quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

"Namorar à bicha", de carreira ou a correr?

 

Muitas expressões populares têm origem pouco estudada e foram passando de boca em boca, e a tradição oral é responsável pelo enriquecimento ou o empobrecimento da língua e das nossas memórias. Quem não sai de casa ou nunca ouviu, não tem que contar.

Põe-te na bicha”, por exemplo, não era dito com o sentido literal, dizíamo-lo para alguém não nos aborrecer, para ir dar uma volta, ou ir tomar ar.

Mas quem tinha mesmo de se “pôr na bicha”, literalmente, eram os moços que andavam à procura de um bom partido. Para isso, tinham de “namorar à bicha”.

Também diziam que era "namorar de carreira" ou mesmo "namorar a correr"

Esta prática era mais comum entre determinadas classes e grupos sociais. Na high-society o casamento era combinado entre as famílias de sangue mais ou menos azul. Já as criadas de servir, que só tinham folga ao domingo, tinham de sentar-se no banco de jardim, à espera do magala, que lhe dava dois dedos de trela.

Mas quem “namorava à bicha”, então? Hélder Pacheco refere-se a este namoro em vários dos seus livros. No primeiro volume de “Vistas do meu quinteiro”, editado em 1995, passa em revista várias festas populares e descreve este namoro, na Festa do Senhor de Matosinhos.

Reserva-o, especialmente, para as lavradeiras que, no terceiro dia da festa, vinham com toda a família. A sua indumentária era de tal modo especial, que era preciso ter olho para saber as que todo ano trabalhavam no campo e vinham ali à procura de “investimento para o futuro”.

Repare-se no seu aspecto – “chapéus de capelinas, luvas de renda, vestidos e sapatos do melhor”. Mas como se desenrolava a função? Recorra-se às palavras de Hélder Pacheco que descreve muito bem o quadro:

«Das quatro até à noitinha, era vê-las (e vê-los) no adro da igreja, a namorar à bicha. Os pais sentavam-se nos bancos de pedra, perto do chafariz, e as moças espalhavam-se a esmo. Então os moços faziam bicha (uma bicha para cada moça), tudo em pé, dirigiam-se às moças, cumprimentavam-nas cerimoniosamente e conversavam.

Conversavam, prosaica e pragmaticamente, sobre campos, bois e vacas. Os dotes enfim de cada um. […] Acabado o inventário, o moço deixava a moça e seguia para outra bicha e assim sucessivamente, até acabarem todas as moças disponíveis.»

Há pormenores deliciosos, como o da moça que esconde uma batata na mão e, com a unha, vai marcando com quantos pretendentes falou.

Chegadas a casa, há que partilhar com a família e a chieira não se ficava pelos ouros e pelas arrecadas. Importava o tamanho. Com quantos? Depois a família contava aos conhecidos: “ A minha filha teve tantos namoros, e a sua?” Conclui Pacheco:

«Este namorar à bicha constituía – conforme se diz agora – prospecção de mercado, OPV e marketing juntos

 

Para acabar a história de hoje, vamos “namorar a correr” e para tal recorto uma notícia de 1915, sobre a feira anual, no pitoresco local de S. José, em Barreiros (da Maia) …

«[ …] concorreram belos exemplares de animais e um sem número de utensílios de lavoura, alguns de nova invenção e muito curiosos, que foram intensamente admirados.

Realizaram-se boas transações e não faltou nesta feira o tradicional «namoro a correr», em que as raparigas dão trela a dez ou doze rapazes”.

Isto é que eram moçoilas, aviavam uma equipa de futebol, num ai!