Hoje recordo a história daquele emigrante português que foi
para França e sentia dificuldades na aprendizagem da língua. Dizia ele:
«Lá que chamem pain ao pão, ainda vá que não vá.
Agora chamar fromage ao queijo…»
E a minha memória acha que a história foi colhida no “Se
bem me lembro” do Vitorino Nemésio e continuava assim:
«A gente repete assim queijo, queijo, queijo … e depois
queijo já não quer dizer nada.». Aqui entrava a linguística do Ferdinand de
Saussure e a arbitrariedade do signo linguístico, que falava do significante –
a palavra grafada e o seu significado.
Ora, vem todo este arrazoado a propósito de meia dúzia de
termos toponímicos que eu conheci muito bem durante a meninice, e que depois
não queriam dizer nada, como o queijo.
Já não é a primeira vez que, quando penso no possível
significado de uma palavra, a minha “cabecinha” só vê aquilo que guardou e fica
perplexa com um significado ou uma atribuição diferente.
Vamos à colheita, mais uma vez na “Monografia de
Matosinhos”, do saudoso Júlio Couto. Desta vez, o texto lá inserido é de Alberto
de Oliveira, retirado de “Palavras Loucas”.
«Pois em Vilar, querem crê-lo? os nomes velhos resistiram
ao ataque, e são de um tal sabor cristão e humanitário, que se fica a
desconfiar que os ratões dos insulares até às esquinas foram levar a propaganda
do seu credo, e não contentes de divulgarem a Bíblia em edições quase gratuitas,
decidiram espalhar a sua moral pelos sobrescritos das cartas, nas addresses.
Ora vou dizer os nomes que me lembram: Rua do Bom
Sucesso, Rua da Pena, Rua do Gólgota, Rua da Piedade, Rua da Saudade, Monte do
Picoto, e já mais longe a Rua da Boa Nova, a do Rosário, a da Boa Hora. Parece
que nem em Jerusalém haverá ruas com mais religião nos títulos.»
É verdade! Conheço estas ruas desde quase toda a minha vida
e nunca pensei nos significados dos significantes.
Tantas vezes calcorreei a Rua da Piedade e nunca de ninguém,
lá, me “apiedei”. Recordo é o tasco, onde ia comprar a banda desenhada usada.
Desde os Mandrake e o Mundo de Aventuras, até aos Condor com metade do tamanho
e a dois tostões cada um.
Falta a “compaixão” entre a Pena e a Piedade. Podia ter pena
das pataqueiras e operários que trabalhavam horas sem fim na Fábrica dos
Marinhos, na Rua da Piedade, mas na Rua da Pena, não tinha pena nenhuma
da nossa maior caloteira, que morava mais para o lado da Viela do Zé da Mestra.
Também não tinha pena dos instruendos que iam fazer inversão de marcha a meio
da Rua da Pena. Até ficava a “gozar o pratinho” à espera que um mais aselha
batesse com o Volkswagen, nos penedos atrás ou à frente.
Coitada da Rua da Saudade. Hoje sim tenho saudades
dela. Cortada em bocados, com um prédio a passar-lhe por cima e um pedaço feito
em túnel, só as “ilhas” desapareceram.
Quanto ao Bom Sucesso, as memórias são também muito
remotas, mas sempre ligadas ao comércio, do segundo mercado da cidade. Das
primeiras vezes que lá fui, a minha madrinha tinha-se mudado do Mercado do Anjo
para lá, onde tinha a sua banca de venda de galináceos, e onde quase aprendi a
matar os coelhos, não à paulada, mas sim a dar-lhes apenas um toque no nó
vital. Acho que o meu sucesso também não foi muito grande.
Para o Monte do Picoto e para o Gólgota já era
preciso muita devoção para lá chegar, sítios onde não tinha afazeres habituais.
Ali para a frente era só campos e quintas dos “camónes”. Mais tarde, até o Siza
Vieira quis deixar a sua marca na Quinta e Casa do Gólgota, porque
instalaram lá a Faculdade de Arquitectura.
Já quanto à Maternidade, onde os ingleses já tinham igreja
e cemitério, bem afastados das suas terras, há bastante tempo que me interrogo
das razões da Comissão de toponímia ter definido nomes tão sugestivos para o
local. Vejamos que podemos começar por rezar um Rosário, para que a parturiente
tenha uma Boa Hora, ou uma hora pequenina, ali pelo Campo Piqueno,
na maternidade e possa sair para o seu Palácio dando a Boa Nova à
família.
Afinal quem definiu esta toponímia? É difícil descobrir.
Eugénio Cunha e Freitas, crê «que são topónimos relativos
ao período do pós-cerco do Porto. Ou manifestação
de ultrarromantismo dos edis do tempo.».
Em relação à Rua do Rosário, Eugénio Andrea diz o seguinte: «Tem-se
dito e escrito que o nome desta rua se deve ao negociante Domingos do Rosário
de Almeida, por este ali ter sido proprietário e morador. Sim e não. Domingos
do Rosário do Nascimento e Almeida, tio do divino Almeida Garrett, devia ser
muito devoto de Nossa Senhora do Rosário, como
prova o nome “de devoção” que acrescentou ao seu. […] Precisando de dinheiro para o seu
negócio, pediu-o emprestado à Misericórdia, dando de hipoteca o domínio direto de vários prazos
que possuía “na
rua nova de Nossa Senhora do Rosário, contígua à sua Quinta do Paço”».
Ora bolas, isto é só dar-me mais pano para eu ir fazer novas
investigações. Afinal a Quinta do Paço, não era em Paranhos? Vou matutar sobre
o assunto…
Quanto à Pena, alguns
querem tirar-lhe o misticismo e ver no topónimo apenas a “penha” do monte.
Germano Silva, grande estudioso, já conseguiu descobrir e divulgar
muito. A propósito ainda da Rua do Rosário, até nos conta história de “contas
de outro rosário” que ficaram por pagar. Conta-nos que aquando da Grande
Exposição Industrial, um Imperador, filho de D. Pedro II veio ao Porto e pediu
ao cônsul do Brasil que lhe encontrasse alojamento perto do Palácio. O hotel
escolhido foi um que existia no início da Rua do Rosário e a proprietária
esmerou-se na decoração e reserva do hotel só para a comitiva. No final,
apresentou a conta e o príncipe, achando que era muito dinheiro, abalou sem
pagar. Qual seria o rosário dele?
O meu é continuar a escabulhar, à cata de algo de novo,
sobre as coisas antigas.
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