sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Rua dos Bragas

A quinta Mirante dos Ingleses, a imediata dos Carvalhos do Monte, a de Santo António da Boavista ou das Águas Férreas – eram grandes quintas atravessadas pela Rua da Estrada, hoje rua de Cedofeita.  A água, que as atravessava, era um elemento comum que vinha do manancial de Paranhos e se juntava com o de Salgueiros; quando chegava cá a baixo tinha de ser aproveitada e por isso se construíram várias fontes por Cedofeita.

Vamos focar-nos hoje só numa das quintas – a dos Carvalhos do Monte que já em 1508 é referenciada com este nome e vem ligada à família dos Ribeiros Braga. Vamos deixar passar as gerações, de grandes lavradores, gente rica que exerceu funções do Santo Ofício e como Depositário geral da Décima do Porto, para fixar-nos na última geração dos Bragas e na sua boa vontade.

(Abro um pequeno parênteses, porque em pequeno também ia pagar a décima, dizia-se o pagamento relativo ao foro de um terreno foreio e mais tarde estendeu-se à contribuição predial. Por chiste, perguntávamos a alguém que levava guarda chuva, em tempo de sol, “Vais pagar a décima?”).

Chamemos então para a lide os irmãos José e António Ribeiro Braga – José, o mais velho, falecido em 1854, foi “cavaleiro professo na Ordem de Cristo”, segundo o Padre Rebelo da Costa. Os irmãos mostraram a sua benemerência oferecendo terrenos da sua quinta à cidade para romperem uma rua, a que merecidamente atribuíram o apelido deles – a Rua dos Bragas.

Num projecto encontrado no Arquivo do Porto, a propósito da casa que construiu na Rua de Cedofeira, em frente à Torrinha há pormenores curiosos. O primeiro seria mais uma artéria que pediu para ser aberta na sua quinta, ligando a projectada rua dos Bragas à rua do Mirante. Certamente não estaria a pensar em especulação imobiliária, não deveria ser sua intenção lotear a quinta. A curiosidade reside no topónimo proposto em planta – Travessa do Aqueduto.

Interessa-nos o termo “aqueduto”, porque vem justificar a segunda intenção de José Braga ao apresentar o tal projecto para a rua de Cedofeita, oferecia o terreno e queria que a Câmara construísse um chafariz integrado na sua casa para aproveitamento das águas, que por ali corriam, vindas do dito aqueduto.

A Câmara apoiou a ideia e construiu-lhe uma fonte inclusa, no rés-do-chão da casa a construir, tendo ainda acordado com a condição imposta, de lhe ceder “pena e meia de água”. Estranha medida esta, usada antes dos metros cúbicos. Algures, li que poderia ser a grossura de um fio de água corrente - “uma pena de pato”. Por outras contas, poderia corresponder a um litro de água por minuto. O que fazendo as contas daria aproximadamente 1,4 metros cúbicos, por dia. Logo a “pena e meia” seria pouco mais do que os dois metros actuais, por dia.

No cimo da fonte figurou a data – 1826 e durante muitos anos serviu a população. De tal modo que até melhoraram as condições para a recolha da água. Diminuíram a largura do tanque, em 1893, para permitir que as pessoas se abrigassem em dias de chuva. Parece que só foi desmontada muito depois dos anos trinta, e levada para o parque de Nova Sintra, onde hoje está instalada. Uma foto, que me muito me interessou, data de 1933 e a fonte ainda lá figura, no n.º 338 da rua.

Quanto ao edifício da fonte, no decorrer dos anos, também nos deixou histórias para contar.

O primeiro colégio alemão da cidade, falarei dele mais em detalhe a seguir,  instalou-se por lá em 1855. Meio século depois, foi pensão com nome francês – La Fontaine – evocando a fonte no rés-do-chão. Depois de retirada a fonte, já é dos meus dias uma loja de lãs e linhas de tricot, que acho chamar-se “Branca”. A restauração voltou ao local, bem como a evocação da fonte – era um restaurante italiano, que teve a feliz ideia de se chamar La Fontana. Foi-se… Agora chegaram lá os do “ramen” e tiraram-lhe o romantismo todo.

Voltando ao colégio, o edifício foi o berço do actual Colégio Alemão. Na verdade, em 1855, um padre criou a Von Hafe Schule e vemos pela imagem que se tratava de uma escola para meninos. Anos mais tarde, em frente, na rua da Torrinha, criaram o Colégio Liverpool, para “Educação de Meninas” como pintado, em letras garrafais, na parede.

Só a “vol d’oiseau”, para mudar de língua, a Von Hafe Schule ainda mudou para outra casa na rua de Cedofeita, em 1861, depois foi para a rua da Restauração, em 1901, onde alterou a designação para Deutsche Schule zu Porto.

Veio a guerra e em 1916, todos os alemães e os seus descendentes até à terceira geração foram extraditados, ao mesmo tempo que o património alemão era confiscado e o funcionamento do Colégio Alemão foi suspenso.

Já agora, os Von Hafe ligaram-se a outros negócios e na década de 60, conheci muito bem os que tinham uma indústria de metalurgia no Largo de Alexandre de Sá Pinto, porque eram nossos clientes – uns “chatos” porque tinham de levar uma factura de cada compra e só pagavam o resumo no final do mês – contas à alemão e não “à moda do Porto”.

Mas, voltemos aos Bragas que nos trouxeram aqui hoje. A rua foi aberta ou concluída por volta de 1824 e ainda teve de esperar quase 50 anos para ver nascer uma das jóias da arquitectura industrial portuense – a Companhia Aurifícia. Não sou do tempo, ou pelo menos não era cliente, dos artefactos de ouro e prata que lá trabalhavam, mas vendi muitos quilos de pregos de arame e muitas caixas de grosas de parafusos, para madeira e para ferro, com medidas inglesas múltiplas e submúltiplas da polegada. Que bem recordo aquelas caixinhas de cartão que encaixavam uma na outra com uma etiqueta verde em cima – “Companhia Aurifícia – Parafuso madeira 3/8”.

A fábrica, que ocupou terrenos das quintas dos Bragas, foi fundada em 1869 e ocupou uns 30 mil metros quadrados, estendendo-se até à rua de Álvares Cabral. Durante quatro gerações esteve nas mãos da família Pinto Leite e em finais do oitocentos, o cartão de publicidade salientava na capa, não os produtos, mas sim à máquina a vapor, que funcionou até 2006.


Antes de fechar portas, a fábrica foi vendo nascer outro edifício emblemático da Rua – a Faculdade de Engenharia, que começada a construir em 1927, só em 36/37 teve os seus primeiros alunos. Não obstante a monumentalidade da obra, que além dos terrenos da quinta dos Bragas, devia ter ocupado terrenos da quinta do Mirante, chegados a 2000, tiveram de mudar de instalações, para a Asprela. Muito curioso, o disfarce exterior de cotas, porque visto do passeio o edifício da Rua dos Bragas, tem uniformidade, e não nos apercebemos da inclinação da rua, resolvida pelas diferentes alturas dos edifícios, como demonstra esta imagem do site da FEUP.


Os edifícios da Asprela foram a última obra pública que o meu pai fiscalizou. Recordo as agruras por que passou, nos últimos tempos, com alterações de última hora que os “senhores engenheiros” queriam que lhes fizessem, antes de tomarem conta dos espaços, bem como das infindáveis escadas que teve de subir e descer, porque os elevadores ainda não funcionavam.  

Muito ainda havia a dizer sobre a rua dos Bragas, começando pelo doce – a confeitaria Royal, lá em cima, sem esquecer repartições públicas - a Circunscrição Industrial, onde também ia “pagar a décima”, até espaços mais religiosos e culturais como a Capela de Nossa Senhora dos Anjos ou a velha Livraria Reis ou mais pobres como as várias ilhas que se escondiam lá para trás, até ao café da esquina o Latino, onde os estudantes “faziam noites de despesa de quarenta contos” e pagavam no dia seguinte. Deixo ficar a notícia do Público com mais de vinte anos:

"Estamos despidos", afirma José Azevedo, gerente do Café Latino, onde cerca de 50 alunos se juntavam no fim do dia para tomar uns copos. Os estudantes consumiam de tudo: francesinhas, cachorros, tostas mistas... "muitas cervejocas e até uma garrafita de whisky de vez em quando", conta José Azevedo. Para o gerente, tê-los por perto "era uma alegria", eles aproximavam as poucas mesas circulares do estabelecimento e faziam ali mesmo uma grande festa, cujo consumo podia chegar até aos quarenta contos. "Deixava-os pagar no dia seguinte e olhe que nunca deram prejuízo à casa", conta.

https://www.publico.pt/2000/09/14/jornal/pessimismo-na-rua-dos-bragas-148672

Fica para amanhã a foto da Fonte de Cedofeita, porque  descobri um pormenor que é um grande "por maior".


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