A quinta Mirante dos Ingleses, a imediata dos Carvalhos do
Monte, a de Santo António da Boavista ou das Águas Férreas – eram grandes
quintas atravessadas pela Rua da Estrada, hoje rua de Cedofeita. A água, que as atravessava, era um elemento
comum que vinha do manancial de Paranhos e se juntava com o de Salgueiros;
quando chegava cá a baixo tinha de ser aproveitada e por isso se construíram
várias fontes por Cedofeita.
Vamos focar-nos hoje só numa das quintas – a dos Carvalhos
do Monte que já em 1508 é referenciada com este nome e vem ligada à família dos
Ribeiros Braga. Vamos deixar passar as gerações, de grandes lavradores, gente
rica que exerceu funções do Santo Ofício e como Depositário geral da Décima do
Porto, para fixar-nos na última geração dos Bragas e na sua boa vontade.
(Abro um
pequeno parênteses, porque em pequeno também ia pagar a décima, dizia-se
o pagamento relativo ao foro de um terreno foreio e mais tarde
estendeu-se à contribuição predial. Por chiste, perguntávamos a alguém
que levava guarda chuva, em tempo de sol, “Vais pagar a décima?”).
Chamemos então para a lide os irmãos José e António Ribeiro
Braga – José, o mais velho, falecido em 1854, foi “cavaleiro professo na
Ordem de Cristo”, segundo o Padre Rebelo da Costa. Os irmãos mostraram a
sua benemerência oferecendo terrenos da sua quinta à cidade para romperem uma
rua, a que merecidamente atribuíram o apelido deles – a Rua dos Bragas.
Num projecto encontrado no Arquivo do Porto, a propósito da
casa que construiu na Rua de Cedofeira, em frente à Torrinha há pormenores
curiosos. O primeiro seria mais uma artéria que pediu para ser aberta na sua
quinta, ligando a projectada rua dos Bragas à rua do Mirante. Certamente não
estaria a pensar em especulação imobiliária, não deveria ser sua intenção
lotear a quinta. A curiosidade reside no topónimo proposto em planta – Travessa
do Aqueduto.
Interessa-nos o termo “aqueduto”, porque vem
justificar a segunda intenção de José Braga ao apresentar o tal projecto para a
rua de Cedofeita, oferecia o terreno e queria que a Câmara construísse um
chafariz integrado na sua casa para aproveitamento das águas, que por ali
corriam, vindas do dito aqueduto.
A Câmara apoiou a ideia e construiu-lhe uma fonte inclusa,
no rés-do-chão da casa a construir, tendo ainda acordado com a condição imposta,
de lhe ceder “pena e meia de água”. Estranha medida esta, usada antes dos
metros cúbicos. Algures, li que poderia ser a grossura de um fio de água corrente
- “uma pena de pato”. Por outras contas, poderia corresponder a um litro
de água por minuto. O que fazendo as contas daria aproximadamente 1,4 metros
cúbicos, por dia. Logo a “pena e meia” seria pouco mais do que os dois metros
actuais, por dia.
No cimo da fonte figurou a data – 1826 e durante muitos anos serviu a população. De tal modo que até melhoraram as condições para a recolha
da água. Diminuíram a largura do tanque, em 1893, para permitir que as
pessoas se abrigassem em dias de chuva. Parece que só foi desmontada muito depois
dos anos trinta, e levada para o parque de Nova Sintra, onde hoje está
instalada. Uma foto, que me muito me interessou, data de 1933 e a fonte ainda
lá figura, no n.º 338 da rua.
Quanto ao edifício da fonte, no decorrer dos anos, também nos
deixou histórias para contar.
O primeiro colégio alemão da cidade, falarei dele mais em
detalhe a seguir, instalou-se por lá em
1855. Meio século depois, foi pensão com nome francês – La Fontaine –
evocando a fonte no rés-do-chão. Depois de retirada a fonte, já é dos meus dias
uma loja de lãs e linhas de tricot, que acho chamar-se “Branca”. A restauração
voltou ao local, bem como a evocação da fonte – era um restaurante italiano,
que teve a feliz ideia de se chamar La Fontana. Foi-se… Agora chegaram lá os do
“ramen” e tiraram-lhe o romantismo todo.
Voltando ao colégio, o edifício foi o berço do actual Colégio
Alemão. Na verdade, em 1855, um padre criou a Von Hafe Schule e vemos
pela imagem que se tratava de uma escola para meninos. Anos mais tarde, em frente,
na rua da Torrinha, criaram o Colégio Liverpool, para “Educação de
Meninas” como pintado, em letras garrafais, na parede.
Só a “vol d’oiseau”, para mudar de língua, a Von Hafe
Schule ainda mudou para outra casa na rua de Cedofeita, em 1861, depois foi para
a rua da Restauração, em 1901, onde alterou a designação para Deutsche Schule
zu Porto.
Veio a guerra e em 1916, todos os alemães e os seus
descendentes até à terceira geração foram extraditados, ao mesmo tempo que o património
alemão era confiscado e o funcionamento do Colégio Alemão foi suspenso.
Já agora, os Von Hafe ligaram-se a outros negócios e na década
de 60, conheci muito bem os que tinham uma indústria de metalurgia no Largo de
Alexandre de Sá Pinto, porque eram nossos clientes – uns “chatos” porque tinham
de levar uma factura de cada compra e só pagavam o resumo no final do mês –
contas à alemão e não “à moda do Porto”.
Mas, voltemos aos Bragas que nos trouxeram aqui hoje. A rua
foi aberta ou concluída por volta de 1824 e ainda teve de esperar quase 50 anos
para ver nascer uma das jóias da arquitectura industrial portuense – a Companhia
Aurifícia. Não sou do tempo, ou pelo menos não era cliente, dos artefactos
de ouro e prata que lá trabalhavam, mas vendi muitos quilos de pregos de arame
e muitas caixas de grosas de parafusos, para madeira e para ferro, com medidas
inglesas múltiplas e submúltiplas da polegada. Que bem recordo aquelas caixinhas
de cartão que encaixavam uma na outra com uma etiqueta verde em cima – “Companhia
Aurifícia – Parafuso madeira 3/8”.
A fábrica, que ocupou terrenos das quintas dos Bragas, foi fundada
em 1869 e ocupou uns 30 mil metros quadrados, estendendo-se até à rua de Álvares
Cabral. Durante quatro gerações esteve nas mãos da família Pinto Leite e em finais
do oitocentos, o cartão de publicidade salientava na capa, não os produtos, mas
sim à máquina a vapor, que funcionou até 2006.

Antes
de fechar portas, a fábrica foi vendo nascer outro edifício emblemático da Rua –
a Faculdade de Engenharia, que começada a construir em 1927, só em 36/37
teve os seus primeiros alunos. Não obstante a monumentalidade da obra, que além
dos terrenos da quinta dos Bragas, devia ter ocupado terrenos da quinta do Mirante,
chegados a 2000, tiveram de mudar de instalações, para a Asprela. Muito curioso,
o disfarce exterior de cotas, porque visto do passeio o edifício da Rua dos
Bragas, tem uniformidade, e não nos apercebemos da inclinação da rua, resolvida
pelas diferentes alturas dos edifícios, como demonstra esta imagem do site da
FEUP.

Os edifícios da Asprela foram a última obra pública que o meu
pai fiscalizou. Recordo as agruras por que passou, nos últimos tempos, com
alterações de última hora que os “senhores engenheiros” queriam que lhes fizessem,
antes de tomarem conta dos espaços, bem como das infindáveis escadas que teve de
subir e descer, porque os elevadores ainda não funcionavam.
Muito ainda havia a dizer sobre a rua dos Bragas, começando
pelo doce – a confeitaria Royal, lá em cima, sem esquecer repartições
públicas - a Circunscrição Industrial, onde também ia “pagar a décima”,
até espaços mais religiosos e culturais como a Capela de Nossa Senhora dos
Anjos ou a velha Livraria Reis ou mais pobres como as várias
ilhas que se escondiam lá para trás, até ao café da esquina o Latino,
onde os estudantes “faziam noites de despesa de quarenta contos” e pagavam
no dia seguinte. Deixo ficar a notícia do Público com mais de vinte anos:
"Estamos despidos", afirma José Azevedo, gerente do Café
Latino, onde cerca de 50 alunos se juntavam no fim do dia para tomar uns
copos. Os estudantes consumiam de tudo: francesinhas, cachorros, tostas
mistas... "muitas cervejocas e até uma garrafita de whisky de vez em
quando", conta José Azevedo. Para o gerente, tê-los por perto "era
uma alegria", eles aproximavam as poucas mesas circulares do
estabelecimento e faziam ali mesmo uma grande festa, cujo consumo podia chegar até
aos quarenta contos. "Deixava-os pagar no dia seguinte e olhe que nunca
deram prejuízo à casa", conta.
https://www.publico.pt/2000/09/14/jornal/pessimismo-na-rua-dos-bragas-148672
Fica para amanhã a foto da Fonte de Cedofeita, porque descobri um pormenor que é um grande "por maior".