Em meados de 50, a vida começa a melhorar, Camilo já não dorme na “fétida” Rua Escura e era agora comensal– na Hospedaria Francesa, hoje Grande Hotel de Paris, na rua da Fábrica do Tabaco. Este hotel ficava perto da Praça Nova e do n.º 28 da Rua do Almada. Hum…
Voltemos a novos amores e aos sítios de animação nocturna. É
um baile fatal, onde Camilo conheceu Ana Plácido. O baile ocorreu na
Assembleia Portuense, associação de recreio e especialmente de dança, onde os
olhos de Camilo se cruzam pela primeira vez com Ana Plácido antes de 1850. Começa um doloroso e prolongado romance. Ela
tinha dezanove anos, ele vinte e cinco, e mais tarde Camilo escreve sobre esse
dia:
«Quando te vi num baile, ó flor aberta às auras,
qual donzel medieval, pudibundo, corei!
Eu vago sonhador das legendárias Lauras
erguer a ti o olhar só mal a custo ousei…»
Quem não tinha qualquer pejo em olhar para ela, era Manuel
Pinheiro Alves, um cinquentão, morador na Rua do Almada, lá para cima, no n.º
378. Nessa época, as raparigas ao fim do dia, quando já não tinham luz para os
bordados, vinham para a janela, mostrar-se. A Rua do Almada ganhou direito à
alcunha de «rua das meninas bonitas». Para o n.º 28, tinha-se mudado da
Praça Nova, a família Plácido. Duas beldades havia nesta casa – A Antónia
que viria a ser esposa do Ferreirinha e a irmã a Aninhas Plácido.
Pinheiro Alves passava e tentava seduzir a donzela com a sua fortuna. Os
burgueses, solteiros e abastados da cidade, eram o terror dos jovens
apaixonados. O dinheiro deles falava sempre mais alto e por isso “sacrificava-se
uma rapariga a um velho” – eram os ” mariages de raison”.
Camilo aqui era o jovem apaixonado a tentar a sua sorte, mas
o ideal da família Plácido era casar bem a filha dentro da mesma classe.
A 28 de Setembro de 1850, dá-se o enlace na capela da quinta de Villar de
Allen, em Campanhã, longe dos olhares da gente da Baixa.
Na véspera, perante o tabelião lavrou-se a escritura, «a
formosa Ana Augusta, que completa hoje 19 anos, recebe de seu pai Plácido Braga
e mulher, o dote de 3:200$000 reis e de Manuel Pinheiro Alves, o noivo que a
dota com 8:000$000 reis» […
modestíssimo pretium virginitatis, que não correspondia nem à
beleza da noiva, nem ao entusiasmo do outorgante, mas representa o instinto
comercial do Porto …]. No linguajar comercial “comprar o corpo de
uma mulher perfeita por oito contos era um bom negócio”.
Após este casamento, Camilo vive anos atormentados, desvairado
de paixão, foge para Lisboa. Regressa, torna-se ainda mais brigão nas noites do
Porto, com lutas que até tiros envolveram, com doenças constantes, somáticas e
psicológicas. Uma crise de misticismo, leva-o mesmo a inscrever-se no Seminário
e querer seguir a carreira eclesiástica.
Solicita a concessão de ordens menores, conforme se lê no
documento seguinte;
«Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor:
Diz Camilo Castelo Branco, filho natural de Manuel José Botelho Castelo Branco,
nascido na freguesia de Santa Justa em Lisboa e residente na da Sé Catedral
desta cidade, que tendo sincero desejo de abraçar a vida eclesiástica, e tendo
obtido breve apostólico de compatriotado, pede a Vossa Excelência a graça de o
admitir a exame, e ficando aprovado, dar-lhe os Quatro Graus de Ordens Menores.
Espera receber mercê».
E o despacho:
«Admitido a tonsura e aos quatro
graus de ordens menores; e examine com os muitos reverendos padres mestres
das aulas deste Paço.
Paço Episcopal do Porto, 13 de Março de 1852».
É Alberto Pimentel que nos relata o desfecho deste
misticismo:
«[…]o artista resistiu ao teólogo»; e ei-lo de novo na vida
livre, desordenada e caótica, acalmando a sede abrasadora de amor que o
queimava nos
braços duma rapariguinha com quem viveu no Candal.»
Aos amigos escreve sobre as suas maleitas:
«Escrevo-te doente. Em quatro dias tive uma bronchite, uma
indigestão, uma ameaça de gonorreha inveterada, e uma febre que vaticina sezão.
Não tenho cabeça para escrever.»
Ana Plácido não lhe saía da cabeça e era a razão destes
comportamentos. Finalmente ela cede ao seu amor após sete anos de torturas e
desejos. Foge com o filho do marido e vai com Camilo para Lisboa. Vão e
voltam, escondem-se por outras terras.
A praça do Porto revolta-se. Um comerciante de bom nome,
homem de bem, brasileiro de torna-viagem não pode ser receber a humilhação do
adultério sem se revoltar. A classe, solidária e católica, incentiva o colega à
denúncia, ele apresenta a “querella” e começa o processo.
Num tempo em que ainda não tinham surgido os pasquins
sensacionalistas, nem chegara a Portugal a “reportage” ou a “Interview”,
o Nacional, jornal de esquerda dá a notícia, em 8 de Junho de 1860:
Prisão
– Ante-hontem de tarde foi presa e entrou na cadéa da Relação a ex.ma
snrª. D. Anna Plácido Pinheiro Alves, esposa do sr. Manuel Pinheiro Alves.”
Entretanto Camilo que andara num jogo de escondidas, por
casas da família e de amigos em várias terras, (como “em Fafe ninguém fanfe”
passou dois meses na Casa do Ermo, em Passos, Fafe). Depois, decidiu entregar,
porque os aguazis não o largavam.
Em 1 de Outubro de 1860, o Nacional dá a seguinte notícia:
«Apresentou-se hoje no tribunal competente o sr Camillo Castello
Branco, requerendo mandado de prisão para recolher à Relação a seguir
os termos de livramento, na querella dada contra elle pelo sr Manuel
Pinheiro Alves.»
Segue-se pouco mais de um ano de prisão efectiva e o
“livramento” de ambos surge por falta de provas (parece que não houve
testemunhas de os terem vistos juntos na cama) e, perante uma brilhante defesa
do advogado Dr. Marcelino de Matos, o juiz, pai do escritor Eça de Queirós,
absolveu-os em 16 de Outubro de 1861.
As “transumâncias” continuam. O casal agora livre de culpas
vai viver dois anos para Lisboa.
Seria um tempo de paz e um dos primeiros romances aí
escritos por Camilo foi o “Amor de Salvação”, título contrastante com o
“Amor de Perdição” que ele escreveu na prisão e quer esquecer, acerca
desse tempo escreve mesmo:
«Passei lá os mais atormentados anos da minha vida. Tão
horrorizada tenho deles a memória, que nunca mais abrirei o livro o “Amor de
Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras.»
Em Lisboa, nasce o filho Jorge, em 1863. Manuel já tinha 4
anos, era filho de Ana Plácido e o pai seria o marido ou porventura Camilo? Não
havia ainda testes de paternidade…
No mesmo ano, em 15 de Julho, o marido de Ana Plácido morre
desgostoso, num hotel, em Vila Nova de Famalicão.
No Outono desse ano, Camilo e Ana Plácido mudam-se para a
casa de S. Miguel de Seide, que tinha sido mandada construir por Pinheiro
Alves em 1830, quando regressou do Brasil. A casa, por partilhas, ficou para o
filho Manuel.
A produção literária acentua-se nos primeiros anos da estada
em Seide e também Ana Plácido fortalece a sua veia artística.
A D. Ana Plácido, esta “mulher perfeita”, teve também vida
literária, primeiro, às escondidas, sob anonimato e pseudónimos, depois com
nome no frontispício das suas obras. Foi grande poetisa e boa tradutora.
Alberto Pimentel dedica-lhe grande parte de um dos seus livros.
“Martyrios Obscuros” uma história de amor infeliz foi
publicada na Revista Contemporanea de Portugal e Brasil, cuja assinatura
se velava no segredo destas duas letras A. A.
Mais tarde, veio a lume “Horas de luz nas trevas d’um
cárcere”, com o mesmo mistério daquelas letras iniciais A. A. e que
viu a luz num folhetim do Nacional. As críticas são muito favoráveis,
mas o autor não é revelado, diziam que era um segredo que o “chronista” e agora
o folhetinista guardaram e pedem paciência aos leitores para lhe concederem
esse privilégio.
Mas a máscara começa a cair – um diz: «A. A. é
talentosa e mártir; formosa e infeliz; estivera algumas vezes em Lisboa e da
última partira sufocada em lágrimas.» Os jornalistas e os homens de letras
sabiam de que dama se tratava.
«A bela dama malfadada jazia entre ferros» este seria um
decisivo fio condutor para o descobrimento da verdade, se alguém pudesse
ignorá-la ainda».
A dama por esta altura esta presa no aljube e falava de
si mesma, não para se vangloriar nem para conquistar a piedade pública, mas
para convencer as mulheres incautas de que o maior castigo do adultério… é o
próprio adultério.
A chave do enigma vou deixá-la por revelar. Seria a Ana
Alves, senhora casada ou simplesmente a apaixonada Ana Augusta?
Datando algumas obras, “Luz coada por ferros” foi
publicada em 1863. ”Adelina”, um romancesinho, que começou a ser
publicado no Nacional, em 1860, com o título “O mundo do doutor
Pangloss”, é a história dos dois amantes – Henrique é Camilo; Adelina
é Ana Plácido. Em “Meditações”, inicialmente publicado no Aheneo
(revista mensal de Coimbra) Ana Plácido fala de si mesma. O mesmo aconteceu em
“As portas da Eternidade”, publicado na revista Futuro.
Sob pseudónimo Pedro de Souza, (os nomes masculinos
eram mais bem aceites pelo público) escreveu em 1871, o romance “Herança de
lágrimas”.
O pseudónimo também era utilizado nos trabalhos de tradução,
como prova um documento da Ernesto Chardron, onde se pode ler:
«A Ex.ma Snr.ª D. Anna A.
Plácido, viúva de Camillo C. Branco, nas traducções que fez para a casa
Chardron, usava o nome de Lopo de Sousa, como podemos comprovar pelos
recibos da mesma senhora.»
Voltando a S. Miguel de Seide, faltava a legalização do
estado civil dos amantes, que teria de esperar até Março de 1888. Além disso, este
tempo de paz começa a ser tempo dos três DDD - doenças, desgostos e desgraças
na família. Em 1864, nasce-lhes o filho Nuno, que mais tarde, muito
contribuiria para estes três DDD, com a sua vida de boémio, mulherengo, à
pancada nas feiras, nos lupanares…
O filho Manuel morre-lhes aos 19 anos, talvez com meningite.
Os problemas visuais de Camilo agravam-se. Parece que
começaram após um acidente de comboio entre Ermesinde e S. Romão. Começaram com
uma cegueira nocturna e ele escrevera a um amigo:
«Estou
outra vez de cama. Receio muito um novo incómodo nos olhos.»
«Os meus olhos não aturam
muito tempo, São syntomas da diplopia.» e mais tarde diz:
«Foi muito
grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado que é
efeito do venéreo inveterado. Sofro há quatro meses uma diplopia (visão dupla)
[…] mas, valham-me
as esperanças de não cegar, porque isto importava um inevitável suicídio.»
Estamos próximos do fim…
Em 1 de Junho de 1890, o conceituado oftalmologista de
Aveiro, Dr. Edmundo de Magalhães Machado visita-o em Seide e não lhe dá “as esperanças”.
“Quando ele saiu, Camilo tacteou o seu velho revólver
bull-dog. Encostou-o ao parietal direito, segurou-o com a mão esquerda para
evitar um possível desvio, e disparou firme.
Às cinco horas expirava.”
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