sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Torre da Marca ou do Pedro Docem

 

Imagem in Silva de História e Arte, de Magalhães Basto

Quem sai dos jardins do Palácio de Cristal, chega aos portões e vê uma torre medieval em frente, pensa tratar-se da Torre da Marca, se já dela ouviu falar e como aliás vem referenciada em muitos sítios. Para quem leu sobre este sítio, sabe que o Palácio foi construído no lugar da Torre da Marca.

Afinal o que era a “marca”, onde estava, ainda existe?

O que deu origem ao topónimo parece ter sido um pinheiro, que se avistava do mar e servia de orientação para os mareantes que queriam entrar na barra do Douro.

Vou buscar agora as palavras de Júlio Couto sobre esta árvore: «Um qualquer «boi» descascou-o, e ele secou, em 1534». Para quem não conhece o linguajar tripeiro, ele desambigua o “animal”, dizendo que é aquela nossa “expressão que se aplica a determinadas pessoas desprezíveis, sem o mínimo de dignidade – “um boi”. O crime foi de tal monta que El-Rei D. João III, em 1536, escreveu uma carta ao Juiz e Vereador da Câmara do Porto, ordenando-lhe que fizesse uma devassa para punir o culpado. Mas sigamos as sábias palavras do Júlio, «[…] deixemos lá esse “boi” em paz, e como dizia a minha avó, “que a terra lhe seja leve… com um calhau de setenta quilos em cima».

 Na mesma carta, enviou o rei os seus desenhos para construir uma “Torre de marca” no mesmo local. O Juiz reuniu os seus edis e deu-lhes conta da missiva de el-rei, dizendo «… se a obra fosse executada pelo debuxo de El-Rei não custaria menos de 600$000. Dissesse, pois, a assembleia donde este dinheirão havia de sair».

Parece que as finanças não andavam famosas e só em 1542, construíram um grande pórtico, uma baliza, para todos os navegantes que demandavam a barra do Douro, cuja despesa orçou em 30$000, vinte vezes menos, ehm? E durou quase três séculos.

Em 1833, os liberais montaram uma bateria por trás da Torre, para alcançar as posições dos adversários em Gaia. Estes ripostaram fortemente e os projécteis miguelistas derrubaram o pórtico; pouco depois a Torre da Marca foi completamente demolida. Parece que aproveitaram as pedras para a Capela do Rei Carlos Alberto, que construíram lá ao fundo da avenida.

 Todo este sítio ficou assinalado nos mapas como Campo/ Largo da Torre da Marca. No recorte da Planta Redonda de George Balck, publicada em 1813, nota-se bem no canto inferior da imagem a posição da tal Torre da Marca. Um edil ainda lhe mudou o nome para Campo do Duque de Bragança, mas a construção do “Crystal Palace” fez esquecer os topónimos.


Voltando novamente aos portões do Palácio de Cristal e ao recorte do mapa, vemos que a rua em frente ainda era “dos Quartéis” e nela estão assinalados dois edifícios em U, um em baixo, numerado como XXII e outro acima dos quartéis, o XXI. Podemos ler na legenda do mapa que se trata, respectivamente da Casa de Brandão e do Paço Moraes e Castro. Este último, denomina-se hoje Palácio da Carrancas e alberga o Museu Soares dos Reis. A sua história fica para outra ocasião.

Preocupemo-nos agora com o edifício assinalado com o XXII – a Casa de Brandão. É o tal palacete brasonado, contíguo à Torre medieval, tantas vezes referenciada como Pedro Cem ou Pedro Sem ou diria eu, melhor ainda, Pedro Docem.

Parece que há documentos do século XIV a falar de fidalgos que estarão na linhagem dos primeiros proprietários da Torre. Parece que um tal Martim Docem foi um cavaleiro vindo de terras de Aragão, no séquito da Rainha Santa Isabel, e um filho seu, Pedro Docem (ou Pêro do Sem) também foi cavaleiro da Casa Real. Dizem que a construção da tal torre ocorreu entre 1336 e 1341 e que a este filho se deve, já no reinado de D. Afonso IV, a quem o cavaleiro também serviu, como chanceler-mor. Mais de um século depois, a Torre ainda estava na posse de descendentes da família dos Docem ou do Sem.

Em 1492, a propriedade é finalmente vendida à família de um fidalgo castelhano, João Sanches, que casou com Isabel Brandoa. Começam assim a aparecer os Brandões, que vão dar nome à casa, nos séculos seguintes. Especialmente dar nome à residência que vão construir, adossada à torre, a partir de meados dos setecentos. Ainda hoje, olhando para o palacete vemos sete janelões avarandados e o brasão dos Brandões por cima da porta de entrada. Nas outras fachadas não faltam janelas, mais de uma dúzia. Mas hoje a casa é conhecida como o Palácio dos Terenas e Monfalim. Na verdade, em 1814, um Brandão casou com uma filha herdeira do 1.º Conde e 1.º Marquês de Terena e assim se abre mais uma linha “dinástica”. Outro descendente alia-se aos primeiros e únicos marqueses de Monfalim. Já no século 19, uma união sem descendentes, obriga a que o palácio seja deixado a duas sobrinhas, uma delas irmã Doroteia, que só faleceu em 1937. Antes disso, o palácio foi vendido pela primeira vez.  Acho que não às Doroteias, mas mesmo à Diocese do Porto, para residência do Bispo.

Estavámos nos princípios da República e a Igreja não aceita as ordens do governo, e quer proclamar a “Pastoral do Episcopado Português”. O bispo do Porto, D. António Barroso à data, desobedeceu e o próprio Afonso Costa, mandou-o prender, e foi condenado ao exílio da cidade do Porto, renunciando ao cargo. Entretanto é publicada a Lei da Separação do Estado das Igrejas, que previa a nacionalização de bens da igreja.

A Câmara do Porto apropriou-se da residência bispal, o Paço Episcopal, na Sé. O sucessor D. António de Barbosa Leão, ainda foi para uma casa alugada na Quinta de Sacais, perto do Liceu Alexandre Herculano. Os seguintes, D. António Augusto de Castro Meireles, D. Agostinho de Jesus e Sousa, D. António Ferreira Gomes e o seu substituto, D. Florentino de Andrade e Silva, todos eles tiveram mais sorte – foram viver para o Palácio dos Terena e Monfalim. Somente em 1964, o Paço Episcopal foi devolvido e esta casa teve novas valências.

Deixo propositadamente para o fim a história muito mais rocambolesca do Pedro Sem. A lenda do tal que acabou a pedir esmola pelas ruas – “Dê uma esmolinha a Pedro Sem, que teve tudo e agora nada tem...". A grafia o apelido merece ela própria um tratado, de Pêro Sem, a Pedrodassem, a Pedro Sem, a Pedro Dacem ou simplesmente Pedro Cem, muito documento haveria que investigar. Da minha memória, deixo uma das últimas salas de cinema, construídas em empreendimentos imobiliários, aqui em frente, um pouco mais abaixo, na rua Júlio Dinis. Chamava-se Cinema Pedro Cem. Mas comecemos a história.

Da tradição oral, à letra de forma da banda desenhada e livros infantis, ao folhetim de cordel, das abordagens mais ligeiras a estudos mais aprofundados, a tudo Pedro Sem deu forma.

Embora seja muito conhecida, deixo aqui só uma síntese das muitas versões que desde os oitocentos passaram pela imaginação do tripeiro e não só. Destaco também três nomes ligados à história do Porto, que a ela não fugiram. Joel Cleto que a apresenta num dos seus livros de lendas, Júlio Couto, que a ouviu contada pela avó e “viveu-a” de perto, porque morava no início da rua e Hélder Pacheco que fez uma análise sociológica da gente do Porto ao ‘recontar’ a história. Deixo de fora as réplicas “netícias” de hoje que são um somatório de “copy-paste’s” sem interesse.

Vamos ao âmago – Um homem que enriquece desmesuradamente, trata mal o seu semelhante, não tem compaixão do outro, “só vê dinheiro”, mas quer comprar o “sangue azul” porque o dele é vermelho. Dizem que…, li que…, ouvi dizer que… (como diz o Pacheco) que o homem viveu no tempo da pimenta vinda das Índias, das “terras” preciosas e outras valias transportadas pelo mar.  Quando o sangue estava quase a ficar azul, porque um nobre lhe prometera a filha, em troca da remissão das suas dívidas, eis que Pedro sobe ao alto da Torre para “menar” os barcos que nunca mais chegavam com o último carregamento das riquezas. Cleto e Couto até “justificam” o apelido com o número de barcos – nem mais nem menos do que 100 ou Cem, para justificar a grafia. Mas que  frota…

Ao ver os primeiros, Pedro não resiste e desafia Deus: «Agora, mesmo Deus querendo, eu não posso ficar pobre!».

A partir daqui a história é como as fábulas, tem de encerrar com a uma lição de  moral.

Há um concílio de Deuses. O dos mares afunda-lhe toda a companha e o deus das “trabuadas” e dos raios fulmina-lhe a Torre, deixando-o só e abandonado no meio das pedras.

Mas como escapou ileso, ainda teve de passar o resto da vida a penar ou seus pecados, pelas ruas – «Dê uma esmolinha a Pedro Sem, que tudo teve e agora não tem».



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