Com o
Entrudo à porta não sei quais as memórias mais marcantes, se as religiosas, as
pagãs ou as gastronómicas.
Começando
pelas primeiras, o que se temia não era o Carnaval, era o que vinha a seguir,
começavam logo com as Cinzas e impunham-nos regras de quarentena – entrou a quaresma.
Conhecíamos a palavra “abstinência”
logo pelo menu da cantina - nas próximas sextas-feiras não se come carne.
Parece que os adultos também tinham de cumprir essa coisa da “abstinência”– os
homens não podiam dormir com as mulheres – era pecado. Andava tudo mortificado,
excepto aqueles que tinham dinheiro para comprar a bula. Nunca a vi à venda lá
na mercearia da terra.
O melhor é
falar da folia, que aquilo eram três dias e depois acabava tudo. Até as férias
da escola – 2ª,3,ª e 4.ª, acabou a festa.
Nos
arredores aqui da cidade a folia não era grande. Ouvia-se falar de Ovar, dos grandes
cortejos, mas por cá passava-se a terça-feira a ver os mais corajosos, que se
vestiam de mulheres, ou se disfarçavam sem dizer porquê e passeavam ali pela
rua. Então o pagode ria-se, atirava-lhes umas serpentinas ou uns confetis,
regados com umas bisnagadelas. Começaram a aparecer as bisnagas de plástico, em
forma de bananas ou pistolas. Para quem não tinha dinheiro, já havia umas
garrafas de plástico do vinagre que também esguichavam.
Para os mais
atrevidos e com tostões para gastar, vendiam-se por esta época, produtos
“proibidos” no âmbito escolar, mas que fugiam muitas vezes à fiscalização. O
mais temido eram “as bombinhas de mau cheiro”.
Recordo a caixa de cartão cinzento, em que o homem da tabacaria as tinha,
devidamente acondicionadas em serrim – bastava comprar uma ou duas. Pequenas
ampolas de vidro que continham aquele líquido insuportável – “ácido sulfídrico,
sabia eu que era droguista”. Deixadas cair na sala de aula, ninguém aguentava
ficar lá dentro. Os “pózes” também eram “simpáticos”. Havia-os de dois tipos – os pós de espirrar e os das comichões. Ambos eram vendidos
em pequeninos envelopes, com pouco mais de uma colher de café de pó, cada um.
Era o suficiente para chegar o envelope ao nariz de alguém e o desgraçado ficar
para ali a espirrar sem conseguir parar. Pior era o pó das comichões, que se
deitado um bocadinho, no pescoço, ficava-se a coçar as costas a tarde inteira.
As bichinhas de rabiar e as bombinhas eram mais para assustar e
depois só apareciam pelas festas populares.
Em tempos
mais recuados, parece que as festas começavam logo no Domingo Magro. Agora ninguém lhe liga nenhum, o Gordo ainda é muito
celebrado, pelos pantagruélicos, agora o Magro…
Vou mais uma
vez recorrer a memórias mais antigas que as minhas, para citar algumas
reinações. Hélder Pacheco fala-nos destes domingos, dos preparativos de
máscaras e trajes para a festa, que começavam já no Magro, embora o ponto culminante
fosse o Domingo Gordo e o dia de Carnaval e passo a recordar as suas
palavras:
«[…] valia tudo: enfarinhar quem
passava ou enfarruscá-lo com pó de carvão, atirar ovos podres, laranjas, jarros
de água, torrões de erva e outros projécteis mais repelentes (por exemplo,
líquidos nauseabundos, como urina e água choca, ou sólidos da mesma origem. E
quando o Entrudo acidadou, atiravam éter aos olhos dos passantes, com grandes
bisnagas apropriadas!). Afinal, Entrudo que se prezasse era badalhoquíssimo,
glutão e violento – ou não servia para nada.»
Não vale a
pena ir à procura das origens, porque de Cabo Verde à metrópole, como então de
dizia, nestes dias “ninguém leva a mal” e aproveitava-se a vingança do pequeno
contra o grande, do pobre contra o rico, do fraco contra o forte. Troçar,
gozar, parodiar, fazer pouco de, através da caricatura ou do “arremedar”,
tinha de se aproveitar a época, libertava-se o corpo e a alma.
Antes das Cinzas, queimava-se tudo. Em muitas terras, o dia da folia, terminava com fogo. O “Enterro do João” no meu “quinteiro”, a “Queima do Judas” noutros sítios, havia sempre qualquer cortejo purificador ou mortificador. No caso do "João", o desgraçado chegava à estação de comboio. Já débil, era levado em cortejo pelas ruas, em direcção ao largo da Feira, onde ficava a agonizar. Pelo caminho e no largo, não faltavam as carpideiras, e as figuras da terra, ora louvando-o ora julgando as suas acções terrenas. Acabava com as “deixas” – a leitura do testamento, onde eram ditas as verdades. Ao presidente da Junta deixo isto… à Câmara deixo aquilo … e a todas as pessoas gradas deixava qualquer coisa. Tudo culminava na morte do João, com o enforcamento e a cremação, como boneco de fogo de artifício, que finalmente era lançado ao rio Leça.
Pior do que esta descrição, só a “Serração da velha”, que faziam em Afife, quando eu via uma grande serra em cima de um carro de bois, onde deitavam a velha e depois ouvia o som ensurdecedor dos triquelitraques.
Falta o
melhor da festa – a comezaina. Repare-se no calendário – Domingo Gordo.
Pois na
minha casa também se matava o porco e fartos de caluba (barriga de porco com uma
mão travessa de gordura) andávamos todos. Neste dia, tirava-se da salgadeira, a
orelheira, a faceira e o focinho, o chispe e do fumeiro já se podia cortar umas
chouriças ou um salpicão de língua ou de lombo.
Era o dia do
“pantagruélico cozido”, que além das carnes do bácoro, ainda era acompanhado
por uma galinha velha e pela verdura adocicada pelos dias frios. Sem esquecer a
pingadeira de arroz de forno, onde pela manhã já se deveria ter cozido pão e
feito uns bolos com bocados de caluba, ou só de sete buracos, para desougar os ougados. Era muita carne, não se comia tudo? Pois bem, dois dias depois na
feijoada do dia de Carnaval acabava-se com tudo.
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