domingo, 9 de fevereiro de 2025

O Fogo de Santelmo ou Corpo Santo

 



Pedro Gonçalves Telmo, frade da ordem dos Dominicanos, nasceu nos arredores de Palência, à altura, reino de Leão, nos finais do século XII.

Reza a lenda que estando um dia, perto de Bayonne, a pregar a sua cruzada, contra os Albigenses, hereges do sul da França, para uma larga multidão, levantou-se uma forte tempestade. Os gritos de aflição do povo abafavam-lhe a voz. Foi então que Frei Telmo estendeu as mãos em direcção ao mar e ordenou ao vendaval que parasse. Estava feito o milagre e a partir de aí quando vinha uma tempestade, os homens do mar lá chamavam por São Telmo. Quando morreu, foi enterrado na catedral de Tui e como tinha um corpo sagrado, saía um óleo da sua sepultura, que curava feridas e todas as maleitas.

Ficamos assim com dois em um – o São Telmo e o Corpo Santo.

António Pigafetta que narrou as aventuras de Fernão Magalhães, na sua circum-navegação, diz: «Durante as tempestades, vimos muitas vezes o que a gente chama o Corpo Santo, quer dizer Santelmo».

Até Camões, no Canto V, viu o tal fogo.

«Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com alto cano,
Sorver as altas águas do Oceano
».

Conta a história que o nosso galeão S. Pedro, vindo de Londres, com vinte e sete homens a bordo, foi apanhado por um grande temporal no mar de Viscaya, que lhe causou grandes avarias e o deixou perdido três dias e três noites. «[…] um temporal como nunca tinha soffrido o navio nos partiu o mastro da proua e arrincou a velaria toda do mastro real e levou tambem os gáldropes prestadíos do leme e os porretoens do mesmo […]».

Por milagre, lá alcançaram Tui. Toda a tripulação foi descalça, rezar a S. Pedro e prometeu construir uma capela no Porto, se cá chegassem a salvamento.

A Confraria relata-nos o milagre, quando o gageiro subiu ao mastro real e pediu a protecção do santo:

«Mas tendo o gageiro Ignacio de Souza, home muito temente a Deos, subido ao mastro real para descobrir o Orizonte recorreu à protecç.am de S. Pedro Glvz. Telmo advogado dos navegantes e das nossas almas e logo a Sua Imagem nos appareceo no tope dos masttros com os pharoes accezos pello que cheios de Fé e coragem ligamos hus panos velhos do mastro mizeno acalmando-se o mar e bonança feita se descobriu terra e despois o vento de poppa constante nos levou todos cansados e alguns feridos arribados a Vigo ahonde desembarcamos e ao outro dia fomos todos em procissam descalsos pedindo esmola ao tumulo de S. Pedro a Tuy ahonde diante do seu Corpo Santo juramos cumprir o nosso voto e despois de concertado o navio ao mayor fizemos rumo ao Porto ahonde chegamos sem mais novidade no dia 20 de Dezembro da Era do Senhor de 1394 annos.»

A prece foi atendida e chegaram ao Porto a 20 de Dezembro de 1394.  Criaram uma confraria e cumpriram a promessa. Foram ali para os matos do baldio da Paixão (hoje Cais das Pedras), onde construíram a Capela com invocação a San Telmo, o frei espanhol que lhes valera – o Frei Pedro Telmo.

A Confraria das Almas do Corpo Sancto de Massarellos remonta assim a 1394 e os seus devotos foram olhando pela capela e pelos seus entes queridos. O Infante D. Henrique pertenceu à Confraria e ficou imortalizado no painel de azulejo das traseiras da actual igreja, que está voltado para a marginal do Rio Douro. O São Telmo tem honras de frontaria, no nicho central, envergando a capa negra dos Dominicanos, trazendo na mão uma chama azul, que representa o fogo-de-santelmo ou Corpo Santo.

A Confraria foi ganhando poder e a Mesa era composta por gente ilustre.  Angariavam rendimentos, com que iam melhorando a capela e até gastavam «na compra de lençóis de linho para embrulhar os cadáveres dos naufragados quando fossem dados à sepultura, como era de sua devoção.». A Confraria foi ainda proprietária de dois bergantinsEsmeralda e Nossa Senhora da Conceição – que receberam do Brasil, em cumprimento de uma promessa.

Durante o domínio Filipino, ocorreu um episódio trágico com estas embarcações. A Confraria foi intimada a entregar os barcos, para serem usados na armada contra os ingleses. Os membros da Confraria não queriam acreditar e quando «o nosso charo Provedor, a chorar deu parte da intimaçam sacrílega à marinhagem, todos Irmãos das Almas se revoltaram e queimando a bandeira philippina desertaram, jurando vingar as Almas da Confraria e ficou-se chamando despois ao Anchoradoiro a ”Praia dos insurrectos”». Escusado será dizer que lá veio a devassa e mandou prender o Juiz, o provedor e alguns mesários.

Nesta igreja, nos finais dos setecentos, também foram sepultados os corpos de afogados que chegavam a terra e mesmos outros naufragados, ainda que não pertencessem à confraria.

A capela com a imagem de Santa Maria da Boa-Viagem já com alguns séculos ameaçava ruir. Esta santa foi adotada pela freguesia com sua padroeira. A actual Igreja do Corpo Santo é a 3.ª reedificação. Tem a frente voltada ao Norte, sobre a antiga “Rua de Christêllo que era o caminho do Porto para a Foz do Douro”, hoje Rua da Restauração. A primeira foi uma pequenita Ermida construída naquele local sobre o rochedo que ainda hoje se vê, a segunda, um pouco maior depois de 1640 e a terceira e actual começada em 1776, serve de matriz à freguesia.

Uma curiosidade religiosa da Confraria era o “pão do fastio” – um pão benzido, muito procurado pelos homens do mar contra o enjoo e até pelas mulheres grávidas. Realizavam uma festa no 2.º Domingo de Maio - a festa do S. Pedro Gonçalves Telmo. Parece que terminou e hoje temos de recorrer aos comprimidos.

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