecer levavam-nos a aceitar os mandamentos e as ordens do padre. “Não se esqueçam da desobriga!” – obrigação da confissão anual e comunhão pascal. Desobriga – foi sempre uma palavra temida, porque tínhamos de livrar-nos dessa obrigação e o rapazio, com a doutrina esquecida, tinha mais receio da penitência, de não conseguir dizer ao padre a “salvé-rainha” ou o “acto de contrição”, do que da ameaça da forquilha do mafarrico.

Merece algumas palavras a tradição do “Compasso Pascal”. Não sei se os jovens de hoje, que não estudem geometria, estão familiarizados com o “compasso e o tira-linhas”, mas não é desses objectos que quero falar.

É mais da “Crux cum passo Domino”, que se formos ao latinório significa “A cruz com o Senhor sofredor”. Abreviando a expressão, ela serve para o Porto e para o Minho. O “cum passo Domino” foi reduzido para “compasso”. Quando fui para o Minho não sabiam o que era o compasso, pois tinham ficado só com a “Crux” – a Cruz. «Cá a Cruz só vem na 2.ª Feira», diziam eles.

Conheci bem este “eles”, pois foram os mordomos e juízes da Cruz que me fizeram partilhar de pantagruélicas mesas de Domingo de Páscoa. Os quarenta dias de abstinência da carne eram ali vingados, pelo sacrifício da vitela, do anho, do porco e todo o bico de capoeira, frito, cozido e assado, sem esquecer que foi aí que comecei a dizer que aletria não era massa doce cozida e soube que também havia leite-creme e arroz doce, que levavam canadas de leite e eram canelo-bordados e canelo-ortografados na perfeição.

Quanto à Cruz era levada pelo Juiz da Cruz, que à chegada a entregava ao dono da casa e este, hierarquicamente, dava-a a beijar à esposa, aos filhos, demais familiares, criados e vizinhos.

Cumpria ao abade a bênção da casa e de todos os presentes, aspergindo tudo com água benta que o rapaz da caldeirinha transportava.
A associação da cruz e da caldeirinha é que não é nada própria para esta época de festa. A expressão “Estar entre a cruz e a caldeirinha”, dizia-se, literalmente, do moribundo que estava à espera da sua hora, pois no caixão iria ter a cruz à cabeça e a caldeirinha aos pés.

A visita pascal tinha mais dois momentos dignos de nota. Um era a partilha da mesa. Cada casa “punha a mesa para o senhor Prior” e para toda a comitiva e a família levava a mal, se todos não comessem e bebessem. O mal vinha ao fim do dia quando muitos não sabiam fazer número nenhum.
À saída, era o momento do folar. Lembro-me da laranja no meio da mesa, com uma moeda de dez escudos de prata por baixo. O padre levantava a laranja e pegava na moeda. Fazia parte do seu folar. O tempo de levar uma dúzia de ovos já há muito tinha acabado e quando acabaram as moedas de prata, passou a estar um envelope com notas debaixo da laranja.

O rapaz da campainha era o primeiro a sair e continuava rua abaixo, a calcar “os verdes” da próxima casa onde iam entrar. “Deitar os verdes” – ramos de plantas mais ou menos odoríferas e pétalas de flores – era sinal de que queríamos receber a Visita Pascal.

A este propósito convém lembrar que o bispo do Porto D. António Castro Meireles, que por acaso deu nome a uma rua vizinha donde nasci, ali pelos anos 30, legislou sobre esta Visita dizendo « … Que ela não se devia fazer a casa de registados civilmente quanto ao casamento e aos amancebados públicos».
Talvez não tenha sido esse o principal motivo, mas a verdade é que pelos anos 80, o compasso foi acabando.
O folar também foi desaparecendo. Achei piada a um anúncio publicitário na TV, em que os padrinhos instruídos do “dever do folar” confessavam que então deviam 6, 10 ou 25 folares…

Quem nunca se esquecia de um folar era o meu padrinho que distribuía “um Sant’Antoninho” a cada neto e uma nota de “cincoenta escudos” aos netos-afilhados.

Antes de acabar a Quaresma ficam duas tradições para encerrar o escrito – uma que ainda perdura em muitas terras e outra que já lá vai o tempo…

 Comecemos pela Queima do Judas – um cortejo barulhento, acompanhado de gritos e música de enterro, realizado no Sábado de aleluia. A parte mais emocionante é sempre a final – a queima – um ritual de purificação em que se queima todo o mal. A queima é precedida da leitura de um testamento, onde são relembradas todas as mal-feitorias feitas ao povo durante o ano. Nalgumas terras havia fogo-de-artifício, normalmente fogo preso, em que bonecos de palha enfiados num alto pau giravam e iam ardendo até ao estouro final, provocado por umas bombas lá deixadas.

Ficou para o fim o Enterro do Bacalhau.
A ideia percebe-se, pois é a reacção popular à abstinência da carne durante a Quaresma, salvo para os endinheirados que podiam pagar a bula. Os pobres ou recorriam às sardinhas de ceira, em salmoura, ou então ao bacalhau pequenino, chamado alecrim, que era o mais barato. Também parece que o antigo regime quis proibir esta tradição e hoje como poucos ligam à abstinência, a tradição perdeu o seu sentido.

Hélder Pacheco, nas “Vistas do Meu Quinteiro” lamenta que os amigos não tenham memória deste Enterro cá no Porto. Mas há sempre um amigo especial – o Júlio Couto, que lhe falou de um fiel amigo - o Magriço Bacalhau.

Devia ter sido numa das “trocas de saquinhos” que ambos faziam, que Júlio Couto lhe levou o folheto “Sentença de Morte Natural contra o Réo de Lesa Barriga – Magriço Palhares Bacalhau”.

Como não o encontro em nenhuma biblioteca, nem numa loja da Rua das Flores, onde se vendia em meados dos oitocentos, vou copiar-lhe alguns excertos para melhor ideia fazermos deste “Enterro do Bacalhau”.

No escrito, para ser lido na ocasião do julgamento do bacalhau, refere-se a penitência a que os pobres mortais estavam condenados:

«prova-se que o réu Magriço Palhares Bacalhau, […] natural da Terra Nova, tendo sido, como protestante, que é, um verdadeiro flagelo dos estômagos católicos, declarando guerra à saborosa Vitela Mamota, ao sólido Lombo de Vaca, Paio de Alentejo, Presunto de Lamego e outras Viandas gostosíssimas… o Réu para desafiar o apetite dos incautos e abusar da sua boa fé, se disfarça em bolinhos, pastelinhos, pudins, batatadas e salsadas […].»

«Depois o bacalhau é condenado à morte por enforcamento no Monte Pedral, pendurado pelo rabo, sendo este cortado e colocado na Praça do Anjo e as barbatanas expostas no Cais da Alfândega, na Ribeira «lugar da sua praça-forte». O resto do corpo ficaria exposto no patíbulo, até à meia-noite do Sábado de Aleluia.
O réu seria ainda multado em oitocentos milhões de espinhas para alívio e consolação dos gatos, que ficam miando saudosos pela sua morte.»

A sentença de 11 de Março de 1852, era assinada pelos juízes
(parcialíssimos por serem prejudicados pelo bacalhau e logo seus inimigos figadais):
Dr. Vacório – Chibarro – Carneiro – cabrito – Bode Capado – Paio - Choiriço

 Finalmente, o algoz lia o “Pregão do Executor”, com ataques virulentos e chorrilhos de insultos como “traidor dos pobres” ou “maldito da Terra Nova” e esperava-lhe o arrependimento:

Arrepende-te. Arrepende-te já, pois não posso demorar mais a execução, o senhor Juiz tem de ir aprontar uma rabada de boi para comer ao cair da meia-noite…»

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