Em dia de “Restauração”, lembrei-me da toponímia mais uma vez e fui lá baixo à rua da Restauração.
Segundo li por aí, «[…] está a tornar-se numa das zonas
“trendy” do momento». Mas esta “Restauração” não é motivada pela
restauração dos dias de hoje, que por lá começa a surgir nos hotéis de luxo,
nos seus jardins, bares e miradouros com vistas deslumbrantes sobre o Douro.
Também o “refurbishment” imobiliário que aquelas
mansões burguesas do século XIX estão a sofrer não justificam o topónimo. Neste
capítulo, a restauração não é só de hoje. Atente-se neste belo palacete de João
Francisco Allen (1785-1849), que foi demolido para dar origem a um imóvel moderno
onde já há mais de 50 anos a Santa Casa organiza os “jogos de azar”.
Este Allen, cônsul inglês, grande comerciante, banqueiro e
empresário de sucesso, reuniu uma das maiores colecções de arte particulares,
que felizmente doou à cidade. Curioso que esta casa (na foto), além de sua
residência também foi o Museu Allen, classificado como o Museu
Municipal do Porto. Parece que os quadros andavam em muitas salas, pelas
paredes acima e até pelos armazéns subterrâneos.
Mas voltemos à “Restauração” e agora à história. Pensando no
dia de hoje, estaríamos inclinados para que a rua evocasse o 1.º de Dezembro de
1640, data da Restauração da Independência, depois da governação filipina de
1580 e 1640. A comissão toponímica da cidade não nos dá muitas justificações do
seu trabalho, por isso há que pesquisar.
Eugénio Andrea da Cunha Freitas na sua Toponímia escreve:
«Cremos que esta “Restauração”
se refere ao restabelecimento do Governo Constitucional [revogação, em 1836, da
Carta Constitucional absolutista de 1826 e recuperação da Constituição liberal
de 1822], e não à data da Independência, em 1640».
Mas não diz mais nada e assim sendo, deveríamos ir até 1842,
quando a Carta Constitucional de 1826 foi restaurada. Foi um movimento que
eclodiu no Porto, com o golpe de estado de Costa Cabral, no reinado de D. Maria
II. Ora vejamos as datas da abertura desta rua e tentemos encontrar razões.
1816 – A rua começa a ser aberta por iniciativa da
Santa Casa da Misericórdia do Porto. Recorde-se que a rua começa na esquina da
Cordoaria com o Hospital de Santo António, que por sua vez também tinha sido mandado
fazer pela Misericórdia do Porto.
1825 – Ainda não tinha sido atribuído nome à rua.
Depois, chamou-se rua do Hospital. Durante algum
tempo, foi rua Nova da Bandeirinha, designação que ficou hoje consagrada
a uma transversal paralela que vai do Largo do Viriato ao palácio das Sereias,
sítio exacto da “bandeirinha”. De seguida passou a rua de D. Miguel I
(até 1832). Acabou o absolutismo e voltou a mudar o nome da rua – rua da
Restauração.
1839 – O grande obstáculo da rua ainda não estava vencido –
para continuar a rua, era preciso cavar o íngreme e perigoso monte da Marca,
para chegar lá abaixo a Massarelos - a rua não estava concluída.
Estamos a chegar à data de 1842 – data da Restauração da
Carta e data provável da conclusão da rua. Acho que até poderíamos aceitar “a
suposição” do Eugénio Andreia.
Não seria a Restauração da Independência em 1640, mas a Restauração da Carta Constitucional que estaria na origem do topónimo. Já agora fica a data de proclamação da Restauração da Carta, não foi em Dezembro, mas sim a 27 de Janeiro de 1842 e eis o Decreto da Rainha D. Maria II:
No entanto, eu nunca fico pelas primeiras impressões e o “facts
check” é fundamental. Neste caso, vou mais uma vez recorrer ao Arquivo
Municipal e procurar as licenças de habitação emitidas para esta artéria.
Há um pedido de licença, em que o suplicante é “hum
commerciante, Jozé Ferreira de Carvalho, que pretende edificar uma morada de
casas, na rua Nova da Restauração”.
Tudo bem, ele “é senhor de hum terreno aí”, tem dinheiro e teve a licença aprovada, com mais de uma dúzia de assinaturas na folha de rosto.
Mas este documento tem a data de 18 de Março de 1937,
logo pode destruir toda a “suposição” de Eugénio Andrea, para a justificação
do topónimo ser a Restauração da Carta Constitucional, que só foi em 1842.
«Numa época de euforia, consequente da vitória das
armas constitucionais, o Senado Municipal distribuiu prodigamente nomes novos
pelas artérias citadinas, lembrando os seus heróis, as datas dos principais
sucessos militares e políticos, que então se julgavam padrões eternos, e hoje
quase ninguém sabe o que significam; outros ainda que, à falta de melhor termo
que não nos ocorre, chamaremos “alegóricos”: Triunfo, Restauração,
Regeneração , Firmeza , Alegria… […]. A rua da Alegria dizem se chamou assim pela satisfação que todos tiveram na cidade com a
vitória do liberalismo. […] Talvez, mas parece-nos alegria a mais.»
in Toponímia Portuense, Eugénio Andrea da Cunha e Freitas.
Pronto, alegres e “bem restaurados” estamos com a verdadeira
razão ainda por descobrir. Mas lá chegaremos.
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