O primeiro quadro é a estação de S. Bento onde eu entrava e
saía diariamente e da qual guardo inúmeras recordações.
«No
átrio da estação de São Bento, duas filas de pessoas, formando um corredor em
frente e à saida da gare, esperavam os passageiros. Encostados às paredes e com cara de
poucos amigos, carrejões de trouxa às costas e capuz de serapilheira
enfiada na cabeça para que algum passageiro lhes entregasse um cesto ou cabaz e
um frete de uns 15 ou 25 tostões, para os lados de Cimo de Vila, Caldeireiros,
Praça de Carlos Alberto e rua de Cedofeita.»
“Carrejões” –
Foi sempre um termo forte e depreciativo. Então usado no feminino… Lembro-me de
mulheres a queixarem-se quando não recebiam ajuda e tinham de levar os sacos
sozinhas – “Julgas que sou alguma carrejona?” O carrejão, anos mais
tarde, foi promovido a “bagageiro”, embora este só transportasse as malas e os
carregos do comboio até à saída ou vice-versa. Cá fora, se já não houvesse
“carrejões” tinha de haver uma alternativa, para aqueles que não conseguiam
levar sozinhos todo o carrego que tinham trazido. Havia sempre a hipótese de
levar as encomendas à EGT (Empresa Geral de Transportes), com escritório ali
junto aos armazéns da CP, que faziam entrega de encomendas porta a porta. As
suas camionetes verdes corriam toda a cidade.
Da descrição acima citada, quero recordar ainda o capuz
de serapilheira. Era o abrigo para o frio ou para a chuva. Esta “peça de
roupa” não era senão um saco de serapilheira, a que se dobrava um canto para
dentro, formando o tal capuz.
A serrapilheira era o material mais utilizado em sacos para
aguentar com umas boas arrobas, fosse lá do que fosse. Desde as humildes batatas
às linhagens para os fardos de bacalhau, até aos sacos de 50 e 60 quilos de
café “Colonial” – tudo se ensacava em serapilheira.
Depois os sacos eram reciclados. Já que o quadro é a estação
de S. Bento, estou a ver a dita serrapilheira a forrar uns cestos vinhateiros. Uns
homens andavam ali pela entrada da estação com esses cestos ao tiracolo, presos
por uma larga correia de couro. Lá dentro tinham castanhas cozidas a vapor. Como
as faziam, não sei. Vendiam-nas em cartuchos de jornal e rivalizavam com as
assadas, do outro vendedor que ficava ali à porta da rua a deitar fumo.
«As gentes vestiam de uma outra forma.
Alguns homens, com aparência de “esticadinhos”
(também chamados pipis da tabela) usavam gravatas penduradas nos
colarinhos, rafados, de tanto a camisa ser lavada; fatos lustrados de anos de
uso.
Jovens penteados com o cabelo para trás e empastado de brilhantina barata.»
Falar do vestir e das aparências é
tema que daria pano para mangas, mas aqui fica só um pequeno reparo para os
cabelos e para as gravatas. Começando pelos cabelos, isto depende da época,
porque antes dos 60, nenhum homem andava “em cabelo”. Expressão
utilizada para quem trouxesse a cabeça descoberta. O chapéu era de uso
obrigatório e não se ligava muito ao penteado. A partir dos 60, a brilhantina e
o fixador eram quase indispensáveis. O chapéu ia ficando só para os mais velhos
e a gente nova queria os cabelos bem coladinhos à cabeça. Uma poupa bem armada
e abrilhantinada ou bem presa com o fixador de alcatira.
Voltando à citação,
destaco a gravata pendurada no “colarinho rafado”. Eu diria mais, que os
colarinhos já eram ”coçados”, de tanto uso e desgaste. Mas havia sempre uma
costureira habilidosa que sabia virar os colarinhos, e a camisa ainda fazia
mais uma estação. Quanto às gravatas eram apêndice quase obrigatório, para quem
tinha de trazer um fatito mesmo puído. Na verdade, fato e gravata era
indumentária universal para qualquer caixeiro, que tivesse deixado de ser
marçano, para o manga de alpaca do escritório que já não fosse paquete ou até
de um estudante do liceu, ainda que só tivesse os seus dez anitos. Pela
qualidade e estado do tecido é que se via a diferença do estatuto social. Um
fato de lã estambre com gravata de seda italiana já não era para qualquer um.
Lembro-me de no átrio da estação de S. Bento também se
venderem gravatas. O vendedor de gravatas trazia ao ombro todo o
mostruário. Não o descrevo porque a imagem seguinte vale mil palavras, ainda
que o vendedor ambulante desta imagem não fosse o da estação.
Naquela caixa de quinquilharias, certamente não faltavam, os
esticadores para as camisas e “os pentes para carecas”! Ah, também
tinham sempre espelhos. Redondos e simples que cabiam na palma da mão,
plastificados por trás, com uma figura do cinema ou do desporto. Para os mais
novos havia um espelho que do outro lado tinha impresso um campo de futebol,
dentro de uma caixa de vidro, com duas mini balizas e uma bolinha de chumbo.
Era o “telemóvel” de hoje – meter uns golitos para passar o tempo.
Agora vamos sair da estação e subir um pouco ali para a
esquerda, para sentir o linguajar tripeiro da Sé, ainda sem os turistas de
hoje. Não posso dizer que fosse um sítio recomendável, para o cidadão normal.
Quem lá ia, tinha as suas razões ou necessidades e naturalmente sujeitava-se a
ouvir do que não queria. Respingo mais um parágrafo do tal fórum:
«Para um rapaz serrano naquela época se habituar e
integrar-se no contexto da miudagem, amarelita, do Porto e do bairro da Sé, não
era lá coisa muito fácil.
Era segregado e escarniado por essa irreverente
traquinagem, tripeira. Correntes as frases pejorativas: “É pá olha o
parolo que veio de lá de “xima” da terra da coina! ”»
O tripeiro nunca foi bom imitador de sotaques, não ia muito
para além dos “xes”. O “cê” passava a ”xê”, como ”voxemexê xabe…”.
Na verdade, quem não é de cá também não nos sabe imitar. Bem
tentam arremedar, como dizia a minha avó, mas é tão ridícula a tentativa de
imitação do nosso sotaque que mais valia ficarem calados. Mas por outro lado, no
tripeiro de gema há sempre um tom irónico, às vezes até trocista. Se não se
intrometerem, nem damos confiança ao estranho, mas se “começarem a levantar
cabelo”, levam logo - está sempre a língua afiada. Na verdade, tudo isto é dito
em sentido figurado, sem nunca passar pela cabeça de ninguém, pensar no sentido
denotativo do termo ou da expressão.
«As vozes dos residentes, gente de parcas posses e “sem
pimenta na língua” a cada instante a palavra “caralho” era proferida gritada ou
moderada.
Ficou retida na minha memória a frase de uma mulher que
gritava lá de cima da casa, na rua dos Pelames, para o filho:
“Ó meu filho da grande puta quando chegar o corno do
teu pai vou-lhe fazer queixa de ti”.
Palavras inocentes, típicas e coerentes da arraia-miúda
tripeira!»
“Anda cá!
Olha que se te apanho, mato-te.”
Até na praia, vinha a ameaça … “Olha que se t’ afogas mato-te!”.
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