segunda-feira, 24 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - parte II (despertar no Porto)

 

A vida de Camilo, aos dezoito anos, como estudante no Porto, foi uma estúrdia. No entanto começou bem. Um documento da Escola Médico-Cirúrgica do Porto comprova a «aprovação pela maior parte» (?) no exame das disciplinas da 1.ª cadeira do curso de Medicina. Camilo inscreveu-se em Outubro de 1843, quando veio viver para o Porto e ainda teve aproveitamento, neste primeiro ano. O segundo ano não foi concluído “por falta de comparência”.

Começou a vida de boémia. Desde as tertúlias de café, à paródia de um duelo na Torre da Marca, pretendendo bater-se à pistola, por ciúmes de suposta Dulcinea, dos ‘botiquins’ aos teatros, das danças às aventuras amorosas, o tempo não chegava para tudo. Além disso, começou a surgir o “dinheiro imediato” do folhetinismo que o atraiu e dos periódicos da cidade que gostaram da sua escrita, a retratar e criticar o Porto oitocentista.

O seu Porto que tanto lhe deu, foi muito maltratado na sua obra. Santos da casa não fazem milagres. Alguns sítios por onde passou não foram os melhores. Desde a residência na Rua Escura, que Camilo descreve como “um bairro fétido” até aos calabouços do aljube que lhe deram pano para muita novela, (recorde-se “O Amor de Perdição”, “José do Telhado” ou os dois volumes das suas “Memórias do Cárcere”) não obstante o que por lá passou.

 Como os estudos não prosseguiram, a família pede-lhe o regresso a Vila Real. Sem a animação da grande cidade, procura por lá e encontra nova paixão, em 1846. Cai de amores por uma prima - Patrícia Emília de Barros. Daí resultou um rapto romântico com fuga dos amantes para o Porto.  O tio da rapariga arranja uma alçada e Camilo é preso pela primeira vez. Foram sete dias de reclusão que ele recorda nas «Memórias do Cárcere»:

«Em 1846 estive eu preso ali desde 9 até 16 de Outubro. Foram sete dias de convivência com sujeitos conversáveis que entraram comigo ou poucos dias antes.»

No ano seguinte, morre a primeira mulher em Friúme e o infortúnio bate à porta, em 1848, com a morte da filha Rosa.

Nesse mesmo ano, nasce Bernardina Amélia fruto da relação de Camilo com Patrícia Emília. Mais tarde, Bernardina entra para um “colégio” – vai ficar aos cuidados de uma freira D. Isabel Cândida Vaz Mourão, do Convento de S. Bento da Avé Maria.

Camilo fixa-se no Porto e começa a ganhar dinheiro como folhetinista e com os primeiros escritos polémicos. Integra grupos literários, como o dos “Leões” no Café Guichard e vai publicando no Nacional e no Periódico dos Pobres.

A importância do Guichard ficou imortalizada numa das quatro pinturas a fresco, do portuense Dordio Gomes, na varanda da escadaria dos Paços do Conselho do Porto, onde Camilo aparece com um fundo boémio e a menção ao “Café Guichard”.


Comerciantes, clérigos e fidalgos vão percorrer a sua pena afiada ao longo de muitos livros. Podíamos começar pela Rua das Flores, onde aquela elite comercial foi inspiradora para os “Os Brilhantes do Brasileiro”.

Em “A Filha do Arcediago” troça do sr. António José da Silva, um dos mais abastados mercadores de panos da rua. O Arcediago do Barroso não é melhor retratado. O João Retroseiro tem de defender a honra da família. O filho dele é adjectivado pela amiga de uma possível namorada:

«Não contes a ninguém que foste namorada desse pazbobis. Ele é um patego, um pagano, um gebo, um lapardão».

A classe eclesiástica nunca foi poupada. Em “O Retrato de Ricardina”, «o Abade de Espinho pecara na mocidade. A serpe tentadora fizera-lhe o salto do pescoço de uma bela mulher, onde a mensageira de averno se enroscara.»

A fidalguia e os políticos foram postos ao léu. Numa carta. Refere-se por exemplo a José, um dos irmãos Passos, figura política de relevo:

«Não fales ao José Passos no meu negócio, […]
velhacamente se me ofereceu, para entrar nas minhas intencoens, a vingar-se duns quatro artigos em que o empalhei no Nacional.»

«É a senhora Viscondessa de Gandarela que a mãe não conhece nem eu, senão de saber que são cem os pretendentes a renovar-lhe as delícias do casamento.»

Mas voltemos um pouco atrás, deixar passar trinta anos após o Vintismo, período em que ocorreram revoltas, guerras, o cerco, lutas partidárias, ficando para trás a Maria da Fonte e a Patuleia, para chegarmos a 1850, altura em que o Porto Romântico emerge em força.

O comércio chic floresce na rua dos ourives, dos Clérigos e de Santo António, onde as damas e os cavalheiros encontram as novidades estrangeiras, para as irem exibir, no Jardim de S. Lázaro, nos bailes, no teatro ou até no Pasmatório dos Lóios. Surgem as assembleias e as associações que promovem os chás dançantes e os serões literários onde os poetas mostram os seus dotes. O teatro atrai o Porto elegante e dividem-se os admiradores da Dabedeille, ídolo dos Patuleia ou da Belloni, de quem os cartistas são fãs. Juntam-se as cantoras e as bailarinas estrangeiras, que no final dos espectáculos acompanham os seus admiradores, noite fora.

As beneditinas, as clarissas e outras noviças também faziam as suas festas – eram os famosos oiteiros ou as abadessadas. Afadigavam-se a gastar os ovos lá da cerca, na confecção das delícias doces com que cativavam os dândis que glosavam a suas deixas. Eram os jogos florais, em que os poetas esperam sempre mais.  Nesses dias, podiam entrar no convento e não ficar apenas pela grade. Parece que em noites escuras quando o “óleo da purgueira” iluminava os caminhos, os mais atrevidos arriscavam as escadas de corda, ali na Rua do Loureiro, junto à antiga Estalagem do Cantinho, para os assaltos à “fortaleza”.

Faustino Xavier, amigo de Camilo, glosou assim a deixa de uma monja: “No açafate da costura /Se escondeu agora amor”

Se eu pudesse em noite escura
Ser por ti agasalhado
Dormia mesmo enroscado

No açafate da costura;
E se lá dessa clausura
Fora me quisessem pôr,
Tu dirias: - Não senhor,
Não toques nesse cestinho
Que lá dentro encolhidinho

Se escondeu agora amor.

Camilo era visita frequente das “abadessadas” de São Bento e também por lá se enamorou da tal freira, Isabel Cândida, com quem manteve relações íntimas. No “Torturado de Seide”, Alberto Pimentel tem vários relatos da senhora, que conheceu por também ter sido professora de uma sua prima. Citando-o «D. Isabel conversava com animação e espírito, contando casos do convento e casos da cidade, como se conhecesse estes tão bem como aqueles.»
Tal comportamento interessava a Camilo. Já diz o rifão popular “quem não sai de casa, não tem que contar” e Camilo precisava de temas para os seus folhetins e para as suas novelas e os episódios amorosos dos mosteiros eram apetecíveis.

Pimentel quando conheceu Isabel Cândida achava que «a freira era velha e feia, trigueira, angulosa e alta, tinha a voz forte, um nariz respeitável e sombras de buço. Não achava que aquela mulher tão balda de encantos feminis, pudesse haver inspirado atenções afectuosas a um homem vulgar. Quanto mais a um homem superior, tal como Camilo Castelo Branco».

No entanto, diz-nos onde encontrar a confissão de Camilo sobre estes seus amores. Precisamente nas “Cem Cartas”, que Xavier Barbosa compilou. Numa carta de 17 de Agosto de 1855, Camilo escreve:

«D. Izabel Candida com quem me congracei por uma celebre eventualidade, quer passar um mez nas vizinhanças de Vianna, e dáhi fazer ao Minho alhumas excursoens. Segundo os estatutos monásticos não pode estancear se não de passagem em estalagens, e não pode residir. Quer ella, portanto, uma casa mobilada, simplesmente  […]»

Noutras cartas, que escreve a esse grande amigo de Viana, Camilo confessa as dificuldades que teve de se afastar dessa mulher: «D. Izabel soffre… parece que profetiza. Há de ser-lhe muito penosa a minha sahida, mas é força transigir. Eu aqui asfixio».

Já que estou “com as cartas na mão” reconto as alegadas relações que o romancista teve no Porto com uma actriz chamada Isaura:

«dentro de um mês, em Junho de 1857, já Camilo se julgava flagelado por ela; di-la importuna e louca; ele vai romper; finalmente. “A Isaura aceitou com mais resignação que eu supunha as gemonias. Fallou em veneno, que penso pós-de-ratos. Depois, ou ella tem estomago de Mithridates, ou uma rasão bastantemente illustrada para continuar a viver. Estou contente com o desfecho

Novas cenas no próximo episódio.

Continua

P.S. por causas destas últimas palavras camilianas, deixo dois desafios. O primeiro, descobrir as aventuras do Rei Mithridates e as sua mézinhas de antivenenos, o segundo, o melhor significado para “gemonias”.



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