sexta-feira, 21 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - parte I (primeiros anos)

 


Nesta data de celebrações do ducentenário do nascimento de Camilo (nasceu em Lisboa, a 16 de Março de 1825), vou apropriar-me de algumas ideias mais ou menos curiosas sobre o nosso escritor, espalhadas por escritos de vários camilianos.

Começando pelo nascimento, “Camilo é um transmontano em Lisboa por acaso”. Embora se saibam os nomes dos progenitores, (pai - Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco e mãe - Jacinta Rosa do Espírito Santo) o pai perfilhou-o em 1829, como filho de mãe incógnita. 

Aparecem várias versões sobre a identidade da mãe, supondo-se mesmo que seria uma criada do pai e pela sua condição inferior, a família não a querer reconhecer. No entanto, há um pormenor pouco estudado sobre o nome de Camilo – donde vem o “Ferreira”? Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco – os três últimos apelidos são do pai, e o 'Ferreira'? Há biógrafos que atribuem o apelido à Jacinta Rosa.

«Tão incógnita que nem Camilo a conheceu, pois que ainda o futuro romancista não tinha dois anos de idade, quando ela se despediu do mundo, deixando-o no berço sem o amparo do seu calor».

Camilo, ao longo da sua obra vai-nos recordando as suas coitas de infância:

«Eu nunca tive seio de mãe onde encostar a cabeça»
«Oh meu anjo de amor que me deixaste/ No meu berço a chorar
»

Aos 9 anos, perde o pai que se despede do filho com estas palavras que o escritor recordará nas «Duas Horas de Leitura» com profunda emoção:

«Que será de ti meu filho sem ninguém que te ame.»

Parece que as palavras de despedida, antecedem o provável suicídio do pai, mencionado numa carta que Camilo escreve em 1859: “No dia 19 deste mês decorrem 24 anos que o meu pai se suicidou”.
E aí está Camilo aos 9 anos de idade órfão de mãe e de pai, em companhia da irmã Carolina, um pouco mais velha, e com os cuidados da criada Carlota Joaquina.

Camilo volta às berças, vai para Vila Real, ao cuidado de uma tia paterna Dona Preciosa Rita Castelo Branco que nos vai aparecer como personagem no “Amor de Perdição”, bem como o seu irmão Simão Botelho.

Recordo que esta casa seria a Casa dos Brocas.  Camilo, quer ridicularizar a fidalguia do seu sangue e diz-nos que o epíteto porque eram conhecidos – “os Brocas” (que até serviram de mote para Mário Cláudio escrever “Camilo Broca”), ‘vinha de broa’. A rudeza de Domingos Botelho, desembargador que casou com a Dona Rita, devia-se ao facto de ele ter comido muito pão de milho. Há pouco tempo passei por lá, para admirar as varandas das janelas, que teriam sido oferecidas pela Rainha D. Maria I. A Dona Rita vinha de Lisboa, habituada aos palácios reais e foi viver para uma casa dos Correia Botelho, onde até “tinha medo das ratazanas”. O fidalgo teve de fazer obras na casa e valeu-se da ajuda real, que as economias da família não chegavam. A tia, hierática e miguelista, suspeitando que tivesse havido mistura de sangue plebeu com o dos Correia Botelho, não quis dar grande importância ao sobrinho, tratando-o com secura e indiferença. Recorde-se, no entanto que, anos mais tarde, Camilo vem evocar a sua costela fidalga, para o rei D. Luís lhe atribuir o título de Visconde de Correia Botelho.

Com 14 anos de idade, Camilo muda-se para uma aldeia, perto de Vila Real – Vilarinho de Samardã, para viver na casa de uma família Azevedo, visto que a irmã casou com um quartanista de medicina desta família. Camilo tem nesta casa um grande tutoro Padre António Azevedo, irmão do cunhado.O Padre ensina-lhe Latim e cantochão. Camilo reza com ele, ajuda-o na missa e tange-lhe o sino do presbitério”. Aprende as declinações da arte francesa e lê os primeiros livros - Peregrinação e Os Lusíadas.

Tão boas recordações Camilo teve deste padre, que anos mais tarde, dedicou-lhe o seu livro “O Bem e o Mal”.

ao
padre antonio de azevedo

Nome que os pobres, seus irmãos, reverenceiam (sic), e os enfermos da alma abençoam;
ancião virtuoso; operário infatigável em serviço de Deus e da Humanidade

Oferece este escripto

O Auctor

Relembra-lhe o passado há 23 anos:


«Lembra-se d’aquelle incorrigível rapaz de quatorze annos, que ia à venda da serra do Mezio jogar a bisca com os carvoeiros e à bordoada, muitas vezes?
Esse rapaz sou eu; é este velho (eu digo tinha 37 anos) que lhe escreve aqui do cubículo de um hospital, muito vizinho do cemitério dos Prazeres […], passados vinte e três annos, como eu acabasse de escrever o meu quadragésimo segundo volume […]».

Deste introito ressalto dois pormenores – a doença de Camilo com as suas deslocações a Lisboa e também a vasta obra que já somava por esta altura – Tinha-os contado – 42 volumes!

Fechado o parêntesis, voltemos ao norte.

Por amores ou desamores, Camilo saltimbancou por várias terras de Vila Real ao Porto, com idas a Coimbra e à capital, mas foi pelo norte que a sua vida e obra mais floresceu.

Os seus amores “de perdição” conhecidos são mais do que os dedos de uma mão. Começaram os amores pela Luísa dos Santos– “uma flor de entre as fragas, donairosa camponesa”- de Vilarinho.

Um dia, a tia Rita leva-o a Friúme, Ribeira de Pena, em passeio, e não é que o rapaz se vai logo enamorar de uma moçoila. «É uma camponesa sólida, refor­çada, morena, alta dos peitos, aquela que pouco tempo depois viria a ser a primeira esposa de Camilo».
Ele tem 16 anos. A noiva, Joaquina Pereira, 15.
É um amor de crianças e um casamento de adolescentes”, mas visto com bons olhos pelo futuro sogro — um merceeiro calculista que vê nele um bom futuro herdeiro. Do enlace nasce a filha Rosa, em 1843. Camilo ainda faz amigos lá pela taberna, a jogar cartas, mas é ave de arribação.

Numa visita a Samardã deixa-se prender pelos encantos de Maria do Adro, linda camponesa do lugar. 

Camilo assim a descreveu:

«A Maria do Adro era a filha duma viúva pobre. Tinha 17 anos. Fora bonita até aos 15; depois uma enfermidade grave emagreceu-lhe a face, amareleceu-lhe a pele, sugou-lhe a seiva que viçava em flores por todo aquele rir e olhos de descuidosa inocência».

Deste amor, conta-se uma história macabra.  Numa visita de volta à aldeia tem um diálogo estranho com umas moçoilas:

«- Como estão vocês, rijas, hein?
- Como um ferro, graças a Deus. Então já sabe?
- O quê?
- Pois não sabe que a Maria do Adro…
- Que tem? Está doente?
- Está com Deus … Morreu faz amanhã um mês.»

Parece que vinte e quatro horas depois Camilo, foi à nave da igreja desenterrar o cadáver, por ideia do cunhado. Os pormenores vêm descritos no seu livro “Duas horas de leitura”.  O macabro episódio valeu a Camilo oito dias de febril delírio. Abstenho-me de o relatar, porque o Padre Mestre disse:

«Diz minha cunhada que muitas pessoas desta família endoudeceram. ..»

Já agora faço um parêntesis sobre a “verosimilhança” na escrita de Camilo. Ele próprio achava que era preciso mostrar uma verdade que convença o leitor. Camilo é um dos escritores que consegue enganar o leitor, entre aquilo que é o real e o que é a ficção. O rifão popular é mais directo – “todo o burro come palha, é preciso é saber-lha dar”.

Continua

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