O francês Antoine Ripert, veio de Marselha para o Porto com a sua invenção - o "Carro Ripert" - que começou a fabricar por volta de 1870 e cá teve um “privilégio de invenção durante doze anos”, por alvará da patente em 9 de Março de 1881.
Ripert fundou com
outro francês, Henrique Latourrette, a "Empreza Portuense de Carros
Ripert", em Julho de 1883, «para explorar a viação
dentro d'esta cidade bem como nos arredores d'ella e sua circunferencia até á
distancia de cincoenta kilometros». Esta sociedade
tinha dois portugueses e sete estrangeiros. Entre eles, figuravam nomes
ilustres da praça, como André Michon, de uma fábrica de vidros de Vila Nova de Gaia
ou Ernesto Chardron, fundador da livraria que ainda hoje ostenta este nome na
fachada, mas é conhecida pelo mundo inteiro como Livraria Lello.
Com estação central na Praça Carlos Alberto, à data ainda Largo dos Ferradores, que aí eram bem necessários, a linha saía desta praça e ia até S. Mamede de Infesta e um pouco mais abaixo até à Ponte da Pedra, onde havia um bom restaurante, praia e barcos no rio Leça, para passar uma tarde de domingo. Fazia ainda corridas para vários pontos da cidade.
No início, o meio de transporte era atraente. As novidades chamam sempre a atenção e o brilho das suas madeiras bem envernizadas, que cobriam um chassis e uma estrutura de ferro, um tejadilho donde desciam cortinas de renda e acima de tudo, vinha com nome francês - un char à bancs. O carro era puxado por cavalos, também vindos de França – os “Percherons”. Atrás e à frente tinha uma plataforma coberta, onde um cocheiro, “picava” os cavalos.
No início,
consideravam-no cómodo e rápido. E fazia concorrência directa, aos americanos
da Carris, «puxados por mulas
cansadas e fracas, sendo preciso muitas vezes engatar nove animais para tirarem
o carro pela Calçada da Natividade”.
A Companhia
Carril Americano do Porto tinha sido pioneira, já começara em 1872, e
operava carruagens puxadas por mulas que circulavam sobre carris – eram os americanos.
Esta linha saía do Infante e ia até à Foz. Mais tarde, teve uma segunda linha
que saía do Carmo, e seguia pela Restauração até Massarelos, continuando também
para a Foz e Matosinhos. Chamavam-lhe a companhia de baixo, quando surge
uma nova a de cima, na parte alta da cidade – a Companhia Carris de
Ferro do Porto, que vai florescendo e chega a comprar a companhia de baixo.
Começaram desavenças
com a Carris, porque o Ripert queria usar-lhe os mesmos trilhos. Os sócios
desentenderam-se e ficou só Henrique Latourrette, que com muitos sacrifícios,
conseguiu manter a linha para S. Mamede de Infesta. Um tal Ignacio Bemfolga
comprou o último carro e assegurou as últimas viagens.
Mas a Carris
modernizou-se, introduziu o primeiro carro eléctrico da Península e chegou aos
nossos dias, foi sempre uma companhia de sucesso.
Quanto ao
Ripert foi morrer onde passava todos os dias – a S. Mamede de Infesta.
Entretanto,
ainda foi resistindo até 1910, deixando boas histórias para contar. Alguns mamedenses
foram bem amargos para com o Ripert. “Monstro,
exótico, excêntrico, grotesco”, muitos foram os
adjectivos com que o meio de transporte foi mimoseado. No entanto serviu-lhes durante muitos anos, até à festa de 19 e 20 de Fevereiro de 1910, com a
inauguração da linha de carro eléctrico que os ficou a ligar ao Porto, de vinte
em vinte minutos. Foi a imortalizada linha do “pica do 7”, e mal o
Miguel Araújo sabe, que ainda havia o 7/ (sete com traço) e o 7// (sete com
dois traços) para Ponte da Pedra.
Campos Monteiro faz uma descrição horrível
deste “pesado carroção, conjuncto pavoroso de madeira e ferro”, não obstante
nele viajar 13 anos e ter ido a S. Mamede arranjar casamento. O texto pode ser
lido na edição de O Tripeiro. - Porto. - Série 3, Ano 1, nº 17 (1926), p.
268-269
Deixo para o
fim umas quadras, lidas no mesmo número, que serviram de epitáfio ao Ripert,
que foi queimado, em frente à igreja, como uma bruxa excomungada. As histórias
no Cypriano, do Cunha que ia fazer a barba à última hora e deixava os passageiros
à espera e quantas outras que o Ripert não teria que contar, mas lá ardeu na fogueira!
«Meu dedicado
amigo de quinze annos,
de cinco mil e quatrocentos dias!
As dez mil e oitocentas correrias
que eu fiz ao Porto, exposto ás ventanias,
sentado nos teus bancos deshumanos,
vão terminar emfim! Morres, n'um tétrico
pesadello de angustias e de horrores.
Teu bôjo
avantajado e dyssemétrico
vae consumi-lo
o fogo, emquanto o
Electrico
caminha avante
entre festões e flôres!
Nunca mais,
pelas frias madrugadas,
navegando aos
boléos pelas estradas,
farás gallos
na fronte aos passageiros!
Nunca mais
pela rua da Sovélla,
velas pandas
como uma caravella,
inundarás de
lama os forasteiros!
Nunca mais,
posto em frente da Havaneza;
encherás de terror
e de surpresa
as creanças e
o povo que passar!
Nunca mais,
sob saias e aventaes,
esconderás aos
olhos dos fiscais
um pernil de
cevado por salgar
Nunca mais
ouvirás ao Cypriano,
historias do
recanto transmontano
onde floresce
o vinho perfumado!
Nunca mais
sahirás com grande· atrazo
porque o Cunha
das horas não fez caso
e foi fazer a
barba, descançado!
Nunca mais, em
conversa apocalyptica,
ouvirás
discorrer sôbre política
ou sôbre a
falta de água nos nabaes!
Nunca mais,
n'um violento solavanco
deixarás este
cego, aquelle manco,
e todos a
cavallo nos varaes! ...
Vaes ser
queimado! Todo o mundo folga!
Toda a gente
da terra, vê, se anima!
Tudo canta e sorri!
Só o Bemfolga
hoje não folga
nada, e se lastima!
Adeus, amigo,
adeus!
Que essa
fogueira te consúma a madeira carcomida.
... Cinco horas! ... Vaes arder, nave
agoureira!
Emfim, fôste uma vez pontual na vida !
Cumpres o
horário pela vez primeira ...
S. Mamede de
Infesta, 19 de Fevereiro de 1910. TURIDDU»
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