segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Colégios Ingleses na rua da Torrinha

 As Religiosas do Sagrado Coração de Maria com congregação criada em 1849, em França, chegam a Portugal, mais concretamente à rua da Torrinha, em Setembro de 1850 para assumirem funções naquele que foi conhecido como  “Colégio Inglês de Miss Hennessy”. 

A família Hennesey originária da Irlanda, teve um papel fundamental nesta instituição. Margaret Hennessy tinha duas irmãs: Teresa – Madre Saint Thomas – e Bridget – Madre Sainte Marie.

Anos mais tarde, as religiosas vão-se espalhando por todo o país instituindo colégios, escolas gratuitas/patronatos, lares e residências universitárias, assim como marcando presença junto de comunidades pobres e marginalizadas pela sociedade. Inicialmente são colégios para os filhos da comunidade inglesa no Porto.


1.º colégio inglês na Rua da Torrinha (foto actual do prédio)

Miss Margaret Hennesey tinha assumido a direcção do Colégio Inglês em 1851, instalado no n.º 132 da rua da Torrinha. Tinha ainda como professora Miss Andrews, para poucas alunas.  

Em anúncio publicado em 1871, O Collegio inglez ainda era só para meninas, na Travessa da Fábrica, n.º 45.  Havia outro colégio na rua da Picaria, n.º 96, já em 1869. Também já tinha sido aberto um colégio na esquina da rua de Cedofeita com a rua do Príncipe (actual Miguel Bombarda). Era o Colégio Britânnico, sob a direcção de Antonieta Marr.


A partir de 1872 até 1910, outros colégios ingleses da Miss Hennesey têm nova denominação - Colégio Inglês do Sagrado Coração de Maria, sediados na rua da Picaria, n.º 96 e no Largo Coronel Pacheco, n.º 1 (na Quinta do Mirante).

Miss Hennesey, deve ter sido empresária de sucesso no ramo do ensino. Os primeiros colégios eram apenas para meninas, mas em 1878, Miss Hennesey publica no jornal O Commercio do Porto, um anúncio para o seu Collegio Inglez dos Santissimos Corações de Jesus e Maria, na Foz do Douro, abrindo-o aos meninos - «… para onde podessem mandar seus filhos logo desde os primeiros annos, sem lhes faltarem os cuidados maternaes tão necessários n’essa idade…»

In O Commercio do Porto, Sabbado 21 de Setembro 1878

O Colégio do Rosário instalado no Palacete Boaventura Rodrigues de Sousa, na Avenida da Boavista, desde 1926, também tem nas suas origens nos colégios da Miss Hennessy.

Os colégios de Miss Hennessy também foram conhecidos como  Collegio das Inglezinhas  Na imprensa da época encontram-se anúncios de outras instalações na rua da Alegria.


Outro colégio da rua da Torrinha, embora tenha nome inglês – o Colégio LiverpoolPara educação de Meninas, é dirigido pelas missionárias de S. Domingos, religiosas espanholas.

Fontes:

Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria  https://150anos.irscm.pt/parte-i/


sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Dos Conventos ao “Quartier das Carmelitas”


 
Hoje em dia, passeamos na baixa do Porto e vemos edifícios do dezoito e do dezanove, onde “foi tudo abaixo” e ficou a fachada com um hotel lá dentro ou então estão demasiado “maduros” por não terem sido “amparados” durante muitos anos.

Mais interessante será procurar ir até à fundação deste imobiliário. Estudar ali a “alta baixa” que foi coutada clériga, terra árida e ventosa, distribuída a frades e freiras, para nelas construírem os seus mosteiros e conventos.

Vamos começar por ficar mais cá por cima, junto ao último moinho de vento e olhar em redor. Para aqui chegarmos, com vontade até de ir degustar algum petisco ao antigo solar, vamos pelo Caminho do Moinho de Vento, que em 1647, partia “do terreiro e Ermida da Graça para a estrada de Santo Ovídio”. Em toponímia actual, vamos pela rua de Sá Noronha que nos leva à rua Mártires da Liberdade”. Mas fiquemos pela praça ali ao lado. Como por ali moeram grão não é de admirar que a feira da farinha e a feira do pão se estabelecessem neste alto.

O nosso amigo Germano descobriu as posturas municipais de 1584 que obrigavam “as medideiras da feira do pão a vir para o meio da praça medir as gamelas”, à vista de todos e não metidas dentro de casas. Segundo ele, era uma medida preventiva para evitar roubos e falcatruas, em tempos que o povo fazia de ASAE, digo eu.

Falta-nos saber se à data já seria o Largo do Carmo para a venda da farinha e o Largo do Calvário para a venda do pão.

Mais uma vez os topónimos põem-nos a pensar. Ainda hoje dizemos – “Vou ali ao Carmo”, os eléctricos tinham a placa de destino “CARMO“ e perguntamos, porquê “Carmo”?

Parece que o topónimo se estendia ao largo, desde a esquina da actual praça Guilherme Gomes Fernandes até lá baixo ao Hospital de Santo António. Quem o motivava era precisamente o Convento do Carmo (hoje instalações da Guarda Nacional Republicana) que incluía a actual Igreja do Carmo, demarcando assim uma grande praça e a rua do Carmo até ao hospital.

O outro largo, actual praça Guilherme Gomes Fernandes, começou por ser do Calvário. Nesse tempo, seria Campo do Calvário ou Campo da Via Sacra, onde se situava a última estação da Via Sacra do Porto, que começava perto do Convento de Santa Clara, à Porta do Sol, atravessava para a rua Chã, descia a rua do Loureiro até à capela de S. Lourenço, junto ao Convento de S. Bento da Avé Maria, para subir a colina, por um caminho onde seria aberta a rua da Fábrica, até chegar ao cruzeiro do Senhor dos Assobios na actual praça do Bombeiro.

Já agora, este Campo do Calvário ficou conhecido como Calvário Velho, depois de a última estação ter mudado para o Monte do Olival, ali para as Taipas, na rua que durante muitos anos foi do Calvário (Novo) e hoje é do Dr. Barbosa de Castro, onde também querem construir um hotel na casa onde nasceu Almeida Garrett.

Um parêntesis para aquele Senhor dos Assobios. Primeiro, hei-de estudar a razão do topónimo. Segundo, parece que encimava um cruzeiro que estava junto de uma capela, em honra de Nossa Senhora da Graça, mandada construir por D. Afonso Henriques, por sua mulher D. Mafalda ter caído do cavalo e nada sofrer. O cruzeiro foi depois para o Campo do Calvário e quando construíram o Convento das Carmelitas, em 1701, passou para o Recolhimento do Anjo e acabou no cemitério do Prado do Repouso.

Ora passemos então para o convento das Carmelitas que vais estar na fundação do “Quartier” das ditas. O Convento de S. José e Santa Teresa das Carmelitas Descalças foi começado a construir em 1701 e em 1704 já era habitado por 21 religiosas.

Há quem o descreva com palavras estranhas – “… a sua igreja é um devotíssimo santuário; as festividades que nela se celebram, o aceio (sic), a gravidade, o silêncio e a modéstia, tudo infunde um sagrado terror.”

Os padres carmelitas descalços já calcorreavam aquelas terras há mais de oitenta anos. Em 1619, construíram o seu mosteiro, onde hoje está instalado o Quartel do Carmo da GNR.

As religiosas, antes de os Liberais as mandarem sair (1834), já tinham abandonado o Convento – fugiram às tropas e foram apanhadas.

Com o convento e igreja abandonados durante anos, chegou a altura de aproveitar algumas alfaias para outras igrejas e outros sítios. Destaque para a fonte do claustro do convento que foi levada para o mercado do Anjo e outra fonte com três carrancas, que aproveitaram duas para os jardins do Palácio de Cristal.

Demolido o convento, os terrenos que incluíam uma enorme cerca foram aproveitados em 1903, para dar origem ao conjunto habitacional hoje compreendido entre a rua das Carmelitas, rua Cândido dos Reis, rua da Fábrica e Praça Guilherme Gomes Fernandes – o Bairro das Carmelitas, ou como eu lhe chamei o “Quartier”. Pelo meio ainda abriram outra artéria – a Galeria de Paris, para onde projectaram uma galeria comercial coberta com vidro à semelhança de outras cidades europeias. Parece ter sido o receio do mau comportamento dos vizinhos dos últimos andares, que atirassem lixo para cima dos vidros da galeria, que dissuadiram os empreendedores e não realizaram o projecto.

Um resumo toponímico para esta praça. Em 1650, chamavam-lhe Campo da Cancela Velha. Depois Campo da Via Sacra ou Calvário Velho. Com o convento em frente desde os inícios de 1700, seria Largo e Praça de Santa Teresa, em homenagem à matriarca. Pela actividade comercial aí desenvolvida ficaria conhecida como Praça do Pão.

Com a construção do Bairro das Carmelitas, as barracas da venda do pão começaram a ser retiradas e em 26 de Maio de 1909 dá-se o fecho definitivo da feira de Santa Teresa. As padeiras foram transferidas para o mercado do Anjo, inaugurado muito antes, em 9 de Julho de 1839, indo ocupar a ala sul do mercado.

A praça agora de Santa Teresa vai ter novo patrono. Em 1888, um grande incêndio destruiu o Teatro Baquet, tendo morrido dezenas de pessoas e muitas outras foram salvas pelos Bombeiros Voluntários do Porto. O seu comandante, Guilherme Gomes Fernandes, já não viu reconhecido o trabalho da sua corporação, porque já tinha falecido quando em 1915 inauguraram o seu busto e atribuíram o seu nome à praça, que se mantém nos dias de hoje[AC1] .


 [AC1]

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

O Menino Jesus é mais velho do que o Pai Natal

A inocência infantil é, para mim, o sentimento mais marcante da época natalícia.

Tenho poucas recordações da idade da minha inocência porque o encantamento talvez só me tivesse acontecido uma vez.

Em país estranho, o San Nicólas, ou o Nicolares como me dizia a minha mãe, pelo menos assim o recordo, andava por lá, mas como era estrangeiro, nunca o valorizei. Como o assunto era tabu e não se podia contar a história verdadeira – não me lembro de nada.

Recordamos melhor as histórias que nos contaram muitas vezes da nossa infância do que aqueles que efectivamente vivemos e que às vezes esquecemos, outras vezes não.

Assim posso afirmar categoricamente que o Menino Jesus é mais velho do que o Pai Natal.

Eu já tinha seis anos quando acreditei nele pela primeira vez. Vivia só com a minha avó e sabia a história toda. Até revelo um pormenor que ainda espanta muita gente. Quando ia à igreja ver o presépio antes do 25, o Menino ainda não estava lá. Pudera, ainda não tinha vindo.

Preparar a vinda dele em casa, na véspera de Natal era simples – só tinha de deixar um sapatinho no fogão.

Antes de ir para a cama, fui buscar os sapatos mais velhos que tinha, assim ele via que eu precisava de prendas e deixei só um em cima do fogão, meio escondido lá para trás. Por acaso, tinha andado com aqueles sapatos e ainda tinham a sola encharcada.

Fui dormir. Não houve grande excitação no dia seguinte, mais um certo medo de que o Menino Jesus tivesse mesmo entrado em minha casa e deixado qualquer coisa para mim.

Era verdade. Estavam dois embrulhos em cima do fogão ao lado do meu sapato. Era a minha prenda! – Posso abrir? Não esperei pela resposta.

Recordo um cachecol, peça que eu nunca tinha visto antes, nem sabia para o que era (tinha vivido sempre num país quente…) – a minha avó enrolou-mo no pescoço. Ui, pica…

O segundo embrulho era mais curioso. Pois o Menino trouxe-me umas meias iguaizinhas àquelas que a minha avó me andava a fazer há um mês. Eram mesmo iguais, em lã branca de ovelha. Só não vi o Menino Jesus, nem as suas agulhas amarelas, de latão, que devia ter usado para fazer umas meias como as da minha avó.

Ah e o meu sapato ficou estragado! O fogão era a lenha e a serrim, chamava-se um fogão circular, todo o tampo de cima era ferro fundido. Não repararei e quando lá escondi o sapato atrás das panelas, ainda devia estar muito quente. A sola estava molhada e dobrou ao secar – parecia um barco – foi a minha terceira prenda!

Nesse dia, só havia uma pergunta. Todos perguntavam uns aos outros – “Que te trouxe o Menino Jesus?” , “O que é que o Menino Jesus te deixou no sapatinho?”.

 O Pai Natal deve ser filho dele. Só o comecei a ver quando já apreciava a inocência dos outros.  Tive de ler as histórias sobre as suas viagens pelo mundo, não sabia que os Elfos o ajudavam e só quando tive netas soube que era preciso deixar “oats and glittering sprinkles”, que recordo a minha filha ter deitado no jardim ao fim do dia, para que as renas encontrassem a casa e comessem mais um bocadinho para continuar o seu caminho.

Já tinham cá chegado os filmes e a Coca-Cola, com o Pai Natal a entrar pelas chaminés, sem exaustores.

Felizmente em minha casa ainda há só chaminé!

 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Néstor Zavarce - Cinco Pa' Las 12 (Letra - Lyrics)

Com uns dias de adianto, ficam por aqui os votos de Novo Ano, com muitas saudades desta música.

domingo, 22 de dezembro de 2024

O carro eléctrico na Rua da Torrinha

 


Esta imagem, do Arquivo Municipal, datada de 1933, tem pormenores que me fizeram pensar, descubro algo, que se calhar passou despercebido a outros olhares, porque nunca li alguém a falar deste assunto. Vou tentar descobrir mais um pouco do passado.

A fotografia é da casa do nº 378 da Rua de Cedofeita, mandada construir por um dos irmãos Braga, na sua quinta, com ocupações desde a escola Alemã Von Hafe, à Pensão La Fontaine, até ao restaurante la Fontana mais recentemente, só com o nicho e a Fonte de Cedofeita já inactiva. Isso são histórias já contadas.

Quanto aos pormenores da imagem, que para mim são “por maiores” os meus olhos descobriram ”trilhos de eléctrico na Rua da Torrinha”. Conheço aquelas pedras da calçada, desde 1964 e não recordo, alguma vez, ter por lá visto ferro.  Com as dificuldades de encontrar folhas da nossa história, perdidas na “rede”, prometo que vou escavar o assunto por arquivos que um dia visite.

Para já, vamos a factos mais ou menos conhecidos.

Até 1844, a rua de Cedofeita era estrada de saída do Porto, não era rua pavimentada, facto que só veio a acontecer por volta de 1854, quando os passeios chegam à Torrinha.

A C.C.F.P. (Companhia de Carris de Ferro do Porto) começou a estender fio eléctrico como o que se vê na imagem, em algumas ruas já em 1895.

Parece que ficava a cargo da companhia o empedramento da rua, por onde o eléctrico iria passar, pois eram necessário estender os carris de ferro.  Encontrei no Arquivo do Porto, um projecto de 1902, para “empedramento a paralelepípedos na rua da Boa Hora, desde o extremo norte da rua do Rosário até ao extremo sul da rua da Carvalhosa”. Ou seja, apenas no troço até à Torrinha. Encontrei também um processo de 1906, para “empedramento a paralelepípedos da faixa de rodagem na rua da Torrinha, desde a rua da Carvalhosa, até à rua de Cedofeita”. Note-se que à data a actual rua de Aníbal Cunha era da Carvalhosa. O empedrado vinha desde a rua da Boa Hora até Cedofeita.

E o eléctrico? Que linha seria?

Numa listagem de linhas de eléctrico de 1912, encontrei a linha 16 – Massarelos – Cedofeita (Torrinha). A informação fica-se pela listagem das linhas, pelo que não fiquei esclarecido.

Não durou para sempre essa linha. Noutra listagem de 1958, a linha 16 era Batalha- Matosinhos. O que pode significar que a linha de eléctrico na Torrinha foi suprimida e quando eu lá passava, já nem trilhos havia.

Há outro pormenor na imagem que me fez recuar no tempo. A Casa Pinho já existia na década de 30! Era na esquina da Torrinha do lado esquerdo até chegar a Cedofeita. Um prédio de azulejo que ainda hoje o mantém, já remodelado. Era uma espécie de mercearia, mas mais do que isso, uma espécie de “casa tem tudo”. Nos anos 60, dava a ideia que estava sempre em liquidação – artigos muito antigos, preços muito baratos e montras muito estranhas. Para a Torrinha tinha mais de meia dúzia de montras, algumas que não eram mais do que janelas, com 15 ou 20 cm de profundidade, com acesso apenas pelo exterior da rua. Os artigos expostos ficavam desbotados e permaneciam meses ou anos sem alguém lhes tocar.

Na fotografia consigo ver a placa com o nome “Rua da Torrinha” e outra por cima, que adivinho, “Prohibido affixar cartazes”. Ao lado um grande cartaz, a anunciar um qualquer refrigerante, onde também esteve um cartaz do “Vinho do Porto Rainha Santa”, que se foi desfazendo com os anos, como estas palavras…

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Rua dos Bragas

A quinta Mirante dos Ingleses, a imediata dos Carvalhos do Monte, a de Santo António da Boavista ou das Águas Férreas – eram grandes quintas atravessadas pela Rua da Estrada, hoje rua de Cedofeita.  A água, que as atravessava, era um elemento comum que vinha do manancial de Paranhos e se juntava com o de Salgueiros; quando chegava cá a baixo tinha de ser aproveitada e por isso se construíram várias fontes por Cedofeita.

Vamos focar-nos hoje só numa das quintas – a dos Carvalhos do Monte que já em 1508 é referenciada com este nome e vem ligada à família dos Ribeiros Braga. Vamos deixar passar as gerações, de grandes lavradores, gente rica que exerceu funções do Santo Ofício e como Depositário geral da Décima do Porto, para fixar-nos na última geração dos Bragas e na sua boa vontade.

(Abro um pequeno parênteses, porque em pequeno também ia pagar a décima, dizia-se o pagamento relativo ao foro de um terreno foreio e mais tarde estendeu-se à contribuição predial. Por chiste, perguntávamos a alguém que levava guarda chuva, em tempo de sol, “Vais pagar a décima?”).

Chamemos então para a lide os irmãos José e António Ribeiro Braga – José, o mais velho, falecido em 1854, foi “cavaleiro professo na Ordem de Cristo”, segundo o Padre Rebelo da Costa. Os irmãos mostraram a sua benemerência oferecendo terrenos da sua quinta à cidade para romperem uma rua, a que merecidamente atribuíram o apelido deles – a Rua dos Bragas.

Num projecto encontrado no Arquivo do Porto, a propósito da casa que construiu na Rua de Cedofeira, em frente à Torrinha há pormenores curiosos. O primeiro seria mais uma artéria que pediu para ser aberta na sua quinta, ligando a projectada rua dos Bragas à rua do Mirante. Certamente não estaria a pensar em especulação imobiliária, não deveria ser sua intenção lotear a quinta. A curiosidade reside no topónimo proposto em planta – Travessa do Aqueduto.

Interessa-nos o termo “aqueduto”, porque vem justificar a segunda intenção de José Braga ao apresentar o tal projecto para a rua de Cedofeita, oferecia o terreno e queria que a Câmara construísse um chafariz integrado na sua casa para aproveitamento das águas, que por ali corriam, vindas do dito aqueduto.

A Câmara apoiou a ideia e construiu-lhe uma fonte inclusa, no rés-do-chão da casa a construir, tendo ainda acordado com a condição imposta, de lhe ceder “pena e meia de água”. Estranha medida esta, usada antes dos metros cúbicos. Algures, li que poderia ser a grossura de um fio de água corrente - “uma pena de pato”. Por outras contas, poderia corresponder a um litro de água por minuto. O que fazendo as contas daria aproximadamente 1,4 metros cúbicos, por dia. Logo a “pena e meia” seria pouco mais do que os dois metros actuais, por dia.

No cimo da fonte figurou a data – 1826 e durante muitos anos serviu a população. De tal modo que até melhoraram as condições para a recolha da água. Diminuíram a largura do tanque, em 1893, para permitir que as pessoas se abrigassem em dias de chuva. Parece que só foi desmontada muito depois dos anos trinta, e levada para o parque de Nova Sintra, onde hoje está instalada. Uma foto, que me muito me interessou, data de 1933 e a fonte ainda lá figura, no n.º 338 da rua.

Quanto ao edifício da fonte, no decorrer dos anos, também nos deixou histórias para contar.

O primeiro colégio alemão da cidade, falarei dele mais em detalhe a seguir,  instalou-se por lá em 1855. Meio século depois, foi pensão com nome francês – La Fontaine – evocando a fonte no rés-do-chão. Depois de retirada a fonte, já é dos meus dias uma loja de lãs e linhas de tricot, que acho chamar-se “Branca”. A restauração voltou ao local, bem como a evocação da fonte – era um restaurante italiano, que teve a feliz ideia de se chamar La Fontana. Foi-se… Agora chegaram lá os do “ramen” e tiraram-lhe o romantismo todo.

Voltando ao colégio, o edifício foi o berço do actual Colégio Alemão. Na verdade, em 1855, um padre criou a Von Hafe Schule e vemos pela imagem que se tratava de uma escola para meninos. Anos mais tarde, em frente, na rua da Torrinha, criaram o Colégio Liverpool, para “Educação de Meninas” como pintado, em letras garrafais, na parede.

Só a “vol d’oiseau”, para mudar de língua, a Von Hafe Schule ainda mudou para outra casa na rua de Cedofeita, em 1861, depois foi para a rua da Restauração, em 1901, onde alterou a designação para Deutsche Schule zu Porto.

Veio a guerra e em 1916, todos os alemães e os seus descendentes até à terceira geração foram extraditados, ao mesmo tempo que o património alemão era confiscado e o funcionamento do Colégio Alemão foi suspenso.

Já agora, os Von Hafe ligaram-se a outros negócios e na década de 60, conheci muito bem os que tinham uma indústria de metalurgia no Largo de Alexandre de Sá Pinto, porque eram nossos clientes – uns “chatos” porque tinham de levar uma factura de cada compra e só pagavam o resumo no final do mês – contas à alemão e não “à moda do Porto”.

Mas, voltemos aos Bragas que nos trouxeram aqui hoje. A rua foi aberta ou concluída por volta de 1824 e ainda teve de esperar quase 50 anos para ver nascer uma das jóias da arquitectura industrial portuense – a Companhia Aurifícia. Não sou do tempo, ou pelo menos não era cliente, dos artefactos de ouro e prata que lá trabalhavam, mas vendi muitos quilos de pregos de arame e muitas caixas de grosas de parafusos, para madeira e para ferro, com medidas inglesas múltiplas e submúltiplas da polegada. Que bem recordo aquelas caixinhas de cartão que encaixavam uma na outra com uma etiqueta verde em cima – “Companhia Aurifícia – Parafuso madeira 3/8”.

A fábrica, que ocupou terrenos das quintas dos Bragas, foi fundada em 1869 e ocupou uns 30 mil metros quadrados, estendendo-se até à rua de Álvares Cabral. Durante quatro gerações esteve nas mãos da família Pinto Leite e em finais do oitocentos, o cartão de publicidade salientava na capa, não os produtos, mas sim à máquina a vapor, que funcionou até 2006.


Antes de fechar portas, a fábrica foi vendo nascer outro edifício emblemático da Rua – a Faculdade de Engenharia, que começada a construir em 1927, só em 36/37 teve os seus primeiros alunos. Não obstante a monumentalidade da obra, que além dos terrenos da quinta dos Bragas, devia ter ocupado terrenos da quinta do Mirante, chegados a 2000, tiveram de mudar de instalações, para a Asprela. Muito curioso, o disfarce exterior de cotas, porque visto do passeio o edifício da Rua dos Bragas, tem uniformidade, e não nos apercebemos da inclinação da rua, resolvida pelas diferentes alturas dos edifícios, como demonstra esta imagem do site da FEUP.


Os edifícios da Asprela foram a última obra pública que o meu pai fiscalizou. Recordo as agruras por que passou, nos últimos tempos, com alterações de última hora que os “senhores engenheiros” queriam que lhes fizessem, antes de tomarem conta dos espaços, bem como das infindáveis escadas que teve de subir e descer, porque os elevadores ainda não funcionavam.  

Muito ainda havia a dizer sobre a rua dos Bragas, começando pelo doce – a confeitaria Royal, lá em cima, sem esquecer repartições públicas - a Circunscrição Industrial, onde também ia “pagar a décima”, até espaços mais religiosos e culturais como a Capela de Nossa Senhora dos Anjos ou a velha Livraria Reis ou mais pobres como as várias ilhas que se escondiam lá para trás, até ao café da esquina o Latino, onde os estudantes “faziam noites de despesa de quarenta contos” e pagavam no dia seguinte. Deixo ficar a notícia do Público com mais de vinte anos:

"Estamos despidos", afirma José Azevedo, gerente do Café Latino, onde cerca de 50 alunos se juntavam no fim do dia para tomar uns copos. Os estudantes consumiam de tudo: francesinhas, cachorros, tostas mistas... "muitas cervejocas e até uma garrafita de whisky de vez em quando", conta José Azevedo. Para o gerente, tê-los por perto "era uma alegria", eles aproximavam as poucas mesas circulares do estabelecimento e faziam ali mesmo uma grande festa, cujo consumo podia chegar até aos quarenta contos. "Deixava-os pagar no dia seguinte e olhe que nunca deram prejuízo à casa", conta.

https://www.publico.pt/2000/09/14/jornal/pessimismo-na-rua-dos-bragas-148672

Fica para amanhã a foto da Fonte de Cedofeita, porque  descobri um pormenor que é um grande "por maior".


terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Cemitério de cavalos e burros

Hoje em dia, que tanto se fala nos direitos dos animais, acho que não conheço nenhum cemitério para animais. No entanto, há quase duzentos anos, os edis portuenses já se preocupavam onde dar sepultura aos bichos.

Um título destes hoje estranha-se, mas nos finais do século XIX parece que havia mais do que um cemitério de irracionais. E, em Agramonte, onde hoje estão humanos começaram a enterrar animais por lá.

Não traria este tema para aqui, se não me tivesse deparado com ele em “O Tripeiro” de 1909, 1ª série – ano 2 – pág. 111.

O artigo é intrigante, pois coloca em plena zona nobre da cidade um cemitério de cães, num terreno entre a rua de D. Pedro e a Rua do Laranjal. Estavámos então no que é hoje o coração da Invicta - a Praça da Liberdade. À época era o bairro do Laranjal. Na foto que encontrei no CPF, podemos identificar o Hotel Francfort, mas não nos dizem que foi construído em cima de um cemitério de cães.

 

«A antiga rua de D. Pedro é actualmente parte integrante da Praça da Liberdade. Em 1916 foi demolido o edifício que serviu de Paços do Concelho, a norte da Praça da Liberdade, bem como diversos arruamentos vizinhos — ruas do Laranjal e de D. Pedro. Nesta fotografia pode ver-se o famoso Hotel Francfort demolido por volta de 1917.»

Mas o artigo não fica pela praça. Vem cá acima ao Monte Pedral. Vou transcrever as palavras do artigo com a grafia à moda para não se ficar chocado com os actos:

«No alludido terreno eram esfolados os cães apanhados na rua por trabalhadores da camara. Alguns dos corpos d’aquelles animaes ficaram alli sepultados, outros eram levados para o Monte Pedral.»

Antes de voltar ao monte, quero só abrir um parêntesis, para as minhas memórias da “rede”. Se no artigo estávamos em meados do XIX, eu avanço um século ou mais e vejo os pobres dos cães da minha rua a fugir desalmadamente – Chegara “a rede”. Até no Porto, recordo ter visto um grupo de homens com uma rede enorme que tentavam apanhar os cães vadios e não só. Mesmo um Lulu com lacinho podia ser apanhado. Normalmente conseguiam fugir e as pessoas escondiam-nos em casa. Ríamo-nos das inabilidades dos “caçadores” mas ficávamos com muita pena dos bichinhos que eles levavam, porque diziam que os matavam. Parece que acontecia se não fossem imediatamente procurados e se não pagassem a respectiva multa.

Andava em pesquisas sobre a actual rua da Constituição e descobri que no Monte Pedral, que foi dificilmente rompido para a rua passar, tiveram de desistir de um cemitério para cavalos que já por aí existia em 1858.

Já agora, deixo este verbete de Pinho Leal que confirma que, pelos anos de 1840, em Agramonte começou-se por um cemitério para irracionais, fazendo-se depois uma divisão para os pobres que falecessem no Hospital da Misericórdia. Por fim, transformou-se em cemitério público.

 

23 de Setembro de 1858 – Nota sobre o Cemitério de Cavalos no Porto, no Monte Pedral:

“Lugar onde no Porto, costumam ser enterrados os cavalos e burros”, na última página do jornal “O Diabo a Quatro”, em nota ao poema “Ao charadista de Villa Meã (derriça em rima)”:

Q’rias subir ao Parnaso,
Pobre, orelhudo animal?!
Sai-te p’ra baixo, mesquinho!
Sai, que erraste o caminho,
Subiste ao Monte Pedral!

(Notícia / Nota gentilmente cedida por ADRIANO SILVA – PORTO DESAPARECIDO)

Ali pelos finais da rua Constituição, por onde ficaria o cemitério, em terrenos camarários, foi erguido um dos primeiros Bairros Operários, com risco do famoso arquitecto Marques da Silva, autor de tantas obras emblemáticas na cidade do Porto. Mas isso é uma longa história e fica para uma próxima.

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O lenço de mão

 

Aproxima-se o Natal, a reunião da família, os doces, o bacalhau e as prendas…

Voltando ao passado, a maior fatia dos presentes era roupa, para reforçar as defesas contra o frio do inverno. Em muitos casos, eram as benditas meias que figuravam como imprescindíveis. Hoje, a figura maior nestas minhas cogitações vai ser o lenço. Posso começar pelo lenço de assoar, que fez falta a uma criancinha hoje na feira. Eu não me apercebi, porque estava a encher um saco de tangerinas. A criança precisava de um lenço, a mãe não tinha, a vendedeira também não, ouvi-a dizer “Vou ali à padeira pedir um guardanapo.” E vejo a minha mulher a oferecer-lhe um lencinho de papel cor-de-laranja. Acabou a história e começa outra.

Já agora um parêntesis – a padeira tinha uma dúzia de sacos de papel com os seus segredos fechados. Disse-me que fazia o pão como a mãe lhe ensinara, mas agora juntava-lhe muitas sementes e espalhava-lhe umas folhas de erva-príncipe pelo meio, para perfumar. Cozia a lenha, ainda em cima de uma folha de couve, como se fazia em minha casa. Na verdade, o sabor que mais notei foi o da côdea, que sabia a couve galega. Benditas terras das “Arcas” que não deixam cair a tradição.

Fechadas as compras, voltemos aos lenços. Primeiro os de assoar. Conforme a qualidade, podiam comprar-se à dúzia ou à unidade, devidamente embalados em envelopes de celofane, com uma mini carta de jogar, como brinde.

Nunca se saía de casa sem um ou dois lenços no bolso. Não falemos de questões de higiene, nem como ficavam aqueles panos quando andávamos constipados. Pensemos neles apenas, devidamente passados a ferro e dobradinhos.

Ainda recordo uns lenços enormes, vermelhos, de pano mais grosso – eram os tabaqueiros – que só os velhotes usavam. Eram tabaqueiros, porque serviam para limpar os espirros do tabaco de rapé que “aspiravam”. Eu gostava de usar esses lenços à “cowboy”, dobrados em bico e atados atrás do pescoço, com um ou dois nós e a tapar o nariz. Hoje são acessórios folclóricos.

os lenços de senhora eram de cambraia fina e quase metade do tamanho dos dos homens. Mais bonitos e mais cheirosos, já que passava por eles água de colónia.

Quanto a lenços pequenos, também os havia para usar no bolso do casaco, com uma técnica de dobragem em dois ou três bicos, única parte que ficava à mostra.

Hoje ficam de fora os lenços de pescoço e da cabeça, porque sozinhos dão outro tratado de cachené. Só duas palavras sobre os “lenços de amor” ou “lenços de namorados”, de Viana e de outras terras minhotas, com bordados tão bonitos e com aqueles dizeres vindos do coração.

A utilização social do lenço, sem ser para assoar o nariz, merecia outro tratado. Desde as manhas de deixar cair o lenço, às amabilidades de oferecer um lenço para socorrer um pequeno imprevisto, ou até um escorregão na calçada, para tudo o lenço servia. Nos momentos mais emotivos, o lenço estava lá – na tristeza e na alegria – dos funerais ao casamento, ou até nas “fitas” que víamos no escurinho do cinema. Recordo a minha filha que no dia de casamento, ofereceu um lencinho a todos os convidados jovens, para dizerem adeus à boa vida de solteiros.

O lenço branco, na simbologia do adeus, sempre apareceu para acenar ou à Virgem ou aos que partiam no comboio ou no barco, para a guerra. Mais prosaicamente, ainda hoje servem para despedir treinadores, mesmo com lenços de papel.

Finalmente, dois provérbios e a sua simbologia. “Pelo São Lourenço vai à vinha e enche o lenço”. Pelo São Tiago, eu já olhava para os cachos, porque “pintava o bago”. Pelo São Lourenço já era possível apanhar uns baguitos maduros.

Dar lenços é apartação”. Isto significava que não se devia oferecer lenços de prenda às pessoas de quem gostávamos, porque corríamos o risco de se separarem de nós. Mas havia um antídoto para tal acto – na caixinha dos lenços, punha-se uma moeda de tostão e resolvia-se a “apartação”.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Calista do Porto

 

Esta fotografia não é a da pasta do Calista do Porto, mas podia muito bem ser. A dele era igual àquilo que à época se chamava uma "pasta de engenheiro", de couro muito velho, com muitas andanças e com estes mesmos dizeres, mas muito mais bem pintados pelo meu pai, do que este arremedo fotoshopista que eu fiz. 
Não havia pedicures nem podologistas e muita gente sofria dos calos mas nós sofríamos dos "calotes".

O calista percorria a cidade e arredores, fazia os seus domicílios, saía de manhã e chegava ao cair da tardinha. Morava por cima da drogaria, por isso, mal chegava a casa descia de imediato. Garrafa e frasco na mão, era quase sempre dos últimos clientes - quartilho e meio de petróleo e dez tostões de álcool desnaturado. Estas vendas de cinco tostões disto e dez tostões daquilo eram o pão nosso de cada dia. Por isso nunca saímos da cepa torta.
Mas hoje é para falar do calista. Os instrumentos de tortura que ele usava, felizmente nunca nos meus pés, conhecia-os de tantas vezes ele ter escancarado a pasta de calista à minha frente.
Uns ferros afiados, tesouras, navalhas e lâminas não sei se de tortura, se de terror.
Um pacote de algodão, frasquinhos de mercuriocromo, tintura de iodo e álcool a 95º compunham o ramalhete.
Falta descrever o mais importante - a pomada para os calos. Como já passaram mais de 60 anos, acho que os direitos de autor caducaram e eu até podia desvendar-lhe os segredos.
Vou levantar só uma pontinha do véu... Até as caixinhas lhe fornecíamos.
Ainda lembro as primeiras de papel encerado, depois veio o plástico e o Calista lá levava à dúzia de cada vez.
Quando o calista precisava de fazer a pomada chegava mais cedo a casa. Já tinha passado pelo merceeiro vizinho e trazia na mão um cartucho de farinha triga. Os outros ingredientes aviava-os na drogaria. Cem gramas de vaselina sólida, quinze tostões de corante amarelo solúvel em água - "auramine GL" e um frasco de 200 ml de ácido. Aqui residia o segredo. Não desvendo qual era.  Deixo os sais, posso revelar o cloreto de sódio, que podia aproveitar do choro de algum/a padecente, mas os ácidos não. Bem, revelo a minha primeira experiência. Era sempre o meu pai que fazia o baptismo do "ácido", não fosse o homem furar um dedo a alguém. Um dia, ele não estava e eu armei-me em químico - Pum! explodiu e partiu-se o frasco nas minhas mãos. Por razões profissionais não explico porquê.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

O “prefixó-mercado”

Mercearias, pomares, tascos, casas de pasto  e outras lojas… Tanto sítio onde comprar comida...

Acho que o grupo de lojas do ramo alimentar, como hoje se classificam, era o mais numeroso da minha rua, porque falando só na Torrinha de baixo, lembro-me de pelos menos oito ou nove. 

Hoje em dia, temos quarteirões inteiros sem uma mercearia ou um pomar. Antes, viviam porta com porta e todos sobreviviam. Cada um tinha as suas especificidades e nós escolhíamo-los consoante as nossas necessidades. Também havia os que gostavam de ir deixando os seus calotes e iam pregando aqui e ali.

Infelizmente na Torrinha, só faltava a "Flôr". Quantas "flor" não houve por esse Porto fora e que saudades eu  tenho das casas de pasto, das mercearias e dos pomares que ostentavam a tabuleta - A Flôr daqui, A Flôr dali...



Fiquemos com esta relíquia, agora retirada do livro "As Ruas do Porto", de Luís Miguel Queirós, porque embora a casa ainda lá esteja na dita travessa, os comeres são só para turista.

Acabou o comércio local. O “prefixó-mercado” há muito que o matou.

Começaram por mini-mercado, passaram a pequeno-~, super-~, depois a hiper-~… e nunca mais pararam. A moda foi tal que até os hífens comeram - supermercado, hipermercado.


Agora até precisam de sufixos, acabam em ~ão ou ~ona (Bazarão, Mercadona). Fiquemos hoje com esta má memória.

O triunfo de D. Manuel

Rua do Triunfo, rua do Heroísmo, rua da Firmeza, rua da Alegria, rua da Restauração … (rua da Lealdade) são designações toponímicas encomiásticas da vitória liberal na cidade do Porto. Deixei propositadamente entre parênteses a “Lealdade”, um valor tão querido aos apoiantes de D. Pedro, mas esta designação não faz parte deste conjunto de alterações. A actual rua de Álvaro de Castelões, visconde, engenheiro, colonialista, nada teve a ver com o liberalismo, nem a anterior designação desta artéria, que ganhou o nome de uma fábrica de tabaco existente ali por perto, já em Costa Cabral, a fábrica “A Lealdade” - que quando a conheci era jardim de infância da OSMEC, obra social do ministério para quem eu trabalhava.

Fábrica de Tabaco “A Lealdade”
Por hoje, vou fixar-me apenas no “Triunfo”. A rua já existia antes de ser renomeada. Era uma das saídas da Porta do Olival, que não descia a Restauração mas ia mais por cima, em direcção à Foz. O Hospital de Santo António atravessou-se-lhe no caminho e só começa a ser rua, depois, em direção à quinta da Torre da Marca, onde foi construído o Palácio de Cristal. Como a rua Júlio Dinis ainda não tinha sido aberta, o caminho era pela velha rua de Vilar, continuando pela rua da Rainha D. Estefânia, Campo Alegre… Mas estamos a alongar-nos, porque a designação da rua ficava pela Torre da Marca. Mais acima, em data setecentista, pouco precisa, começaram a construir uns aquartelamentos militares, que vão originar o nome da artéria durante muitos anos – rua dos Quartéis. Estas raízes bélicas agarram-se ao solo e demorou muitos anos a plantar por ali o estabelecimento de saúde que hoje existe. Destruídos os aquartelamentos, um imóvel oitocentista, ocupou grande parte da rua e os militares também. Primeiro o regimento de Infantaria 6, depois o Batalhão de Metralhadoras 3 e quando eu começo a passar por lá, o quartel era conhecido como o CICA 1 - (Centro de Instrução de Condutores Auto). Era um bom sítio para ir fazer a tropa, porque pelo menos saía-se de lá com a carta de condução. Lembro-me de passar por tantos instruendos em jipes ou camionetes, com a matrícula ME, que distinguia todos os veículos do Ministério do Exército. Mais tarde pelo 25 de Abril, o quartel desempenha papel relevante como posto de comando alternativo, com o Quartel General. Para mim o espaço teve mais uma letra - era o CICAP, que durante muitos anos depois do incêndio na reitoria dos Leões, foi sede da Reitoria da Universidade do Porto.

Falando em ensino, até um liceu poderia ter ficado por ali. O arquitecto Marques da Silva, em 1901, elaborou o projecto para um edifício do Liceu do Porto que deveria ser erigido na rua do Triunfo. Mas o projecto não avançou e optaram pela sua localização no Bonfim e em Cedofeita para o Alexandre e o D. Manuel. A rua, à data, ainda não era D. Manuel II e se o liceu fosse para lá até podia ser razão para a renomear – ainda estávamos na monarquia.

Voltando à rua e ao Palácio de Cristal, ficaram boas memória desses tempos pós 25 de Abril. No Palácio, houve fins de semana culturais e o 1.º Encontro Livre da Canção Popular, realizou-se em 6 de Maio de 1974, com a presença de Luís Cília, Zé Mário Branco, Zeca Afonso, Fausto, Adriano e muitos outros. Pelo lado da política, lembro especialmente o 1.º Congresso do CDS, em 1975, em que os apoiantes encheram o pavilhão e ficaram cercados por manifestantes de extrema-esquerda, com palavras de ordem como “Morte aos fascistas”, com tiros e “cocktails molotov” para animar a noite, até o COPCON ir lá “serenar” os ânimos.

Estes tempos foram muito “livres” e até permitiram que um grupo revolucionário baptizasse a rua como – Rua José Estaline. Pintaram-lhe as placas, mas a comissão toponímica da Câmara não aceitou.

Cá para mim, a rua foi sempre D. Manuel II e nunca pensei na razão de o topónimo ter sobrevivido aos ideais republicanos. Para isso, vamos debruçar-nos um pouco sobre o edifício mais importante desta rua que está na origem do topónimo actual. Estamos a falar do Palácio das Carrancas. Começaram a construí-lo nos finais dos setecentos e hoje não vale a pena contar-lhe a história. Só lembrar que foi residência de personalidades famosas, de vários lados políticos, como os generais das Invasões Francesas de um e de outro lado – Soult, Wellesley e Beresford. D. Pedro IV fez dele quartel general, até a metralha lhe cair e cima e recuar para Cedofeita. Maltratado o Palácio, foi anos mais tarde vendido à Casa de Bragança que o recuperou e foi mesmo escolhido como residência oficial dos reis portugueses, nas suas vindas ao Porto. Com a implantação da República o palácio esteve muitos anos fechado.

Na véspera de 5 de Outubro de 1910, o rei partiu para Inglaterra porque já sabia que no dia seguinte ia ser deposto.  Mas D. Manuel foi um rei “patriota” e mesmo no exílio fez uma “obra de caridade”, oferecendo o Palácio à Santa Casa da Misericórdia do Porto. O rei, amigo das letras e do conhecimento, sabia que era preciso salvaguardar a cultura.

Em 1937, o museu do Porto – O Museu Allen- já não cabia lá em baixo, na Restauração. A Santa Casa cede o palácio à Câmara para instalar o que hoje é o Museu Nacional de Soares dos Reis. Pela gratidão do acto monárquico, a Câmara, em plena República, aprova o nome do rei, para memória futura desta rua – Rua D. Manuel II. Dos Quartéis ao Triunfo, venceu a monarquia.

foto in https://monarquiaportuguesa.blogs.sapo.pt/palacio-dos-carrancas-71121

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Casas onde se comia bem

 

Reforço o tempo verbal, porque não me cabe influenciar ninguém, nem promover qualquer recanto “restaurador” como hoje querem dizer. Prefiro trazer à superfície as sugestões de outros tempos, que agora podem provocar desdém ou quiçá água na boca.

Uma boa refeição não começava com amuse-bouche, canapés ou hors-d’oeuvres, se estivéssemos só a pensar na cuisine française.

Não, nada disso. Comecemos com um caldinho quente. Prepara o estômago para o que vier e um bom sítio ficava no largo do Carmo, mesmo em frente ao quartel a Guarda Municipal. O nome do sítio não enganava ninguém – era o Caldos de Gallinha, mas depois da canjinha, ninguém resistia às Tripas à Portuguesa, que eram uma especialidade. Curioso que não eram “à moda do Porto”. Recordo as casas de pasto da minha meninice, que às 4.ªs ou 5.ªs feiras, punham na montra o letreiro “Hoje Há Tripas”.

O peixe, dizia-se que “não puxava carroça”, mas desta vez vamos procurar animais de respeito à Cascata, na Praça Nova. Eles tinham uma pescada frita de encher o olho. Dizia-se que era a casa que comprava as maiores pescadas. Os cronistas da época esticavam muito os braços – diziam que tinha pescadas de dois metros. Cá para mim, já ficava feliz com as pescadas da Póvoa que as pescadeiras seguravam pelas guelras e vendiam em frente ao casino – um metro bem medido.

Alguns comensais preferiam ir comer o peixe frito e salada ao Reimão, que ficava ali a seguir a S. Lázaro, depois de terem apreciado as senhoras a passear no jardim. Outros iam mais longe, à Ponte da Pedra, à Casa Ferreira, à procura do ensopado de enguias, porque a Estalagem lá do sítio era mais para ir com as coristas e as actrizes do teatro.

Bocas diziam que “quem carne come, carne cria, livra-te do peixe, que é criado na água fria”. Esses tinham de procurar pratos mais substanciais e um bom bife sempre atraiu. Ali na rua do Bonjardim, o Lisbonense fazia uns bifes de cebolada que eram de comer e chorar por mais. Boa alternativa era ir mais para baixo, onde tínhamos uma boa casa à nossa espera – o Malhão, com uma “bella vitella ensopada”- um peito de vitela com batatinha nova e ervilhas de quebrar.

Se querem um bom conselho, procurem junto das estações dos comboios. O cliente vai com pressa e se for bem servido volta, porque das viagens também volta. Na Rotunda (para os de cá já sabem que é da Boavista, porque Praça Mouzinho de Albuquerque é só para assinalar nos mapas) havia o Sentieiro. Ficava mesmo junto à estação, tinha um agradável jardim nas traseiras e era tão famoso pelos seus petiscos como pelas suas ceias.

Outro sítio onde se deve procurar é junto de feiras e mercados. Encontrei em [O Tripeiro. - Porto. - Série 3, Ano 2, nº 39 (1927), p. 237] um anúncio de página inteira da Cozinha Económica, junto ao Mercado do Anjo.

Não resisto a deixar aqui as regras fundamentais para quem quiser abrir uma casa de bem comer, que nos dias que correm tanta falta fazem. Esqueçam o acordo ortográfico e concentrem-se nos sublinhados, que nem são meus:

E como hoje é Quinta-feira destaco:

«Tripas com grão de bico ou feijão, chispe, mão de boi, chouriço, etc, a 40 réis cada ração. – Barateza excepcional

Acho que tenho de deixar aqui o anúncio inteiro, porque há muito por onde escolher e ideias para cozinhar.


Como estamos perto do mercado, um saltinho ali à Praça de Santa Teresa, onde faziam a feira do pão e onde ficava o João do Buraco. Ainda hoje, o Bacalhau à João do Buraco figura aí por muitos livros das 100 receitas de cozinhar bacalhau. Respingo uma descrição feita em [O Tripeiro. - Porto. - Série 3, Ano 1, nº 7 (1926), p. 110-111]:

« […] aquillo foi durante muito annos uma reles taberna onde comiam os almocreves, as hortaliceiras e as padeiras que vinham de Avintes e de Valongo para o Anjo. Com o tempo, tomou o nome de restaurante e celebrizou-se pelo seu bacalhau assado na braza, com batatas, alhos, bom azeite e azeitonas pretas […]».

Já que acabamos com feiras e mercados, lembrem-se que devem evitar os almoços de negócios. Para o justificar, respingo do mesmo sítio, uma frase a este respeito:

«Nos restaurantes de 1949 a ementa não varia. Todos servem os mesmos pratos e de qualquer maneira - a freguesia não é exigente. Eles não vão para comer, vão para ver se comem os outros. Negócios… Negócios…».


terça-feira, 10 de dezembro de 2024

BARBEARIA DO TONINHO

Aqui nesta foto, vejo a renovação mais conseguida da minha rua. Já tive a oportunidade de passar por lá e ver as traseiras destas casas que mantiveram umas tiras de quintalitos, reabilitação bem feita mesmo das caves destas casas.  A memória ainda fica nesta janela-porta de vidros aos quadradinhos – era a barbearia.

a renovação residencial – confronte-se com imagem da barbearia de portas verdes

O Toninho foi o nosso barbeiro durante muitos e muitos anos, vivia na casa ao lado, com os pais e a irmã, costureira; lembro-me do casamento dela e de uma frase que o irmão disse nesse dia ou na véspera “Hoje o Zé (o noivo) tem de afiar o canivete”, hum? Bem, termos de gente grande… A rapariga é que já não era costureira, era quase modista a competir com a famosa Candidinha. A grande modista da época era a dona Candidinha, onde muitas mães de posses fizeram ou mandaram fazer um vestido, um enxoval ou o saial para o baptizado da criancinha.

 O Toninho barbeiro, como não podia deixar de ser, também era nosso cliente – fornecíamos-lhe o pó de sabão da Claus, por exemplo. Tinha umas tacinhas de prata para pousar o pincel, um pouco de água no fundo, uns pozinhos no pincel que estava pronto para ensaboar a cara.


No meu tempo era mais cabelo, quase sempre “meia cabeleira comprida”, e mais pequeno era “meia cabeleira curta”, mas a maior parte das vezes era só um "caldinho". Os clientes também não eram muitos e ele gostava de dar o gosto à tesourinha. Na altura, não havia máquinas eléctricas – se fosse “à máquina zero”, sinal que se ia para a tropa, a máquina-tesoura era mecânica.

Os complementos para barba e cabelo, o Toninho também comprava na drogaria. O lápis cutoline, para estancar o sangue, mais para revender a algum cliente, porque ele usava a pedra hume que nós também lhe vendíamos avulso. Assim como o pó de talco e a laca alemã, marca A.Costa.

O famoso creme bálsamo 444, para depois de barbear, ou um after shave Gibbs, Aqua Velva, Floyd, Tabak ou OldSpice, tudo marcas ainda hoje no mercado.

 

O cabelo também precisava de tratamento e não podia faltar o Restaurador e o Petróleo OLEX.

Quanto ao restaurador, loção para disfarçar as brancas, a fórmula do caseiro, feito pelo meu pai, era bem mais eficaz e económica. Era um líquido amarelo, cujos componentes nunca divulgarei, que era necessário agitar, porque os pózinhos precipitavam… e lá tinha a frase imprescindível no rótulo: “Agitar antes de Usar”.

Há tesourinhos deprimentes, na rede, onde estas relíquias do passado ainda são trazidas para o presente.


Imagens da publicidade na TV ao Restaurador OLEX

“Um preto de cabeleira loira ou um branco de carapinha não é natural.
Natural é cada um andar com a sua cor de cabelo – Restaurador OLEX…”


Há pouco tempo, descobri uma etiqueta da loção capilar, que andava no meio de um livro como marcador. As etiquetas são outra memória da drogaria, de que não ficou rasto. Tínhamos dezenas de produtos manipulados ou simplesmente empacotados, cujas frascos iam devidamente etiquetados com um rótulo de marca da casa – uns rectângulozinhos com letras azuis.  

Ficam as memórias dos clientes, como o Toninho que, antes de abrir de tarde, (só o podia fazer depois das três para os clientes fazerem a digestão) ainda passava pela drogaria para dois dedos de conversa e para dar uma espiadela no nosso Jornal de Notícias, que o meu pai comprava, sacramentalmente todos os dias, a ver se as palavras cruzadas estavam completamente resolvidas e ver a solução de alguma que lhe tivesse falhado.





segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Ontem fui à minha terra e comprei uma regueifa.

 

Ontem fui à minha terra e comprei uma regueifa. Tinha saudades de sabores antigos, quando as várias padarias competiam para apresentar o melhor produto. As regueifas foram sempre entrançadas e arredondadas, sem lhes faltar os enfeites – torcidos, espigas, folhas ou rosquinhas. Os adornos serviam para “tirar a prova” e levar o pão “inteiro” a casa. Com sorte, ontem, ainda arranjei uma regueifa redonda e de ½ kg porque a família não chega para uma daquelas de dois quilos de antigamente.

Os vulgares “pão quente” que por aí abundam só se atrevem a fazer “roscas” ou “tranças”, como dizem lá mais para o norte, fazem o entrançado mas não arredondam.

As grandes padarias lá da terra eram de três famílias e todas as semanas eu via chegar as camionetas com carqueja e lenha para os fornos. Mas o cheiro do pão quente também entrava pela nossa casa, porque a Beta era nossa vizinha, tinha só uma casa a separar-nos. Só no dia em que a padaria ardeu é que o cheiro foi mau.

Uma receita tão simples – água, farinha, crescente e sal, como não é possível fazer igual hoje. A água é lixiviada, as farinhas fraquejam logo no grão, porque o trigo vem desses confins, onde é produzido com os melhores pesticidas, adubantes e fertilizantes, para dar o melhor rendimento e a pior qualidade. E o crescente já não faz fermentar, vem incorporado na farinha, é só preciso deitar água.

Acabou a reza que a minha avó me ensinou, quando benzia a massa e dizia: “São Mamede te levede, S. Vicente te acrescente, S. João te faça pão e te cubra com a sua divina mão.” Não foi por acaso que os Valonguenses escolheram o S. Mamede para seu padroeiro – o seu pão e biscoitos oitocentistas tiveram sempre a mão destes santos.

As padeiras de Valongo também gostavam mais de Ermesinde. Aqui, paravam muito mais comboios que em Valongo, não só os da linha do Douro como também os da linha do Minho. Pela grande afluência de passageiros, demoravam-se alguns minutos, tempo suficiente para o negócio. As padeiras vinham com as suas canastras carregadas de regueifas, tapadas com meio lençol branco que atavam com uma fita. O local preferido de venda eram as plataformas da Estação de comboios. Enfiavam, uma dúzia de regueifas em cada braço e iam às janelas do comboio servir os clientes. “Merca reguei….faaa”, “Olhá regueifa de Valonnn… go!”. Quando o comboio partia, às vezes ainda tinham de ir apanhar uma ou outra moeda que tinha caído à linha, no meio das pedras.

Voltando aos sabores, a minha preferida foi sempre a regueifa da Ramadinha, de Ermesinde. A padaria já não existe. As águas lá em cima eram mais limpas, boas farinhas mas havia um segredo – a manteiga. A regueifa já levava manteiga na massa. Era um crime chegar a casa, com a regueifa ainda quente derreter-lhe mais manteiga por cima. Quem o fazia?... Chegava a que tinha.

Se quisesse ser crescido, então no Outono ou no Inverno, comia-se com nozes e como o povo dizia:

“Regueifa com nozes sabe a casar”. Também acho que casava muito bem.

PS. Já agora comprei a regueifa, na terceira padaria da terra, não digo o nome, deixo só este painel pisteiro, porque sou amigo e bati-lhe à porta…