domingo, 30 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - Parte VI (Por ruas tripeiras e outras terras)

 


Este capítulo do folhetim, mais que topográfico, será quase só, uma listagem de casas por onde Camilo passou.

Começando pela capital, se pelo centenário do seu nascimento, não havia a certeza se teria nascido em Alfama ou na Rua das Pretas, no bicentenário ainda menos. Sabemos que Camilo, ao longo da sua vida voltou muitas vezes a Lisboa, para casa de amigos, hospedarias e até hospitais e casas de saúde, mas nomes sabemos poucos.

Já na Invicta a documentação e a referência a sítios é muito variada, bem como a vontade de Camilo em mudar tão facilmente de casa, como outros homens mudavam de gravata.

Mais ou menos cronologicamente vou listando:

Cadeia da Relação
De 12 a 23 de Outubro de 1840, preso pelo rapto de Patrícia Emília.
De 1 de Outubro de 1861 a 16 de Outubro de 1862, pelo crime de adultério, enclausurado no quarto de malta n.º 8.

Rua Escura

A tal “rua fétida”, morada dos primeiros tempos.

Rua dos Pelames, n.º 44
Aqui vive em 1844, aluno de química na Academia Politécnica. Camilo namorou uma vizinha que morava na trapeira da Rua do Souto.

Rua da Fábrica do Tabaco
Em 1849 foi comensal na Hospedaria Francesa, hoje Grande Hotel de Paris.

Rua de Santa Catarina, n.º 41
Viveu aqui em 1850, antes do estar junto com Ana Plácido.

Rua Chã ou Rua Cimo de Vila, à Sé
Em 1851, morou por aqui, para estar perto do Seminário Diocesano.

Rua de Santo António, n.º 82
Reside aí por finais de 1852. Os irmãos Sousa Guedes fazem-lhe uma espera, agridem-no e Camilo defende-se a tiro de pistola.

Rua da Bella Princesa
Em Janeiro de 1853, esta foi a morada que deu numa audiência em tribunal, pelo incidente da rua de Santo António.

Hospedaria Águia d’ Ouro
Em 1853, ficou nesta hospedaria, conhecida como a “matriarca das estalagens portuguesas”.

Rua do Pinheiro
Em 1854, havia uma casa na quinta do Pinheiro – uma pension, que parece ter sido a moradia que o romancista mais gostou. Recomendou-a a um amigo com a seguinte descrição:

«É uma espécie de hotel garni. Dás 480rs e tens um bom quarto para dormir, um alimento frugal, a minha sala para as tuas visitas, uma quinta para passear e um profundo silêncio em redor, e isto no centro da cidade.»

Rua de Cedofeita
Em 1855 residiu numa casa de hóspedes na rua de Cedofeita, tendo escrito:

«O futuro Plutharco dos homens ilustres d’esta freguesia de Cedofeita, em que tenho a honra de morar.»  
Há quem diga que seria na Rua da Sovela, onde havia hospedagem módica para estudantes.

Candal
1856, vai par o Candal, afogar as mágoas pela Ana Plácido, nos braços de uma costureirinha.

Rua do Sol, n.º 8
Mora na casa de D. Eufrásia Carlota de Sá, qu o deve ter tratado muito bem, dadas as várias referências que Camilo lhe faz. No verão passa temporadas na Foz do Douro.

Viana do Castelo
Em 1857, depois de muitas cartas trocadas como o amigo José Barbosa, director da ”Aurora do Lima” decide ir viver para Viana. Se noutras terras a escolha fora simplesmente por amizade ou a fugir de alguém, aqui, foi fundamentalmente para ir trabalhar no jornal.

O sítio que escolheu em Viana foi precisamente o mesmo, onde morei pela primeira vez que saí da casa dos meus pais. Precisamente Valverde, em São João de Arga, no princípio da encosta do Monte de Santa Luzia. Nas suas obras há referências ao Mosteiro de S. Francisco, aí perto, já em ruínas quando por lá andei, só não fala do possível túnel que atravessaria o monte e chegaria ao convento da Carmelitas, umas léguas mais a norte, nas Ursulinas.

Rua chrismada de D. Pedro, antiga rua do Bispo, ao pé da Praça Nova, paralela com a do Laranjal – casa nº 13
Camilo faz esta descrição da sua morada no Porto, para dar alojamento a este amigo de Viana.

Rua da Picaria
Uma casa de hóspedes onde se alojou com Ana Plácido. Daí foram viver para a Foz do Douro.

Rua do Almada n.º 378
Casa que fora de Pinheiro Alves. Camilo e Ana Plácido festejam aí o baptizado dos dois filhos. Ficaram aí por algum tempo. No verão iam para Leça da Palmeira.

Rua do Triunfo (hoje Rua D. Manuel II)
Camilo muda-se para um prédio nesta rua, em frente ao portão do parque de estacionamento do Palácio de Cristal.

Rua de S. Lázaro
Em 1872, Camilo habita uma casa nesta rua.

Rua do Bonjardim, nº 860
Camilo está instalado nesta casa que pertencera a Pinheiro Alves. «Entre o café o o cognac quando descrevo o gabinete de Camilo no Porto, em 1872, habitando ele o prédio n.º 860 da rua do Bonjardim.»

Casa de S. Miguel de Seide
Depois de 1875, Camilo reside na casa de S. Miguel de Seide, com algumas deslocações a Lisboa e Coimbra, com veraneio na Póvoa do Varzim.

Rua de Santa Catarina, n. 458

Por algum tempo residiu em Santa Catarina, onde a 9 de Março de 1888, casou com Ana Plácido.

Última morada
Finalmente, foi “hóspede” do amigo Freitas Fortuna no cemitério da Lapa, a partir de 1890.
Foi o seu último regresso ao Porto, para a Lapa, e deixou claro que não o levassem para outro qualquer panteão, porque o lugar dele era junto do seu amigo que lhe abriu o jazigo para sua última morada.

A enumeração das restantes terras por onde Camilo passou seria um roteiro para bem conhecer o norte de Portugal, pelo que vou deixar referência só a meia dúzia delas, para se poder explorar numa quinzena de férias, sem indicação especial do seu peso na vida de Camilo.

Se quiserem começar a etapa em Lisboa, parem em Coimbra e esqueçam o Porto para visita mais demorada. Rumem depois a Vila Real, dêem um salto a Vilarinho de Samardã, que é pertinho. Se forem a Friúme, não deixem de comprar milhos em Ribeira de Pena. Se não os souberem fazer, peçam ajuda à cozinheira Gertrudes Engrácia, a quem Camilo tece os mais profundos encómios:
«A ela lhe devo a cura da minha anemia quando tinha 23 anos, e aos seus guisados de boi, às tripas de boi, às “troixas” de recheio e aos bifes de presunto de Melgaço, que ela lhe fazia.»
Esta Gertrudes era cozinheira do Barão de Forrester, na Ramada Alta e Magalhães Basto cognomina-a como “A madame Brillat Savarin, de Camilo, não tinha apelido, era de um plebeísmo raro.»

Não cheguem ao presunto a Melgaço, fiquem por Viana. Faço uma menção pessoal a uma aldeia nos arredores da Ribeira Lima, minha conhecida por visitas a familiares, que me trazem Perre e Outeiro à memória. Foi lá que aprendi a comer arroz doce e leite creme.
Em 17 de Agosto de 1855, a cólera invade o Porto e chega a Viana. Camilo recomenda a um amigo:

 «Vais comigo, para Quinta da Costa – Tem muitos cuidados hygiénicos e alapa-te em Perre

Se quiserem ir a águas, procurem as Caldas da Taipas, passem pelos arredores em Fafe e Guimarães, onde Camilo tinha amigos e onde colheu muita inspiração para algumas obras. Para águas mais frias, Camilo preferia a Foz do Douro ou as praias da Póvoa do Varzim.

Se gostarem de jesuítas, podem ir prova-los a Santo Thyrso, na grafia antiga, onde Camilo passeava «todas as tardes em volta da Praça, com o filho Jorge, durante longas horas, sempre no mesmo passo e no mesmo terreno.»

Isto já leva mais que meia dúzia e para fechar o capítulo deixo um desafio aos “camiliófilos”.

Boas leituras à procura de…
Sabem a que obras pertence esta dúzia de terras do norte de Portugal?

São Gens de Monte Longo, Castelões, Santa Olaia de Roboredo, Prazins, Ronfe, Cerva e Limões, Refojos de Basto, Landim, Vilar de Frades, Santo Estevão de Urgezes, Travanca, acabando mais para o centro com a obra mais conhecida – Castro Daire.


Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - Parte V (Da perdição à salvação, até à perdição final)

 


Em meados de 50, a vida começa a melhorar, Camilo já não dorme na “fétida” Rua Escura e era agora comensal– na Hospedaria Francesa, hoje Grande Hotel de Paris, na rua da Fábrica do Tabaco. Este hotel ficava perto da Praça Nova e do n.º 28 da Rua do Almada.  Hum…

Voltemos a novos amores e aos sítios de animação nocturna. É um baile fatal, onde Camilo conheceu Ana Plácido. O baile ocorreu na Assembleia Portuense, associação de recreio e especialmente de dança, onde os olhos de Camilo se cruzam pela primeira vez com Ana Plácido antes de 1850.  Começa um doloroso e prolongado romance. Ela tinha dezanove anos, ele vinte e cinco, e mais tarde Camilo escreve sobre esse dia:

«Quando te vi num baile, ó flor aberta às auras,
qual donzel medieval, pudibundo, corei!
Eu vago sonhador das legendárias Lauras
erguer a ti o olhar só mal a custo ousei…»

Quem não tinha qualquer pejo em olhar para ela, era Manuel Pinheiro Alves, um cinquentão, morador na Rua do Almada, lá para cima, no n.º 378. Nessa época, as raparigas ao fim do dia, quando já não tinham luz para os bordados, vinham para a janela, mostrar-se. A Rua do Almada ganhou direito à alcunha de «rua das meninas bonitas». Para o n.º 28, tinha-se mudado da Praça Nova, a família Plácido. Duas beldades havia nesta casa – A Antónia que viria a ser esposa do Ferreirinha e a irmã a Aninhas Plácido. Pinheiro Alves passava e tentava seduzir a donzela com a sua fortuna. Os burgueses, solteiros e abastados da cidade, eram o terror dos jovens apaixonados. O dinheiro deles falava sempre mais alto e por isso “sacrificava-se uma rapariga a um velho” – eram os ” mariages de raison”.

Camilo aqui era o jovem apaixonado a tentar a sua sorte, mas o ideal da família Plácido era casar bem a filha dentro da mesma classe. A 28 de Setembro de 1850, dá-se o enlace na capela da quinta de Villar de Allen, em Campanhã, longe dos olhares da gente da Baixa.

Na véspera, perante o tabelião lavrou-se a escritura, «a formosa Ana Augusta, que completa hoje 19 anos, recebe de seu pai Plácido Braga e mulher, o dote de 3:200$000 reis e de Manuel Pinheiro Alves, o noivo que a dota com 8:000$000 reis» [… modestíssimo pretium virginitatis, que não correspondia nem à beleza da noiva, nem ao entusiasmo do outorgante, mas representa o instinto comercial do Porto …]. No linguajar comercial “comprar o corpo de uma mulher perfeita por oito contos era um bom negócio”.

Após este casamento, Camilo vive anos atormentados, desvairado de paixão, foge para Lisboa. Regressa, torna-se ainda mais brigão nas noites do Porto, com lutas que até tiros envolveram, com doenças constantes, somáticas e psicológicas. Uma crise de misticismo, leva-o mesmo a inscrever-se no Seminário e querer seguir a carreira eclesiástica.

Solicita a concessão de ordens menores, conforme se lê no documento seguinte;

«Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor:
Diz Camilo Castelo Branco, filho natural de Manuel José Botelho Castelo Branco, nascido na freguesia de Santa Justa em Lisboa e residente na da Sé Catedral desta cidade, que tendo sincero desejo de abraçar a vida eclesiástica, e tendo obtido breve apostólico de compatriotado, pede a Vossa Excelência a graça de o admitir a exame, e ficando aprovado, dar-lhe os Quatro Graus de Ordens Menores. Espera receber mercê».
E o despacho:
 «Admitido a tonsura e aos quatro graus de ordens menores; e examine com os muitos reverendos padres mestres das aulas deste Paço.
Paço Episcopal do Porto, 13 de Março de 1852».

É Alberto Pimentel que nos relata o desfecho deste misticismo:

«[…]o artista resistiu ao teólogo»; e ei-lo de novo na vida livre, desordenada e caótica, acalmando a sede abrasadora de amor que o queimava nos braços duma rapariguinha com quem viveu no Candal

Aos amigos escreve sobre as suas maleitas:

«Escrevo-te doente. Em quatro dias tive uma bronchite, uma indigestão, uma ameaça de gonorreha inveterada, e uma febre que vaticina sezão. Não tenho cabeça para escrever.»

Ana Plácido não lhe saía da cabeça e era a razão destes comportamentos. Finalmente ela cede ao seu amor após sete anos de torturas e desejos. Foge com o filho do marido e vai com Camilo para Lisboa. Vão e voltam, escondem-se por outras terras.

A praça do Porto revolta-se. Um comerciante de bom nome, homem de bem, brasileiro de torna-viagem não pode ser receber a humilhação do adultério sem se revoltar. A classe, solidária e católica, incentiva o colega à denúncia, ele apresenta a “querella” e começa o processo.

Num tempo em que ainda não tinham surgido os pasquins sensacionalistas, nem chegara a Portugal a “reportage” ou a “Interview”, o Nacional, jornal de esquerda dá a notícia, em 8 de Junho de 1860:

Prisão – Ante-hontem de tarde foi presa e entrou na cadéa da Relação a ex.ma snrª. D. Anna Plácido Pinheiro Alves, esposa do sr. Manuel Pinheiro Alves.”

Entretanto Camilo que andara num jogo de escondidas, por casas da família e de amigos em várias terras, (como “em Fafe ninguém fanfe” passou dois meses na Casa do Ermo, em Passos, Fafe). Depois, decidiu entregar, porque os aguazis não o largavam.

Em 1 de Outubro de 1860, o Nacional dá a seguinte notícia:

«Apresentou-se hoje no tribunal competente o sr Camillo Castello Branco, requerendo mandado de prisão para recolher à Relação a seguir os termos de livramento, na querella dada contra elle pelo sr Manuel Pinheiro Alves.»

Segue-se pouco mais de um ano de prisão efectiva e o “livramento” de ambos surge por falta de provas (parece que não houve testemunhas de os terem vistos juntos na cama) e, perante uma brilhante defesa do advogado Dr. Marcelino de Matos, o juiz, pai do escritor Eça de Queirós, absolveu-os em 16 de Outubro de 1861.

As “transumâncias” continuam. O casal agora livre de culpas vai viver dois anos para Lisboa.

Seria um tempo de paz e um dos primeiros romances aí escritos por Camilo foi o “Amor de Salvação”, título contrastante com o “Amor de Perdição” que ele escreveu na prisão e quer esquecer, acerca desse tempo escreve mesmo:

«Passei lá os mais atormentados anos da minha vida. Tão horrorizada tenho deles a memória, que nunca mais abrirei o livro o “Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras.»

Em Lisboa, nasce o filho Jorge, em 1863. Manuel já tinha 4 anos, era filho de Ana Plácido e o pai seria o marido ou porventura Camilo? Não havia ainda testes de paternidade…

No mesmo ano, em 15 de Julho, o marido de Ana Plácido morre desgostoso, num hotel, em Vila Nova de Famalicão.

No Outono desse ano, Camilo e Ana Plácido mudam-se para a casa de S. Miguel de Seide, que tinha sido mandada construir por Pinheiro Alves em 1830, quando regressou do Brasil. A casa, por partilhas, ficou para o filho Manuel.

A produção literária acentua-se nos primeiros anos da estada em Seide e também Ana Plácido fortalece a sua veia artística.

A D. Ana Plácido, esta “mulher perfeita”, teve também vida literária, primeiro, às escondidas, sob anonimato e pseudónimos, depois com nome no frontispício das suas obras. Foi grande poetisa e boa tradutora. Alberto Pimentel dedica-lhe grande parte de um dos seus livros.

Martyrios Obscuros” uma história de amor infeliz foi publicada na Revista Contemporanea de Portugal e Brasil, cuja assinatura se velava no segredo destas duas letras A. A.

Mais tarde, veio a lume “Horas de luz nas trevas d’um cárcere”, com o mesmo mistério daquelas letras iniciais A. A. e que viu a luz num folhetim do Nacional. As críticas são muito favoráveis, mas o autor não é revelado, diziam que era um segredo que o “chronista” e agora o folhetinista guardaram e pedem paciência aos leitores para lhe concederem esse privilégio.

Mas a máscara começa a cair – um diz: «A. A. é talentosa e mártir; formosa e infeliz; estivera algumas vezes em Lisboa e da última partira sufocada em lágrimas.» Os jornalistas e os homens de letras sabiam de que dama se tratava.

«A bela dama malfadada jazia entre ferros» este seria um decisivo fio condutor para o descobrimento da verdade, se alguém pudesse ignorá-la ainda».

A dama por esta altura esta presa no aljube e falava de si mesma, não para se vangloriar nem para conquistar a piedade pública, mas para convencer as mulheres incautas de que o maior castigo do adultério… é o próprio adultério.

A chave do enigma vou deixá-la por revelar. Seria a Ana Alves, senhora casada ou simplesmente a apaixonada Ana Augusta?

Datando algumas obras, “Luz coada por ferros” foi publicada em 1863. ”Adelina”, um romancesinho, que começou a ser publicado no Nacional, em 1860, com o título “O mundo do doutor Pangloss”, é a história dos dois amantes – Henrique é Camilo; Adelina é Ana Plácido. Em “Meditações”, inicialmente publicado no Aheneo (revista mensal de Coimbra) Ana Plácido fala de si mesma. O mesmo aconteceu em “As portas da Eternidade”, publicado na revista Futuro.

Sob pseudónimo Pedro de Souza, (os nomes masculinos eram mais bem aceites pelo público) escreveu em 1871, o romance “Herança de lágrimas”.

O pseudónimo também era utilizado nos trabalhos de tradução, como prova um documento da Ernesto Chardron, onde se pode ler:


«A Ex.ma Snr.ª D. Anna A. Plácido, viúva de Camillo C. Branco, nas traducções que fez para a casa Chardron, usava o nome de Lopo de Sousa, como podemos comprovar pelos recibos da mesma senhora.»

Voltando a S. Miguel de Seide, faltava a legalização do estado civil dos amantes, que teria de esperar até Março de 1888. Além disso, este tempo de paz começa a ser tempo dos três DDD - doenças, desgostos e desgraças na família. Em 1864, nasce-lhes o filho Nuno, que mais tarde, muito contribuiria para estes três DDD, com a sua vida de boémio, mulherengo, à pancada nas feiras, nos lupanares…
O filho Manuel morre-lhes aos 19 anos, talvez com meningite.

Os problemas visuais de Camilo agravam-se. Parece que começaram após um acidente de comboio entre Ermesinde e S. Romão. Começaram com uma cegueira nocturna e ele escrevera a um amigo:

«Estou outra vez de cama. Receio muito um novo incómodo nos olhos.»
«Os meus olhos não aturam muito tempo, São syntomas da diplopia.» e mais tarde diz:

«Foi muito grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado que é efeito do venéreo inveterado. Sofro há quatro meses uma diplopia (visão dupla) […] mas, valham-me as esperanças de não cegar, porque isto importava um inevitável suicídio.»

Estamos próximos do fim…

Em 1 de Junho de 1890, o conceituado oftalmologista de Aveiro, Dr. Edmundo de Magalhães Machado visita-o em Seide e não lhe dá “as esperanças”.

“Quando ele saiu, Camilo tacteou o seu velho revólver bull-dog. Encostou-o ao parietal direito, segurou-o com a mão esquerda para evitar um possível desvio, e disparou firme.
Às cinco horas expirava.”

quinta-feira, 27 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - parte IV (o maldito dinheiro)

 

Por volta de 1850, diz-se que Camilo vivia exclusivamente da escrita, sendo até o primeiro escritor português a conseguir fazê-lo. Muitos escritores coevos eram funcionários públicos, tinham o seu ordenado certo e a escrita vinha por fora. Camilo ainda tentou alguns lugares, até como bibliotecário, ou mesmo como deputado, mas não teve essa sorte. Os pecúlios herdados já teriam acabado e Camilo teve de muito escrever para conseguir viver.

Há vários relatos sobre os contratos, preços exigidos e valores pagos, que foram sempre pouco mais do que “cinco réis de mel coado”.

Camilo procurou ganhar “a dois carrinhos” – escrevendo para folhetins e aproveitando depois os textos para as obras impressas em livro.

O folhetim, género muito ensaiado em França, era bem dominado por Camilo, com grande mestria em criar intrigas, personagens apaixonantes e manter o suspense para a história continuar no número seguinte. Em muitas publicações, o folhetim aparecia logo na primeira página do jornal, era muito lido e muito ouvido e até recontado. Assim o autor recebia “feedback” dos leitores, o que permitia que a história fosse sendo criada e até alterada, em função dos ecos que lhe chegavam. Assim, quando o folhetim passava a livro, muitas vezes já era “créme de la crème”. Noutros casos, quando havia necessidade de dinheiro, recorria às traduções de textos em francês.

A escrita satírica, passional, a crítica de costumes e de tipos sociais, garantiam-lhe sempre boas tiragens. Numa carta ele revela números:

«Tenho feito tiragens com um mínimo de 400 exemplares. Eles pagam12 moedas pela propriedade de um livro de 250 a 300 páginas. A empresa fica sempre a ganhar. Bastava-lhes vender 200 exemplares, podiam pagar 25 moedas.»

Um biógrafo confirma que os editores e livreiros enriqueciam com os seus livros, que pagavam entre 100$00 e 150$00 o volume. “O Cavar em ruínas” e o “Coração, cabeça e estômago” foram pagos a 144$00.

Confesso que ainda não descobri “o valor do dinheiro”, em meados dos oitocentos. Encontrei estudos que indicavam o valor de 480 réis por dia, a operários especializados, 140-150 réis, no sector agrícola e a mulheres. No entanto muitos trabalhos eram sazonais, não havia garantia de um ordenado semanal ou mensal. Um professor podia receber 90.000 réis por ano. Se um operário, trabalhasse todo o ano, seis dias por semana, atingiria um valor superior a um professor. No entanto, os dados são escassos e não me permitiram conclusões quanto aos pagamentos a Camilo.

Noutra carta o escritor diz:

«Queria pagar-me 200$ rs.- um trabalho para seis meses, o mínimo. Por tal preço é impossível.»

Refere que os jornais brasileiros é que pagavam bem:

«Lá são pagos 720 rs. por coluna! É assim que se enriquece!»

As dificuldades económicas de Camilo são reveladas na sua epistolografia com editores amigos, como se pode ler em “Cem Cartas de Camillo”, de Xavier Barbosa, onde a maioria é dirigida a José Barbosa, director do jornal “A Aurora do Lima”, em Viana do Castelo.

Camilo escrevia mesmo quando doente, o que acontecia muitas vezes, e dizia-o numa carta:

«Aluguei caza, tenho a pequena num collegio. Recebi adiantado do Cruz Coutinho 50$ rs pelo Tito Lívio. Escrevo sem posses, mas il faut écrire

 

Noutra carta, em 1857, escreve ao director da Aurora:

«Se me pagassem. Escrevia para esse jornal. […] Gratuitamente não posso; bem sabes que não escrevo por prazer nem para glória.»

As referências ao dinheiro aparecem muitas vezes nas suas cartas.

«Acceito a paga de 20$ rs. mensais
«Disseste-me que a Aurora podia dar-me 30$ rs. mensais.»

«Queria desquitar-me de algumas dívidas pequenas. Lembra-te se é possível adiantar-me dinheiro que será abatido nas prestações a 10$ rs. por mês.»

«Se houver alguns cobres em caixa manda-mos que tenho consumido1:500$ rs. em papas de linhaça.”

«O caso é que as 4 correspondências escrevo-as por 14:400 rs. mensais, enchendo os três lados.»
Eram correspondências-folhetins  sobre coisas do Porto, para o Aurora em 1856.

Ora números são números, uns verdadeiros outros irreais, mas as várias referências permitem-nos concluir que Camilo não levou uma vida financeira desafogada, teve de escrever muito porque os editores assim lhe exigiam.

Era demasiado trabalho, escrever para vários jornais do país e ter mais do que um livro em mãos, ser jornalista, folhetinista, colaborador, apresentar-se sob a capa de pseudónimos ou com a sua verdadeira assinatura, era demais e desabafa numa carta:

«É necessário renunciar a estas cousas. Porque há incompatibilidade de tempo, não posso tanto e ainda que pudesse, não estou resolvido a suicidar-me d’este modo. Antes trolha

Para terminar esta novela de números deixo ficar só “o peso” do marido de Ana Plácido:

«[…] o inventariado Manuel Pinheiro Alves era um capitalista que, segundo a phrase sacramental dos da sua classe, pesava uns oitenta contos de réis

Em extratos do inventário por morte de Manuel Alves encontramos outros valores, comparativos para uma análise de números relativos ao maldito dinheiro:

·         A casa de São Miguel de Seide foi inventariada por 700$000 réis.

·         A catacumba perpétua para depósito do seu corpo na Lapa – 100$000 réis.

·         Bens móveis de raiz e dinheiro – 26:855$580 réis.

Das jóias adstritas à toilette de D. Ana Plácido, menciono um ou dois exemplos:

·         Um par de brincos com 144 brilhantes, avaliado em 150$000 réis.

·         Uma pulseira de oiro com esmalte ver, ornada de 13 brilhantes e duas pérolas, avaliada em 44$000 réis.

·         Uma cadeia de oiro com dois passadores, avaliada em 12$140 réis.

Dona Ana Plácido pede que lhe permitam residir na quinta de S. Miguel de Seide para assistir ao inventário, «pois se acha numa hospedaria fazendo avultadas despezas e pede para despesas reclamadas pela sua mudança para Seide, a título de adiantamento da herança, reis 450$000».

Dona Ana Plácido pede que lhe permitam residir na quinta de S. Miguel de Seide para assistir ao inventário, «pois se acha numa hospedaria fazendo avultadas despezas e pede para despesas reclamadas pela sua mudança para Seide, a título de adiantamento da herança, reis 450$000».

Benditos escudos, moedas e notas de réis que hoje, convertidos em euros, seriam uma bagatela.

Já às portas da morte, Camilo consegue ser agraciado com o título de Visconde Correia Botelho, em 1885, mas mais do que isso, conseguiu que o Estado, em 1889, concedesse uma pensão ao filho mais velho, impossibilitado por doença de trabalhar, como garantia do seu futuro e amparo indirecto a seu pai. Os netos, também a braços com a miséria, receberam em 1906, uma pensão anual de 500 escudos, enquanto durasse o seu estado de solteiros.

Há-de continuar com menos números e mais estórias.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - parte III (malfadados editores)

 


A relação de Camilo com os editores, à data também livreiros, foi sempre bastante espinhosa.  As livrarias eram pouso diário de artistas e letrados. Camilo frequentava a Livraria Chardron, nessa altura na Rua de Santo António, como Livraria Internacional, de Ernesto Chardron, seu editor, que depois se mudou para a actual Livraria Lello.  A pedido deste livreiro, Camilo escreveu dois livros especiais que ele editou – “Eusébio Macário” e “A Corja”. Talvez neste caso, fosse mais um desafio às qualidades de Camilo. Cultor de um estilo ultra-romântico, Camilo era mais tradicionalista, não embarcou nas novas correntes literárias da época - o naturalismo e o realismo, que Eça de Queiróz trouxera como novidade, das suas vivências parisienses. Ora contrariamente ao resto das obras, as duas acima citadas, a pedido de Ernesto Chardron, são dois bons exemplos de romances realistas e poderiam ter sido uma resposta camiliana, dizendo “também sei escrever assim”.

O editor da Casa de Cruz Coutinho, nos Caldeireiros, publicou-lhe várias obras. A Livraria Moré, na Praça Nova era também encontro habitual de intelectuais. A primazia para a primeira edição do “Amor de Perdição” foi dada à Moré.

Camilo precisava dos editores, mas eles também tentam tirar o máximo proveito do escritor. Veja-se por exemplo a obra “Doze Casamentos Felizes”. Inicialmente eram só sete ou oito casamentos, mas à dúzia é mais apelativo. O editor obrigou Camilo a escrever sobre doze casamentos.
A primeira edição desta obra foi dedicada ao Conselheiro António Rodrigues Sampaio.
«Dedico estas bagatelas que menos valeriam ainda senão fossem com a consciência de valerem tão pouco».
A humildade patente na dedicatória era recompensada com mais trabalhos no jornal lisboeta.

Recorde-se que Rodrigues Sampaio, nascido em S. Bartolomeu do Mar, Esposende, foi durante 10 anos, o editor responsável pelo jornal “A Revolução de Setembro” de Lisboa, que a par com “O Nacional” no Porto, eram jornais da esquerda liberal, veículos da ala Setembrista. Rodrigues Sampaio foi um dos mais ilustres jornalistas do século XIX, e como patrono da Associação dos Jornalistas, tem o seu nome numa rua da baixa, e o seu busto no início da rua, junto ao Rivoli.

Camilo não escrevia só para jornais e editores do Porto, Coimbra ou Viana, também na Capital o acolhiam nas suas páginas. Em 1861, Camilo escreve no jornal de Rodrigues Sampaio sobre o Palácio de Cristal Portuense, sobre ilustres figuras portuenses, como Alfredo Allen, Pereira Machado ou Pinto Bessa, bem como sobre as exposições industriais e comerciais que se faziam no Palácio. Não lamenta o passado, como hoje se diz – “antigamente é que era bom….” Pelo contrário, lamenta que o seu avô não tivesse tido a oportunidade de viver num tempo de tanto progresso e inovação e escreveu:

«Tenho pena de meu avô que não viu nada disto, e só conhecia o cristal de uma garrafa de bom vinho de que ele fazia exposição nos dias solenes. Que sorna e insípida existência tiveram as gerações passadas. Nossos pais jordeavam num macho por entre abismos, alumiavam-se com purgueira, jogavam à sueca com a família; iam às hortas a Campanhã recordar com as nossas avós a frescura dos seus primeiros amores simbolizada na alface… E nós, os abençoados da fortuna, vivemos vida de gás, de vapor, de electricidade, de cristal

Perante este lamento e a felicidade de Camilo em viver com tanta evolução e progresso há 150 anos, acho que hoje, deveria ser banida, dos discursos saudosistas, a expressão “antigamente é que era bom …”.

Anos mais tarde, até a edição de um livro foi por ele suspensa. Camilo dizia mal de Maria José, filha bastarda de El-Rei D. Miguel e depois teve de se arrepender. Quando soube que o imperador Pedro II do Brasil, se interessou pela sua obra e o quis conhecer pessoalmente. Em 1872, Camilo foi à Tipografia, ali na Cancela Velha e mandou parar a impressão. Ficou com um exemplar para ele e deu-o a Ana Palácio, que talvez até ela o tenha queimado para ele não ir preso. Ordenou que as folhas fossem inutilizadas, dadas ao barbeiro ou ao merceeiro para embrulhar os víveres. Felizmente, alguém se apercebeu e conseguiu reunir todas as folhas, porque a Livraria Moreira da Costa consegui imprimir 50 exemplares facsimilados do “Infanta Capellista”. Os descendentes de Camilo, puseram-lhe um processo em cima. Como coleccionador, ficou ainda Alberto Pimentel, que diz só em 1905, ter conseguido uma dessas folhas, talvez bibliograficamente a mais valiosa, por ser a do frontispício.
Camilo reconhece que já há muito se arrependera do que tinha escrito e diz que até aproveitou grande parte da Infanta para o romance “Carrasco de Victor Hugo José Alves”.

Com outros editores, Camilo teve carta branca para fazer o que quis. Foi o caso de uma obra importante que traduziu para a Livraria Internacional, de Ernesto Chardon, no Porto e Eugénio Chardon em Braga, no ano de 1873 - o “Dicionário Universal de Educação e Ensino”, da autoria de Émile Mathieu Campagne. Na tradução de Camilo em dois volumes de 806 e 798 páginas, ele começa com uma “advertência do traductor”. Reconhece a envergadura da obra e a sua ignorância em certos assuntos, mas promete “socorrer-se de livros portugueses dignos de serem consultados” e até do professor de mathematica do lyceu. «São poucas as cousas que sei dos estudos methodicos da minha mocidade; algumas estudei depois muito pela rama, outras, a meu pesar, confesso que as ignoro. As mathematicas nomeadamente.»

Não obstante esta humildade, Camilo acrescenta à obra novos verbetes de 65 biografias de historiadores, escritores e letrados portugueses, não falando em cidades e outros artigos da sua lavra. No entanto, não se coibiu de apagar verbetes que não tinham interesse para os leitores portugueses – «N’este DICCIONARIO há lanços que me pareceram impertinentes, por nimiamente amoldados a entendimentos muito pueris. Elidi-os, com a segurança de que nunca seriam consultados.»

Na página de rosto, pode ler-se:

«trasladado a portuguez por
CAMILLO CASTELLO BRANCO 
e ampliado pelo traductor nos artigos deficientes em assuntos relativos a Portugal
»

Termino o episódio do folhetim, com um verbete, retirado deste dicionário, que deveria ser lido pelos espirituosos empregados de café, de hoje em dia:

«Um copo de água ou um copo com água?
 
O segundo modo de dizer é pleonastico, porque embora a preposição de sirva para designar a matéria de que é ou se faz alguma cousa, como não há copos feitos de água nenhuma ambiguidade resulta de se suprimir o adjectivo.
Ha porem muitos que escrevendo ou falando, tem escrúpulo de dizer um copo d’água, mas não uma garrafa de vinho, uma pipa de aguardente, um vidro de licor, etc.»



segunda-feira, 24 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - parte II (despertar no Porto)

 

A vida de Camilo, aos dezoito anos, como estudante no Porto, foi uma estúrdia. No entanto começou bem. Um documento da Escola Médico-Cirúrgica do Porto comprova a «aprovação pela maior parte» (?) no exame das disciplinas da 1.ª cadeira do curso de Medicina. Camilo inscreveu-se em Outubro de 1843, quando veio viver para o Porto e ainda teve aproveitamento, neste primeiro ano. O segundo ano não foi concluído “por falta de comparência”.

Começou a vida de boémia. Desde as tertúlias de café, à paródia de um duelo na Torre da Marca, pretendendo bater-se à pistola, por ciúmes de suposta Dulcinea, dos ‘botiquins’ aos teatros, das danças às aventuras amorosas, o tempo não chegava para tudo. Além disso, começou a surgir o “dinheiro imediato” do folhetinismo que o atraiu e dos periódicos da cidade que gostaram da sua escrita, a retratar e criticar o Porto oitocentista.

O seu Porto que tanto lhe deu, foi muito maltratado na sua obra. Santos da casa não fazem milagres. Alguns sítios por onde passou não foram os melhores. Desde a residência na Rua Escura, que Camilo descreve como “um bairro fétido” até aos calabouços do aljube que lhe deram pano para muita novela, (recorde-se “O Amor de Perdição”, “José do Telhado” ou os dois volumes das suas “Memórias do Cárcere”) não obstante o que por lá passou.

 Como os estudos não prosseguiram, a família pede-lhe o regresso a Vila Real. Sem a animação da grande cidade, procura por lá e encontra nova paixão, em 1846. Cai de amores por uma prima - Patrícia Emília de Barros. Daí resultou um rapto romântico com fuga dos amantes para o Porto.  O tio da rapariga arranja uma alçada e Camilo é preso pela primeira vez. Foram sete dias de reclusão que ele recorda nas «Memórias do Cárcere»:

«Em 1846 estive eu preso ali desde 9 até 16 de Outubro. Foram sete dias de convivência com sujeitos conversáveis que entraram comigo ou poucos dias antes.»

No ano seguinte, morre a primeira mulher em Friúme e o infortúnio bate à porta, em 1848, com a morte da filha Rosa.

Nesse mesmo ano, nasce Bernardina Amélia fruto da relação de Camilo com Patrícia Emília. Mais tarde, Bernardina entra para um “colégio” – vai ficar aos cuidados de uma freira D. Isabel Cândida Vaz Mourão, do Convento de S. Bento da Avé Maria.

Camilo fixa-se no Porto e começa a ganhar dinheiro como folhetinista e com os primeiros escritos polémicos. Integra grupos literários, como o dos “Leões” no Café Guichard e vai publicando no Nacional e no Periódico dos Pobres.

A importância do Guichard ficou imortalizada numa das quatro pinturas a fresco, do portuense Dordio Gomes, na varanda da escadaria dos Paços do Conselho do Porto, onde Camilo aparece com um fundo boémio e a menção ao “Café Guichard”.


Comerciantes, clérigos e fidalgos vão percorrer a sua pena afiada ao longo de muitos livros. Podíamos começar pela Rua das Flores, onde aquela elite comercial foi inspiradora para os “Os Brilhantes do Brasileiro”.

Em “A Filha do Arcediago” troça do sr. António José da Silva, um dos mais abastados mercadores de panos da rua. O Arcediago do Barroso não é melhor retratado. O João Retroseiro tem de defender a honra da família. O filho dele é adjectivado pela amiga de uma possível namorada:

«Não contes a ninguém que foste namorada desse pazbobis. Ele é um patego, um pagano, um gebo, um lapardão».

A classe eclesiástica nunca foi poupada. Em “O Retrato de Ricardina”, «o Abade de Espinho pecara na mocidade. A serpe tentadora fizera-lhe o salto do pescoço de uma bela mulher, onde a mensageira de averno se enroscara.»

A fidalguia e os políticos foram postos ao léu. Numa carta. Refere-se por exemplo a José, um dos irmãos Passos, figura política de relevo:

«Não fales ao José Passos no meu negócio, […]
velhacamente se me ofereceu, para entrar nas minhas intencoens, a vingar-se duns quatro artigos em que o empalhei no Nacional.»

«É a senhora Viscondessa de Gandarela que a mãe não conhece nem eu, senão de saber que são cem os pretendentes a renovar-lhe as delícias do casamento.»

Mas voltemos um pouco atrás, deixar passar trinta anos após o Vintismo, período em que ocorreram revoltas, guerras, o cerco, lutas partidárias, ficando para trás a Maria da Fonte e a Patuleia, para chegarmos a 1850, altura em que o Porto Romântico emerge em força.

O comércio chic floresce na rua dos ourives, dos Clérigos e de Santo António, onde as damas e os cavalheiros encontram as novidades estrangeiras, para as irem exibir, no Jardim de S. Lázaro, nos bailes, no teatro ou até no Pasmatório dos Lóios. Surgem as assembleias e as associações que promovem os chás dançantes e os serões literários onde os poetas mostram os seus dotes. O teatro atrai o Porto elegante e dividem-se os admiradores da Dabedeille, ídolo dos Patuleia ou da Belloni, de quem os cartistas são fãs. Juntam-se as cantoras e as bailarinas estrangeiras, que no final dos espectáculos acompanham os seus admiradores, noite fora.

As beneditinas, as clarissas e outras noviças também faziam as suas festas – eram os famosos oiteiros ou as abadessadas. Afadigavam-se a gastar os ovos lá da cerca, na confecção das delícias doces com que cativavam os dândis que glosavam a suas deixas. Eram os jogos florais, em que os poetas esperam sempre mais.  Nesses dias, podiam entrar no convento e não ficar apenas pela grade. Parece que em noites escuras quando o “óleo da purgueira” iluminava os caminhos, os mais atrevidos arriscavam as escadas de corda, ali na Rua do Loureiro, junto à antiga Estalagem do Cantinho, para os assaltos à “fortaleza”.

Faustino Xavier, amigo de Camilo, glosou assim a deixa de uma monja: “No açafate da costura /Se escondeu agora amor”

Se eu pudesse em noite escura
Ser por ti agasalhado
Dormia mesmo enroscado

No açafate da costura;
E se lá dessa clausura
Fora me quisessem pôr,
Tu dirias: - Não senhor,
Não toques nesse cestinho
Que lá dentro encolhidinho

Se escondeu agora amor.

Camilo era visita frequente das “abadessadas” de São Bento e também por lá se enamorou da tal freira, Isabel Cândida, com quem manteve relações íntimas. No “Torturado de Seide”, Alberto Pimentel tem vários relatos da senhora, que conheceu por também ter sido professora de uma sua prima. Citando-o «D. Isabel conversava com animação e espírito, contando casos do convento e casos da cidade, como se conhecesse estes tão bem como aqueles.»
Tal comportamento interessava a Camilo. Já diz o rifão popular “quem não sai de casa, não tem que contar” e Camilo precisava de temas para os seus folhetins e para as suas novelas e os episódios amorosos dos mosteiros eram apetecíveis.

Pimentel quando conheceu Isabel Cândida achava que «a freira era velha e feia, trigueira, angulosa e alta, tinha a voz forte, um nariz respeitável e sombras de buço. Não achava que aquela mulher tão balda de encantos feminis, pudesse haver inspirado atenções afectuosas a um homem vulgar. Quanto mais a um homem superior, tal como Camilo Castelo Branco».

No entanto, diz-nos onde encontrar a confissão de Camilo sobre estes seus amores. Precisamente nas “Cem Cartas”, que Xavier Barbosa compilou. Numa carta de 17 de Agosto de 1855, Camilo escreve:

«D. Izabel Candida com quem me congracei por uma celebre eventualidade, quer passar um mez nas vizinhanças de Vianna, e dáhi fazer ao Minho alhumas excursoens. Segundo os estatutos monásticos não pode estancear se não de passagem em estalagens, e não pode residir. Quer ella, portanto, uma casa mobilada, simplesmente  […]»

Noutras cartas, que escreve a esse grande amigo de Viana, Camilo confessa as dificuldades que teve de se afastar dessa mulher: «D. Izabel soffre… parece que profetiza. Há de ser-lhe muito penosa a minha sahida, mas é força transigir. Eu aqui asfixio».

Já que estou “com as cartas na mão” reconto as alegadas relações que o romancista teve no Porto com uma actriz chamada Isaura:

«dentro de um mês, em Junho de 1857, já Camilo se julgava flagelado por ela; di-la importuna e louca; ele vai romper; finalmente. “A Isaura aceitou com mais resignação que eu supunha as gemonias. Fallou em veneno, que penso pós-de-ratos. Depois, ou ella tem estomago de Mithridates, ou uma rasão bastantemente illustrada para continuar a viver. Estou contente com o desfecho

Novas cenas no próximo episódio.

Continua

P.S. por causas destas últimas palavras camilianas, deixo dois desafios. O primeiro, descobrir as aventuras do Rei Mithridates e as sua mézinhas de antivenenos, o segundo, o melhor significado para “gemonias”.



sexta-feira, 21 de março de 2025

Um longo folhetim sobre a vida de Camilo - parte I (primeiros anos)

 


Nesta data de celebrações do ducentenário do nascimento de Camilo (nasceu em Lisboa, a 16 de Março de 1825), vou apropriar-me de algumas ideias mais ou menos curiosas sobre o nosso escritor, espalhadas por escritos de vários camilianos.

Começando pelo nascimento, “Camilo é um transmontano em Lisboa por acaso”. Embora se saibam os nomes dos progenitores, (pai - Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco e mãe - Jacinta Rosa do Espírito Santo) o pai perfilhou-o em 1829, como filho de mãe incógnita. 

Aparecem várias versões sobre a identidade da mãe, supondo-se mesmo que seria uma criada do pai e pela sua condição inferior, a família não a querer reconhecer. No entanto, há um pormenor pouco estudado sobre o nome de Camilo – donde vem o “Ferreira”? Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco – os três últimos apelidos são do pai, e o 'Ferreira'? Há biógrafos que atribuem o apelido à Jacinta Rosa.

«Tão incógnita que nem Camilo a conheceu, pois que ainda o futuro romancista não tinha dois anos de idade, quando ela se despediu do mundo, deixando-o no berço sem o amparo do seu calor».

Camilo, ao longo da sua obra vai-nos recordando as suas coitas de infância:

«Eu nunca tive seio de mãe onde encostar a cabeça»
«Oh meu anjo de amor que me deixaste/ No meu berço a chorar
»

Aos 9 anos, perde o pai que se despede do filho com estas palavras que o escritor recordará nas «Duas Horas de Leitura» com profunda emoção:

«Que será de ti meu filho sem ninguém que te ame.»

Parece que as palavras de despedida, antecedem o provável suicídio do pai, mencionado numa carta que Camilo escreve em 1859: “No dia 19 deste mês decorrem 24 anos que o meu pai se suicidou”.
E aí está Camilo aos 9 anos de idade órfão de mãe e de pai, em companhia da irmã Carolina, um pouco mais velha, e com os cuidados da criada Carlota Joaquina.

Camilo volta às berças, vai para Vila Real, ao cuidado de uma tia paterna Dona Preciosa Rita Castelo Branco que nos vai aparecer como personagem no “Amor de Perdição”, bem como o seu irmão Simão Botelho.

Recordo que esta casa seria a Casa dos Brocas.  Camilo, quer ridicularizar a fidalguia do seu sangue e diz-nos que o epíteto porque eram conhecidos – “os Brocas” (que até serviram de mote para Mário Cláudio escrever “Camilo Broca”), ‘vinha de broa’. A rudeza de Domingos Botelho, desembargador que casou com a Dona Rita, devia-se ao facto de ele ter comido muito pão de milho. Há pouco tempo passei por lá, para admirar as varandas das janelas, que teriam sido oferecidas pela Rainha D. Maria I. A Dona Rita vinha de Lisboa, habituada aos palácios reais e foi viver para uma casa dos Correia Botelho, onde até “tinha medo das ratazanas”. O fidalgo teve de fazer obras na casa e valeu-se da ajuda real, que as economias da família não chegavam. A tia, hierática e miguelista, suspeitando que tivesse havido mistura de sangue plebeu com o dos Correia Botelho, não quis dar grande importância ao sobrinho, tratando-o com secura e indiferença. Recorde-se, no entanto que, anos mais tarde, Camilo vem evocar a sua costela fidalga, para o rei D. Luís lhe atribuir o título de Visconde de Correia Botelho.

Com 14 anos de idade, Camilo muda-se para uma aldeia, perto de Vila Real – Vilarinho de Samardã, para viver na casa de uma família Azevedo, visto que a irmã casou com um quartanista de medicina desta família. Camilo tem nesta casa um grande tutoro Padre António Azevedo, irmão do cunhado.O Padre ensina-lhe Latim e cantochão. Camilo reza com ele, ajuda-o na missa e tange-lhe o sino do presbitério”. Aprende as declinações da arte francesa e lê os primeiros livros - Peregrinação e Os Lusíadas.

Tão boas recordações Camilo teve deste padre, que anos mais tarde, dedicou-lhe o seu livro “O Bem e o Mal”.

ao
padre antonio de azevedo

Nome que os pobres, seus irmãos, reverenceiam (sic), e os enfermos da alma abençoam;
ancião virtuoso; operário infatigável em serviço de Deus e da Humanidade

Oferece este escripto

O Auctor

Relembra-lhe o passado há 23 anos:


«Lembra-se d’aquelle incorrigível rapaz de quatorze annos, que ia à venda da serra do Mezio jogar a bisca com os carvoeiros e à bordoada, muitas vezes?
Esse rapaz sou eu; é este velho (eu digo tinha 37 anos) que lhe escreve aqui do cubículo de um hospital, muito vizinho do cemitério dos Prazeres […], passados vinte e três annos, como eu acabasse de escrever o meu quadragésimo segundo volume […]».

Deste introito ressalto dois pormenores – a doença de Camilo com as suas deslocações a Lisboa e também a vasta obra que já somava por esta altura – Tinha-os contado – 42 volumes!

Fechado o parêntesis, voltemos ao norte.

Por amores ou desamores, Camilo saltimbancou por várias terras de Vila Real ao Porto, com idas a Coimbra e à capital, mas foi pelo norte que a sua vida e obra mais floresceu.

Os seus amores “de perdição” conhecidos são mais do que os dedos de uma mão. Começaram os amores pela Luísa dos Santos– “uma flor de entre as fragas, donairosa camponesa”- de Vilarinho.

Um dia, a tia Rita leva-o a Friúme, Ribeira de Pena, em passeio, e não é que o rapaz se vai logo enamorar de uma moçoila. «É uma camponesa sólida, refor­çada, morena, alta dos peitos, aquela que pouco tempo depois viria a ser a primeira esposa de Camilo».
Ele tem 16 anos. A noiva, Joaquina Pereira, 15.
É um amor de crianças e um casamento de adolescentes”, mas visto com bons olhos pelo futuro sogro — um merceeiro calculista que vê nele um bom futuro herdeiro. Do enlace nasce a filha Rosa, em 1843. Camilo ainda faz amigos lá pela taberna, a jogar cartas, mas é ave de arribação.

Numa visita a Samardã deixa-se prender pelos encantos de Maria do Adro, linda camponesa do lugar. 

Camilo assim a descreveu:

«A Maria do Adro era a filha duma viúva pobre. Tinha 17 anos. Fora bonita até aos 15; depois uma enfermidade grave emagreceu-lhe a face, amareleceu-lhe a pele, sugou-lhe a seiva que viçava em flores por todo aquele rir e olhos de descuidosa inocência».

Deste amor, conta-se uma história macabra.  Numa visita de volta à aldeia tem um diálogo estranho com umas moçoilas:

«- Como estão vocês, rijas, hein?
- Como um ferro, graças a Deus. Então já sabe?
- O quê?
- Pois não sabe que a Maria do Adro…
- Que tem? Está doente?
- Está com Deus … Morreu faz amanhã um mês.»

Parece que vinte e quatro horas depois Camilo, foi à nave da igreja desenterrar o cadáver, por ideia do cunhado. Os pormenores vêm descritos no seu livro “Duas horas de leitura”.  O macabro episódio valeu a Camilo oito dias de febril delírio. Abstenho-me de o relatar, porque o Padre Mestre disse:

«Diz minha cunhada que muitas pessoas desta família endoudeceram. ..»

Já agora faço um parêntesis sobre a “verosimilhança” na escrita de Camilo. Ele próprio achava que era preciso mostrar uma verdade que convença o leitor. Camilo é um dos escritores que consegue enganar o leitor, entre aquilo que é o real e o que é a ficção. O rifão popular é mais directo – “todo o burro come palha, é preciso é saber-lha dar”.

Continua

segunda-feira, 17 de março de 2025

As ruas do "Monte" - parte IV

 


Rua do Monte Pedral - Começo por recorrer a um excerto de uma licença de 1866, para salientar a importância do Monte Pedral, no fornecimento de pedra para as construções na cidade. O requerente bem não queria tirar a licença, para acabar o muro[sendo-lhe preciso acarretar mais alguns carros de pedra do Monte Pedral, só na ocasião em que o pedreiro alevantar ou descarregar a pouca pedra à beira do muro, não embaraça nada nem o trilho dos carros, nem a gente, mas como não hé permitido descarregar pedra alguma no caminho público sem licença ...].

Muita pedra saiu deste monte para obras públicas e particulares. Germano Silva tem sempre boas histórias para contar e no seu livro “Passeios pelo Porto de Outros Tempos”, conta-nos o seguinte, a propósito do transporte da pedra em carros de bois. Estava em construção o Hospital de Santo António: “…decorria o ano de 1852. Os empreiteiros iam buscar a pedra às ricas pedreiras do monte Pedral. Um dia havia para transportar um bloco de proporções fora do vulgar. Era de tal envergadura que, tendo sido cortada e carregada num dia, só ao fim da tarde do dia seguinte chegou ao seu destino. E para o transporte foi utilizado um carro especial com quatro rodas puxado por nove juntas de bois.”

O monte foi aberto para dar continuação à rua da Constituição, construída em várias fases, projectada em 1870, só em 1890 passaria o Monte Pedral, a parte mais trabalhosa e a que demorou mais anos.

A actual Rua do Monte Pedral liga a Rua da Constituição à Rua Damião de Góis, e tem na sua vizinhança mais dois topónimos ligados a montes – a do Monte do Cativo, paralela, ligando as mesmas ruas e a Travessa do Monte Louro, que foi despromovida, porque já li documentos sobre a Rua Nova do Monte Louro. Se descêssemos até ao Carvalhido ainda ficaríamos em terrenos do Monte de S. Paulo, esse completamente desaparecido da toponímia ou dos mapas mais recentes.

Quanto ao Monte Pedral, se recuarmos uns séculos, em 1732, era mais Perral (de “perros”, de cães) – talvez porque ainda não lhe tivessem descoberto os pedregulhos. A verdade é que mais tarde teve lá um cemitério de cães. 

Alguns registos curiosos sobre este topónimo anterior:

1706 – “… o campo da Cavada e uma bouça junto dele, o “monte Perral” ao pé da Falperra, eram pertença do Casal do Ribeiro”.
1715 – referências “…a terras do Monte Carvo, no Monte Perral, no Monte Corvo e no Monte Louro,” estes dois últimos ficavam perto um do outro.
1732 – registam-se “… terras saídas do Cal Ribeiro. Junto ao Monte Perral, que por volta de 1860 se localizava no seguimento da rua das Valas para o Bom Sucesso”.

Numa planta de 1839, podemos verificar os acidentes orográficos ainda existentes à volta do principal - o Monte Pedral. Assim a poente, este tinha o Monte de S. Paulo e a sul, o Monte Cativo. Para norte, além de ruas projectadas em direcção ao Carvalhido, sobressaia o Monte das Regueiras. Ainda existiria o “Monte Santo” por onde ficaria o Reduto das Medalhas. Ainda não encontrei marcações do Carvo ou Corvo e do Louro.

Abro um parêntesis nos “montes” só para relembrar uma história lida na toponímia de Eugénio Andrea Cunha e Freitas, a propósito da personagem que deu novo nome à Rua Nova do Monte Louro, hoje denominada Rua do Almirante Leote do Rego. Pelos vistos, também andou por essa época um bordão na boca do povo - «Que mais queres tu, ó Daniel?»  Jaime Daniel Leote do Rego, foi militar interventivo na instauração da República e envolveu-se em conflitos militares no ultramar, e talvez por isso a Toponímia o tenha escolhido para figurar ao lado de outras ruas de antigas “províncias ultramarinas”. Voltando à estória, dizem que Leote do Rego era muito vaidoso e tinha a sua pessoa em grande estima. E tal como a madrasta da Branca de Neve, gostava de falar com o espelho, e dizia em voz alta «Tu és elegante, tu és bonito, as mulheres gostam de ti, que mais queres tu, ó Daniel

Embora pertencendo ao Monte Pedral, a Rua do Almirante Leote do Rego tem algo muito visível e algo muito escondido. A visibilidade está no grande muro de granito do Complexo da Piscina da Constituição que tem entrada por esta rua. O que está escondido são as traseiras do Quartel dos Bombeiros Sapadores do Porto, que tendo muito granito na entrada da Constituição escondem muito das suas instalações aqui ao lado desta rua. Mas o que fica mesmo escondidinho, cuja entrada se faz por uma abertura num edifício recente é a Vila Pinto. Trata-se de um bairro de, pelo menos, uma dúzia de casas em fila, nas traseiras do n.º 172, que já figuravam nas fotografias áreas da cidade dos anos 30. Hoje em dia ainda é sua transversal a Travessa do Monte Louro. Quanto à rua “deste monte” foi particular, mas desapareceu da toponímia.

Voltando à rua do Monte Pedral, os serviços sociais “fugiram da rua”. A Unidade de Saúde do Monte Pedral fica na rua Adolfo Coelho. A Associação, a Capela do Monte Pedral e a Igreja Metodista ficam na Rua José Pacheco do Monte, até o quartel do Monte Pedral tem entrada pela rua de Serpa Pinto. E afinal o que ficou na rua do Monte Pedral? Umas casinhas de rés-do-chão, algumas com cara lavada e pouco mais.

Rua José Pacheco do Monte – É a continuação da Rua do Monte Pedral. Inicialmente era a Rua do Nogueira. Ainda não descobri quem foi o tal “Nogueira”. Sei que o Bispo do Porto, comprou um terreno ao lado da Casa das Religiosas e da Associação das Escolas Jesus, Maria e José e mandou construir aí uma capela, inaugurada na véspera do Natal de 1928. É a actual igreja/capela do Monte Pedral.

Mais ruas “do monte” ainda caberiam neste bosquejo, mas as principais estão por aqui contadas.

terça-feira, 11 de março de 2025

As ruas do "Monte" - parte III

 

Rua do Monte dos Judeus – a existência ainda hoje deste topónimo é uma prova da tolerância que a gente do Porto sempre teve com os Judeus.

Esta rua localiza-se na encosta das Virtudes, no Morro de Monchique ou se quisermos no Monte dos Judeus, que imortalizou o local, não só nome de uma rua, como das Escadas, de um Pátio e até de um Largo.

Em 1380, o Cabido emprazou à população judaica um terreno para o enterramento dos seus mortos, por estes sítios. Os judeus já tinham abandonado a Judiaria Velha junto à Sé e antes de irem para a Nova no Olival, ainda passaram por Monchique. O convento de Monchique parece ter sido construído onde os judeus tinham a sua sinagoga. Nem sempre as suas práticas foram bem recebidas e os seus rastos eram apagados. Aconteceu o mesmo na Vitória. Na rua de S. Miguel, onde tinham uma sinagoga, no meio de outras casas, instalaram lá uma igreja católica. E pior que isso, quando os quiseram expulsar daquela zona, construíram um grande convento, a que até chamaram da Vitória, “a victória do sol sobre as trevas” – lema beneditino.

Se estivermos cá em baixo em Miragaia e quisermos ir para a parte alta, tendo boas pernas, avancemos pelas Escadas do Monte dos Judeus. Se tiver sorte, até pode ser que as escadas rolantes, inauguradas em 2020, estejam a funcionar, mas como fazem muito barulho, algum morador, às vezes, desliga-as.

Quando chegar lá acima, ou vai para a direita, para a Rua do Cidral – princípio da rua do Monte dos Judeus, ou vai para a esquerda, em direcção à Rua da Bandeirinha, onde a rua acaba.

Proponho a 2.ª hipótese, porque além de desfrutar de bons panoramas, sobre Miragaia, Alfândega e o Douro, ainda pode apreciar o Palácio das Sereias, ou das “mamudas” como o povo lhes chama e no canto do larguito, ver a pirâmide de pedra onde enfiavam a bandeira da saúde, indicando aos barcos que entravam no rio, que ali tinham de parar e aguardar a chegada das autoridades sanitárias.

Voltando para o outro lado, pode ser que o chão que pisam tenha sido o tal cemitério – o Almocávar ou Maqbar, já que os meus conhecimentos judaicos não distinguem os termos.

A importância desta rua prende-se precisamente por ter sido por aqui que os judeus fixaram o seu cemitério. Há documentos sobre um largo que existiu a meio da rua, chamado Largo do Monte Escorregadio, nome originário de uma certa pedra escorregadia aí existente.

Ora, agora vou eu especular, como convém nestas coisas. Embora não tenha lidos documentos que comprovem esta ideia, a tal pedra poderia ser o ponto onde colocavam os mortos, para procederem à lavagem dos corpos, um ritual de purificação antes do seu enterramento. Ora vindo muita água lá do rio das Virtudes, correndo água pela dita pedra, podemos ter aqui uma boa justificação.

 

Rua do Monte da Lapa – Mais um sítio com muita história e com muitas estórias. Da última vez que lá fui contaram-me a estória do bacalhau, já lá vamos. Primeiro vamos à história. Comecemos pelo Monte e por palavras já antigas, sobre o início da construção da Igreja da Lapa, em frente ao Monte.

«A 30 de Dezembro de 1754 foi cedido ao Padre Ângelo Sequeira o Monte de Germalde. Segundo crónicas da época, o Monte de Germalde era um local pouco habitado e hostil, de passagem de comerciantes e peregrinos. Aqui eram muito frequentes os roubos e os assaltos. Foi neste terreno, que a 7 de janeiro de 1755, teve início a construção da Capela de Nossa Senhora da Lapa das Confissões, assim conhecida por nela o presbítero ouvir em confissão os ladrões arrependidos.» in https://irmandadedalapa.pt/historia/

Recorrendo aos conhecimentos de Germano Silva, ficamos a saber factos curiosos sobre este local. Primeiro, tudo isto era monte – o Monte de Germalde. Uma capela ficava no cimo do monte e era vista do mar pelos marinheiros que, devotos do Senhor do Socorro, aqui vinham pagar as promessas. Traziam uma vela do navio às costas e deixavam esmola em dinheiro, correspondente ao peso da vela. Quanto aos assaltos, os avisos eram “Cuidado, lá em cima, Olho Vivo!”. Compreende-se o “lá em cima” pois era no cimo do monte de Germalde. Quanto à Capela também ficou conhecida como “do Olho Vivo”.

Qual a razão da capela descer à rua da Rainha? Germano também explica e manda-nos olhar para umas casas mais abaixo na rua, à esquerda – onde as portas passaram a janelas. Ficam lá em cima e a entrada agora é por trás, numa Travessa da Lapa, que então abriram. Não chega lá um carro, até o médico tem de subir as escadas.

O monte foi arrasado em 1842 para dar saída à Alameda da Lapa, alargando a Rua da Rainha (hoje Antero Quental). A Capela desceu e com ela veio um padrão que assinalava o Caminho para Santiago. Por boas ou más razões meteram-no dentro da capela, que normalmente está fechada – ao Domingo abre para a missa das 11, aproveitem.

Numa das minhas caminhadas, não fiquei pela capela, subi e fui à procura do Mirante. Conta a história que o mirante já foi o Telégrafo da Lapa. Mas isso foi durante a Guerra Civil, entre D. Pedro e D. Miguel. Diz-se que muitas vezes D. Pedro subiu lá acima, entre 1832 e 1833.

Por trás fica a Rua da Glória, onde foi instalada uma bataria, com combates diários – grandes atrocidades ali se cometeram. «Glória dos combatentes do cerco do Porto». Era um bom ponto de observação militar, porque dali se avistavam as principais linhas defensivas da cidade. O telégrafo só foi extinto em 1859.

Mas in illo tempore, dos salteadores de Germalde, o mirante era um moinho de vento. Quando eu me aventurei lá, já nada disso era. Encontrei o sítio – um magnífico miradouro sobre a cidade, a que o povo chama “o Mirante”. O sítio é inacessível aos menos ágeis. Duas anteriores portas no muro foram emparedadas a tijolo, resta uma, a que pernas ágeis podem trepar para sentir se perto a história daquelas pedras.

História curiosa contou-me uma moradora que vive mesmo por baixo, numa daquelas casinhas insalubres há tantos anos, que agora querem destruir. Confirmou-me a designação de ‘Mirante’, disse-me que nunca tinha ido lá cima, vivendo ali há tantos anos. Já lá vivia desde quando os bacalhoeiros já não aportavam a Matosinhos. Na altura, o mirante também servia para secarem o peixe. Recorda um pescador que trazia bacalhau fresco e punha-o a secar nos ferros do mirante e não tinha medo que ninguém lho roubasse, “olha se fosse hoje!”…