domingo, 1 de dezembro de 2024

Rua da Restauração, em 1.º de Dezembro?

Em dia de “Restauração”, lembrei-me da toponímia mais uma vez e fui lá baixo à rua da Restauração.

Segundo li por aí, «[…] está a tornar-se numa das zonas “trendy” do momento». Mas esta “Restauração” não é motivada pela restauração dos dias de hoje, que por lá começa a surgir nos hotéis de luxo, nos seus jardins, bares e miradouros com vistas deslumbrantes sobre o Douro.

Também o “refurbishment” imobiliário que aquelas mansões burguesas do século XIX estão a sofrer não justificam o topónimo. Neste capítulo, a restauração não é só de hoje. Atente-se neste belo palacete de João Francisco Allen (1785-1849), que foi demolido para dar origem a um imóvel moderno onde já há mais de 50 anos a Santa Casa organiza os “jogos de azar”.

Este Allen, cônsul inglês, grande comerciante, banqueiro e empresário de sucesso, reuniu uma das maiores colecções de arte particulares, que felizmente doou à cidade. Curioso que esta casa (na foto), além de sua residência também foi o Museu Allen, classificado como o Museu Municipal do Porto. Parece que os quadros andavam em muitas salas, pelas paredes acima e até pelos armazéns subterrâneos.

“A sua coleção reunia além de conchas, minerais, lava do Vesúvio, moedas e curiosidades várias, uma vasta livraria e obras de arte selecionadas, em Itália, por Domingos Sequeira. Concluído o Cerco do Porto, decidiu-se a construir um museu, no fundo do jardim da sua casa na rua da Restauração, que era franqueado ao público e constituía um ponto de passagem para muitos dos notáveis visitantes que a cidade então recebia. Mais tarde, as obras de arte viriam a dar origem à coleção municipal hoje integrada no Museu Nacional de Soares dos Reis, enquanto as conchas, minerais e fósseis tiveram como destino o Museu da Faculdade de Ciências.”
 In Dicionário Toponímico ilustrado do Porto, de Rosalvo Almeida

Mas voltemos à “Restauração” e agora à história. Pensando no dia de hoje, estaríamos inclinados para que a rua evocasse o 1.º de Dezembro de 1640, data da Restauração da Independência, depois da governação filipina de 1580 e 1640. A comissão toponímica da cidade não nos dá muitas justificações do seu trabalho, por isso há que pesquisar.

Eugénio Andrea da Cunha Freitas na sua Toponímia escreve:
«Cremos que esta “Restauração” se refere ao restabelecimento do Governo Constitucional [revogação, em 1836, da Carta Constitucional absolutista de 1826 e recuperação da Constituição liberal de 1822], e não à data da Independência, em 1640».  

Mas não diz mais nada e assim sendo, deveríamos ir até 1842, quando a Carta Constitucional de 1826 foi restaurada. Foi um movimento que eclodiu no Porto, com o golpe de estado de Costa Cabral, no reinado de D. Maria II. Ora vejamos as datas da abertura desta rua e tentemos encontrar razões.

1816 – A rua começa a ser aberta por iniciativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Recorde-se que a rua começa na esquina da Cordoaria com o Hospital de Santo António, que por sua vez também tinha sido mandado fazer pela Misericórdia do Porto.

1825 – Ainda não tinha sido atribuído nome à rua.

Depois, chamou-se rua do Hospital. Durante algum tempo, foi rua Nova da Bandeirinha, designação que ficou hoje consagrada a uma transversal paralela que vai do Largo do Viriato ao palácio das Sereias, sítio exacto da “bandeirinha”. De seguida passou a rua de D. Miguel I (até 1832). Acabou o absolutismo e voltou a mudar o nome da rua – rua da Restauração.

1839 – O grande obstáculo da rua ainda não estava vencido – para continuar a rua, era preciso cavar o íngreme e perigoso monte da Marca, para chegar lá abaixo a Massarelos - a rua não estava concluída.

Estamos a chegar à data de 1842 – data da Restauração da Carta e data provável da conclusão da rua. Acho que até poderíamos aceitar “a suposição” do Eugénio Andreia.

Não seria a Restauração da Independência em 1640, mas a Restauração da Carta Constitucional que estaria na origem do topónimo. Já agora fica a data de proclamação da Restauração da Carta, não foi em Dezembro, mas sim a 27 de Janeiro de 1842 e eis o Decreto da Rainha D. Maria II:


No entanto, eu nunca fico pelas primeiras impressões e o “facts check” é fundamental. Neste caso, vou mais uma vez recorrer ao Arquivo Municipal e procurar as licenças de habitação emitidas para esta artéria.



A primeira planta refere-se a morada de casas construídas por João Guedes da Silva, aprovada em 1824 e sita na rua Nova da Bandeirinha. A segunda planta é a do Museu e da residência Allen, datada de 1831 e sita na rua de D. Miguel I. Até aqui os dados batem certo, mas…

Há um pedido de licença, em que o suplicante é “hum commerciante, Jozé Ferreira de Carvalho, que pretende edificar uma morada de casas, na rua Nova da Restauração”.

Tudo bem, ele “é senhor de hum terreno aí”, tem dinheiro e teve a licença aprovada, com mais de uma dúzia de assinaturas na folha de rosto. 

Mas este documento tem a data de 18 de Março de 1937, logo pode destruir toda a “suposição” de Eugénio Andrea, para a justificação do topónimo ser a Restauração da Carta Constitucional, que só foi em 1842. 

«Numa época de euforia, consequente da vitória das armas constitucionais, o Senado Municipal distribuiu prodigamente nomes novos pelas artérias citadinas, lembrando os seus heróis, as datas dos principais sucessos militares e políticos, que então se julgavam padrões eternos, e hoje quase ninguém sabe o que significam; outros ainda que, à falta de melhor termo que não nos ocorre, chamaremos “alegóricos”: Triunfo, Restauração, Regeneração , Firmeza , Alegria []. A rua da Alegria dizem se chamou assim pela satisfação que todos tiveram na cidade com a vitória do liberalismo. […] Talvez, mas parece-nos alegria a mais.»
in Toponímia Portuense, Eugénio Andrea da Cunha e Freitas.

Pronto, alegres e “bem restaurados” estamos com a verdadeira razão ainda por descobrir. Mas lá chegaremos.





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